Um documentário sem subtítulos e com emoção telúrica em bruto. Cesária Évora: basta o nome para transmitir a singularidade de uma mulher que, entre a estrela internacional e a cantora de bar lá da terra, nunca deixou de ser quem era. A diva dos pés descalços, voz de Sodade, senhora de si, surge agora num filme assinado pela jornalista Ana Sofia Fonseca, que optou por uma "música" de vozes dos cúmplices de Cesária Évora para dar a conhecer algo da sua vida e intimidade humana, envolvendo um extenso arquivo que nos devolve a presença dessa rainha da morna, falecida em 2011, aos 70 anos. Em conversa com o DN, a realizadora falou da admiração que a moveu..No início do filme alguém diz que a voz da Cesária Évora "vem da terra". Como é que traduz esta ideia? Essa frase é do Bouziane Daoudi, que foi durante muitos anos jornalista no Libération - alguém que contactou imenso com a Cesária, fez-lhe entrevistas, esteve várias vezes em casa dela... - e acho que é uma frase que a define muito. De facto, a sua voz vem da terra porque ela tinha os pés completamente enraizados naquela terra específica: Cabo Verde. Mais propriamente em São Vicente, e ainda mais propriamente no Mindelo. A Cesária correu o mundo inteiro sem tirar de lá os pés. É também uma ideia que remete para a sua genuinidade, autenticidade. Porque ela conseguia ser igual a si própria no Mindelo, em Nova Iorque, em Lisboa, onde quer que fosse. Para mim, a voz da Cesária transmite a sua essência, sem artifícios..Como é a relação dos locais com a fama desta "diva dos pés descalços"? Acho que as pessoas em Cabo Verde ficaram muito espantadas com o sucesso da Cesária. Ninguém conseguia imaginar que, aos 50 anos, aquela mulher iria alcançar o que alcançou. Como diz a neta [Janete Évora], a Cesária era só uma rapariga que andava para ali a cantar nos bares - e toda a gente reconhecia que cantava muito bem, mas não se supunha que fosse para além disso. Foi depois do encontro com o [produtor] José da Silva que começou uma nova etapa. Ora, as pessoas foram-se apercebendo, porque ela fez capas de jornais e encheu salas um pouco por todo o mundo, mas, como nunca deixou de ser simplesmente a Cesária lá da terra, não mudou muito. A verdade é esta: ela teve sempre mais reconhecimento no exterior do que no próprio país. Hoje em dia fazem-se homenagens mas, por exemplo, a sua casa poderia ser um espaço museológico ou uma escola de música... Ela fez a ponte entre Cabo Verde e o mundo, foi a peça fundamental para a divulgação da música que lá se faz..E ela tinha consciência de ser um símbolo nacional? Sabia que o era, mas importava-se pouco com essas coisas..Pergunto isto precisamente por causa da atitude prática que tinha em relação a quase tudo. Há uma entrevista em que lhe perguntam pelos sonhos e ela pede para passar à frente... Como se não quisesse falar de coisas que não são concretas. A Cesária tinha uma visão muito sua - que também é uma herança da terra - e vivia dia a dia, sem lamentar demasiado o passado nem projetar o futuro. O que a fazia feliz não é o que faz feliz a maioria das pessoas. Nunca se importou com bens materiais, com fama, etc. Mais facilmente aceitava ir jantar uma cachupa com os amigos e as amigas do que a uma homenagem com o presidente da república..O que é que motivou este projeto? Antes de mais, sempre gostei muito de ouvir a Cesária. Depois, a vida quis que eu começasse a ter uma relação muito próxima com Cabo Verde - tenho uma casa em São Vicente onde passo bastante tempo -, e aí fui ouvindo histórias sobre ela. Comecei a ficar fascinada com a personagem também. Lembro-me de chegar a São Vicente uns dias depois da morte dela e de sentir a orfandade das pessoas que ali passavam; nesse momento ocorreu-me que alguém devia fazer um filme sobre esta mulher. Se formos a pensar, quantos filmes existem sobre mulheres negras, com mais de 50 anos, sucesso internacional e a viver em África? Quantas histórias temos destas? Quantas davam um filme? Acho a história da Cesária Évora verdadeiramente inspiradora. E precisamos de histórias de mulheres fortes..Outra figura que vem à memória, a propósito da Cesária, é Ella Fitzgerald. Ambas mulheres negras que se afirmaram pelo seu talento espontâneo, ignorando aos padrões de beleza das divas, mas sem deixar de o ser. Elas foram várias vezes comparadas, mesmo em artigos de jornal, e faz sentido. Mas, por outro lado, cada uma tem as suas características vincadas... Seja como for, essa comparação vem desde a descoberta da Cesária..No documentário vemos uma quantidade generosa de arquivos. Como foi a recolha destes materiais? Foi um processo que demorou bastante tempo, porque andámos à procura de material em não sei quantos países....Estamos a falar de anos? Sim, comecei a viver esta ideia de fazer o filme, e a mexer-me nesse sentido, no verão de 2017. E ao início não encontrava material. Ninguém tinha nada, diziam-me até que dos primeiros tempos seria impossível, porque as pessoas não tinham câmaras. Isto não é como fazer um filme com arquivo dos Estados Unidos ou de outro país da Europa, em que havia sempre alguém com uma câmara, um registo nos anos 60... O primeiro que consegui foi passado um ano e tal, um vídeo de um músico próximo da Cesária, que nem se lembrava o que é que tinha filmado. Sabia apenas que existiria algures. Demorámos imenso tempo à procura e lá demos com o objeto precioso meio esquecido dentro de múltiplos sacos de plástico. Ele próprio nunca tinha visto as imagens que lá estavam..O que é que mais a comoveu nesse processo de revelação de Cesária Évora? Algum aspeto em particular? Vários. Um deles: descobri que a Cesária era mais atenta à sua vida profissional, e ao que a rodeava, do que poderia parecer. Por exemplo, há uma conversa, que não chegámos a pôr no filme, em que ela se mostra preocupada com o facto, lá está, de não haver uma escola de música em São Vicente. Chega a disponibilizar-se para ter uma reunião com a presidente da câmara e tudo... Outra coisa muito bonita é, assim que conseguiu ter uma casa, pôr uma panela ao lume dia e noite, sol e lua, para ter sempre comida feita para quem precisasse..Era uma mulher com sentido de humor, mas também dada à melancolia... Ela tem um sentido de humor muito peculiar mas também muito característico das gentes do Mindelo: é capaz de rir de tudo, com tudo e de todos. Ao mesmo tempo que é uma mulher com os seus momentos de melancolia, sim. São duas faces da mesma moeda. E isso não se nota tudo na voz dela?.Falou agora sem usar o pretérito perfeito. Foi de propósito? Ah... Não reparei. Talvez porque ela tem sido tanto a minha vida nestes últimos anos. Para além da música, sinto-a aqui..dnot@dn.pt