Terminei o artigo da semana passada dizendo que a China pode ser o tema de troca posto em cima da mesa por Joe Biden para conseguir fazer as pontes necessárias com a bancada republicana no Senado, para a aprovação de altos cargos da nova administração e para desbloquear grandes pacotes financeiros e legislativos para fazer face à pandemia..Tem-se gerado a perceção de que pouco ou nada mudará em relação a Donald Trump, mesmo que o tom truculento possa dar lugar a uma postura mais diplomática, embora não menos ideológica. Esta tese tem pertinência e foi já defendida pelo próprio Biden, quanto mais não seja porque é a que melhor encaixa na predisposição republicana..Será, se quisermos, resultado de um hiperpragmatismo, para fazer cumprir as prioridades do início de mandato. Contudo, penso que não será este o desenho estratégico posterior à primeira fase, e a nova agenda transatlântica proposta nos últimos dias pela Comissão Europeia espelha uma variação substancial na estratégia para lidar com o imenso desafio chinês..A China foi praticamente o único assunto de política externa presente na campanha para as presidenciais americanas. Longe vão os tempos da "guerra global ao terrorismo", do Iraque ou do Afeganistão. A única exceção digna de impacto foi a defesa intransigente que Biden fez do acordo entre a União Europeia e o Reino Unido como mecanismo de salvaguarda dos Acordos de Paz para a Irlanda do Norte, reforço logo dado por Nancy Pelosi quando disse que nenhum acordo de comércio livre com o Reino Unido seria aprovado na Câmara dos Representantes se a estabilidade entre as Irlandas estivesse comprometida..Mas a China teve, além das menções habituais sobre a paternidade do vírus e a responsabilidade pelo empobrecimento da América, uma menção por parte de Biden no último debate com Trump: Washington tem de trabalhar muito melhor com os aliados se se quiser afirmar na competição global com Pequim..Ao que parece, Josep Borrell e Mike Pompeo foram trabalhando os termos de uma agenda comum desde setembro, nomeadamente a dimensão chinesa, o que desde logo é um atestado de incompetência à estratégia conflituosa de Trump, quer com a China quer com a União Europeia (UE), de quem um dia disse tratar-se de um dos "grandes inimigos da América"..Os EUA precisam de aliados e estes precisam dos EUA para robustecer uma frente democrática mais firme na resolução de um conjunto de riscos globais: climáticos, digitais, securitários, comerciais, regulatórios, migratórios, sanitários e de desigualdades sociais. Esta é a principal conclusão da agenda transatlântica em cima da mesa. Onde é que a China entra aqui? Em três frentes prioritárias..A primeira é a da pandemia, com uma coordenação afinada no investimento, disponibilização e distribuição da vacina, restituindo credibilidade e meios à Organização Mundial da Saúde sem deixar de apontar um caminho para a sua reforma. A preparação atempada de um roteiro para a gestão de futuras crises pandémicas deve estar também nas prioridades transatlânticas, o que não exclui a China nem qualquer outro país, na sua dimensão humana, logística ou económica..Neste sentido, uma estratégia transatlântica pós-covid não deve ser um sinal de hostilidade a Pequim, o que não quer dizer que não venha a refletir alguns sinais que reconheçam a necessidade de maior independência estratégica, nomeadamente, na produção e distribuição de material de saúde e farmacêutico, cuja regionalização industrial e logística acompanhará o sentido desglobalizador em curso..O mesmo acontece em relação à crise climática. Formatar uma frente transatlântica mais ambiciosa na descarbonização não significa alienar o contributo da China, indispensável neste debate. Aponta é uma potencial convergência de esforços políticos e económicos num espaço geográfico que, apesar dos novos equilíbrios no indo-pacífico, preenche 30% do território terrestre e marítimo, sendo ainda responsável por um terço do PIB e do comércio globais..Não menos relevante, está ancorado na aliança político-militar mais robusta da história. Intensificar geopoliticamente tudo isto pode influenciar um quadro normativo alargado de regulação comercial, um dispositivo de políticas públicas mais sociais do que mercantis e um roteiro de procedimentos negociais bastante mais construtivo do que bloqueador de soluções globais. E levar outros atrás..Alcançar vantagem no debate climático pressupõe uma dupla ambição, com riscos políticos associados: para fora, assumir metas mais ambiciosas para as próximas décadas já na COP 26, prevista para Glasgow no final de 2021, gorando expectativas ao longo dos anos; para dentro, estar disposto a fazer com vigor as transições energéticas e económicas indispensáveis, assumindo os choques que provocarão..Construir uma dianteira de Estados o mais alargada possível ajuda a ultrapassar ambos os constrangimentos, sendo também para isso importante ter a China a bordo. Por outras palavras, a partir dos traumas pandémico e climático pode haver margem para reconstruir uma plataforma de trabalho transatlântico que faça pontes com Pequim. Não é, porém, aqui que as entropias mais sobressaem..É, sim, na terceira frente, a tecnológica. A criação de um Conselho Comercial e Tecnológico entre a UE e os EUA pressupõe uma retaguarda bastante mais concertada e robusta na proteção de dados, na regulação antimonopólios, num modelo de justiça fiscal imperativo para as grandes empresas de serviços digitais, trabalhando ainda numa plataforma de moderação e contradesinformação online..É fundamental consolidar uma relação política mais estreita entre Bruxelas e Washington capaz de dialogar com outra força com as grandes tecnológicas, por forma a regular com outra eficácia as suas práticas laborais, fiscais, de conduta ética e participação nos processos democráticos..O momento é mesmo este, depois de alguns sinais de contrição no último par de meses. Em paralelo, trabalhar na capacitação transatlântica no 5G, preparando o 6G, influenciando boas práticas no mercado, mais transparentes e com os direitos individuais salvaguardados. A tensão com a proposta chinesa é evidente, eventualmente incompatível..O que não pode ser é, no contexto europeu, ingénua, no quadro transatlântico desigual e, no plano com o gigante asiático, permissiva. Um fórum de diálogo permanente entre a UE, os EUA e a China para a governação do setor digital pode ser um passo para diminuir desconfianças, inseguranças e vulnerabilidades privadas e estaduais. Se houve impacto que a covid acelerou, foi precisamente a digitalização das relações internacionais..Tudo isto é estrutural para Portugal, inserido em todos estes cruzamentos geoeconómicos. Com uma presidência da UE à porta tendencialmente marcada pela sua digitalização, contribuir para acelerar todos estes roteiros geopolíticos é do mais elementar interesse nacional. Para o bem e para o mal, muita da política internacional relevante passará por Lisboa nos próximos meses.