Como surgiu esta colaboração entre o teatro da Trindade e o teatro do Elétrico para esta Noite de Reis? Com a direção do Diogo [Infante] fizemos um espetáculo em 2018, que já tinha sido programado pela anterior diretora do Trindade, a Inês de Medeiros, A Canção do Bandido, uma ópera. Não foi com o Teatro do Elétrico, mas com o Teatro São Carlos e o Trindade. E no final de 2019 o Diogo contactou-me para apresentar um espetáculo em 2023 com a colaboração das duas companhias. Depois desse ponto de partida pensámos em vários textos e chegámos rapidamente à Noite de Reis. Já conhecia a peça, mas nunca a tinha lido com os olhos de a encenar. No Teatro do Elétrico nunca trabalhámos muitos clássicos, mas os que fizemos foram sempre com relação com a música, como uma opera de Mozart, em 2015, Sebastião e Sebastiana, e no ano passado fizemos no CCB Cortes de Júpiter, que é uma peça de teatro de Gil Vicente com muitas indicações de música, numa altura em que ainda não havia ópera como esse nome. E agora avançamos para este clássico, o terceiro nestes quinze anos de Teatro do Elétrico, e mais uma vez com uma relação muito vincada com a música, que é tocada ao vivo..Houve algum objetivo concreto nesta encenação? A adaptação do texto não foi assim tão grande. Aquilo que fiz, em primeiro lugar, foi comparar o original com as três traduções: duas de português de Portugal e uma de português do Brasil. E depois foi um trabalho de corte e costura, com essas traduções fazendo eu próprio algumas para dar num espetáculo de duas horas. Mantivemos o lirismo da linguagem e a relação que o texto tem com a poesia, mas não fiz grandes alterações à natureza do próprio texto..Mas há a introdução de maneirismos mais contemporâneos e o uso de um português menos lírico por algumas personagens. Isso já estava presente em algumas das traduções, e assim vi que podia ter essa liberdade. Tenho sempre algum pudor em trabalhar clássicos por não saber até onde se pode ir, ainda por cima num texto de Shakespeare. Mas ao comparar as traduções vi que existia uma liberdade e que os tradutores brincavam muito com o texto original, sobretudo com a tradução de português do Brasil. Ao perceber que isso acontecia decidi tornar o espetáculo o mais acessível possível não facilitando na linguagem, mas deixando as coisas claras. Na encenação, isso sim, andamos a brincar às épocas, para a frente e para trás. Desde a personagem do Malvolio (Marco Delgado) que é asmático e que na época em que este texto estreou não tinha uma bomba de asma presa no cabelo como a Amy Winehouse, ou seja, o cabelo tem essa ligação com a Amy Winehouse que guardava alguns objetos no cabelo. E há também a questão do meio de transportes, na altura seria a cavalo mas que optámos por colocar uma motoreta em palco. Com o sentido de humor e o jogo entre os atores em cena, os adereços e figurinos, o cenário e caracterização, trabalhamos todos no mesmo sentido e brincámos com um texto com quatrocentos anos e com aquilo que ainda hoje nos pode sugerir ..O elenco é composto por atores habituados a trabalhar em vários registos, alguns muitos diferentes. Porque essa opção? Desde que enceno espetáculos e com a experiência que tenho tido, mesmo quando era ator, percebo que apesar de as pessoas terem determinadas experiências há depois uma espécie de uniformização quando trabalham em conjunto. Cada um traz a sua característica forte, mas que não é antagónico, porque os registos diferentes já estão impressos nas personagens, depois aquilo que os atores trazem consigo acaba por servir o que está sugerido no próprio texto. Escolhi estas pessoas porque admiro o seu trabalho e tinha muita curiosidade em trabalhar com algumas, sendo que há outras com quem já trabalho há mais de dez anos..Há alguma mensagem que a sua encenação queira passar? Acho que o espetáculo tem uma zona leve e divertida, como a maior parte das comédias, mas que nos leva a olhar para as questões profundas do ser humano. Neste caso é o amor o grande tema do espetáculo. A comédia trabalha de forma leve, e aparentemente superficial, assuntos profundos e infinitos. A Noite de Reis reflete sobre coisas importantes quer a nível individual quer da humanidade de uma forma mais transversal, mas com esse lado etéreo e com a brincadeira muito à flor da pele. E fala sobre sofrer de amor e desencontros de amor. Para além de falar do poder. Por exemplo, a personagem muito empolada do Orsino (Renato Godinho), que está na sua banheira, fala de uma maneira muito exacerbada do seu amor pela Olívia (Filipe Vargas), que nunca viu e nem sequer sair da sua banheira para ir falar com ela, manda sempre um criado. Percebe-se com isso um certo conforto que o poder imprime nas pessoas e que lhes tira os movimentos. No todo, o espetáculo fala de algumas das temáticas importantes para o ser humano..Falando de futuro, que peças ou espetáculos está a preparar com o Teatro do Elétrico? Está a ser um ano muito cheio, estamos a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Começámos agora com um espetáculo infantil, A Orquestra, que vai fazer digressão no Algarve, em salas não convencionais, como escolas e bibliotecas. E esse trabalho vai ser feito por atores que tocam instrumentos ou músicos que também são atores. É um espetáculo a partir de obras de compositores que trabalharam para o público infanto-juvenil, como Mozart, Prokofiev, entre outros. Depois, em julho, vamos fazer um espetáculo para o Teatro São Luiz, em parceria com a Orquestra Metropolitana de Lisboa onde vamos ter várias dezenas de músicos e atores, vai chamar-se Livro de Pantagruel, é um texto e encenação meu com a música original do Filipe Raposo onde vamos andar à volta das temáticas do canibalismo. E depois no final do ano, vamos fazer uma grande ópera no grande auditório do CCB, Maria da Fonte, que vai estrear em novembro e vai fechar as nossas estreias em 2023..filipe.gil@dn.pt