A casa da Rússia
Quando lá estive há anos, tinha um reclame no topo, da Mercedes-Benz. Gigantesca, com oito metros de altura, aquela irónica pegada de capitalismo não conseguia, contudo, apagar a memória do colosso em forma de prédio, durante décadas o mais alto edifício residencial de Moscovo, com 505 apartamentos, 49 ascensores e 25 entradas para a rua.
Nas vésperas da Grande Guerra, aquela era uma zona pantanosa nas margens do rio Moscvá, dominada por uma fábrica de chocolates, pelo clube de vela da cidade, pela associação dos arqueólogos, por um mercado de cogumelos. Por perto, a Igreja de São Nicolau Milagreiro, a fábrica da vodca Smirnoff, popular e barata, e um colégio feminino onde Rachmaninoff leccionou vários anos, mesmo odiando ser professor (mas apreciando a isenção dos deveres militares que isso conferia...). Em 1905, os operários de uma metalurgia da zona foram dos primeiros trabalhadores de Moscovo a aderir a uma greve geral por melhores condições de vida. Depois, a revolução, o tempo de Lenine e a sua morte, Janeiro de 1924.
Logo em 1918, a capital fora mudada de São Petersburgo para Moscovo e o Kremlin e os grandes hotéis da cidade já mal chegavam para albergar a nova elite dos bolcheviques, a cada dia mais numerosa. Em Janeiro de 1927, Alekseki Rykov, então chefe do governo, nomeou a Comissão para a Construção da Casa do Comité Central e do Conselho dos Comissários do Povo e, para arquitecto do ambicioso projecto, designou Boris Iofan, originário de famílias judaicas de Odessa, formado na escola de arquitectura dessa cidade, que trabalhara em São Petersburgo até emigrar para a Itália, onde aderiu ao partido comunista. Rykov convencera-o a regressar à Rússia e nenhum outro arquitecto foi sequer considerado para a concepção da Casa do Governo, a qual, de acordo com o caderno de encargos, deveria ter 200 apartamentos de cinco assoalhadas, acessos por todos os lados e cómodos de "alta qualidade": aquecimento central, soalhos de parquet, água canalizada, quente e fria, fogões a gás. Um mês depois, a comissão decidiu duplicar o número de apartamentos para um total de 440 fogos, com cinco, quatro e três divisões, todos com cozinha equipada, duche e banheira, conduta de lixo, sistema central de aquecimento e ventilação - um luxo. Para construir um jardim-de-infância e um centro de dia, pensou demolir-se São Nicolau Milagreiro, mas o departamento de conservação do património opôs-se, com êxito, e a igreja salvou-se de um destino idêntico ao da Catedral de Cristo Salvador, dinamitada em 1931 para dar lugar ao Palácio dos Sovietes, também idealizado por Iofan, um delírio megalómano de 495 metros, mais alto do que qualquer edifício alguma vez construído, maior do que as pirâmides de Gizé, do que a Torre Eiffel ou os arranha-céus da América, com um salão com capacidade para 21 mil pessoas e uma estátua de Lenine no topo, com 98 metros de altura, três vezes o tamanho da Estátua da Liberdade. A Segunda Guerra e o bom senso inviabilizariam a obra e, durante anos, o local converteu-se numa gigantesca cratera, lodaçal imenso coberto de lixo, paragem de prostitutas e marginais. Em 1958, Khrushchev transformou-o numa piscina, a maior a céu aberto do mundo.
Entretanto, a construção da Casa do Governo foi avançando, com peripécias várias, que fizeram atrasar a conclusão da obra, inicialmente prevista para finais de 1928. Em meados do ano seguinte, uma inspecção dava conta de diversos problemas laborais: o estaleiro estava um caos, o arquitecto ausente no estrangeiro, os operários eram laxistas e indisciplinados. Numa revista de arquitectura, surgiram queixas pelo facto de, contrariamente ao que impunha a legislação soviética, o projecto de Iofan ser um segredo de Estado e só aos poucos se conhecerem os seus detalhes: mármore nas escadarias, em vez de granito; azulejos nas cozinhas e nas casas de banho, em lugar de cimento; grandes varandas e janelas rasgadas sobre o rio, com o Kremlin a dois passos; solários nos terraços das melhores casas. Decidiu-se aumentar ainda mais o número de apartamentos, agora para 505 fogos, pois era necessário albergar também o numeroso pessoal de serviço de um edifício que, além de habitações, tinha uma estação de correios, um banco, uma carreira de tiro, um cinema com 1500 lugares, uma clínica, uma lavandaria, um cabeleireiro, uma mercearia, linhas de rádio e telefone, uma das quais ligada directamente ao Kremlin. No complexo, ergueram-se também uma cafetaria-restaurante que podia servir refeições ao domicílio, creches e jardins-de-infância, campos de ténis e basquetebol, dois ginásios, salas de bilhar, um clube, uma biblioteca, um portentoso teatro com 1300 lugares, tudo para que ali existisse um estilo de vida comunitário, adverso a individualismos familiares e burgueses, e para que, de acordo com os escritos de muitos bolcheviques, como Leonid Sabsovich, as crianças fossem educadas não como propriedade dos pais, mas do Estado.
O edifício, contudo, era considerado "de transição" entre a propriedade privada e o comunismo, com os moradores a terem um estatuto difuso: não eram donos das casas, mas "residentes" com direito de acesso a um sem-número de serviços comuns, num modelo que, curiosamente, é comparado ao do Dakota Building, como explica Yuri Slezkine num livro monumental e épico, The House of Government. A Saga of the Russian Revolution. Porém, e ao contrário do que sucedia no Dakota, o Estado encarregava-se de tudo, incluindo dos interiores das casas, com mobiliário feito à medida, ao gosto de cada morador. Em 1932, o prédio tinha 2745 residentes e um exército de servidores a tempo inteiro estimado entre 600 e 800 pessoas: 128 guardas, 34 bombeiros, 23 zeladores, sete especialistas em desinfestações, etc. (além, claro, das empregadas domésticas de cada família). Só administradores eram 57, com os mais variados pelouros. Naturalmente, os custos de manutenção e, sobretudo, de aquecimento superaram todas as previsões. É espantoso pensar que tudo isto decorreu no período mais negro das grandes fomes de 1932-33, responsáveis por sete milhões de mortes, segundo a estimativa oficial feita pelo próprio parlamento russo, em Abril de 2008. Como espantoso - e terrível - é pensar que, no conforto da Casa do Governo, residiam alguns dos principais artífices dessa barbárie - Grigory Kaminsky, no apartamento 225; Mark Belenky, no 338; Isaak Zelensky, no 54; Israel Veitser, no 159. Os moradores, a cafetaria-restaurante e demais serviços eram abastecidos diária e abundantemente por uma quinta colectiva a norte de Moscovo, denominada "Caminho de Lenine" e que produzia em exclusivo para a Casa do Governo. Uma antiga residente, na altura ainda criança, lembra-se de ir com a sua ama até uma ponte das proximidades da Casa para deixar restos de comida a uma multidão de esfomeados, muitos dos quais crianças como ela, a quem chamou "pequenos esqueletos". A maioria das serviçais, aliás, tinha fugido das zonas rurais, onde perderam as famílias no terror e na fome.
A Casa tornou-se a morada dilecta da aristocracia soviética, albergando Svetlana, a filha de Estaline, Nikita Khrushchev, o marechal Zhukov, o arquitecto Iofan, Alexei Kosygin, Georgi Dimitrov, Bukharine, muitos outros. Os residentes eram divididos em "membros da nomenklatura" (com os apartamentos mais espaçosos e comodidades exclusivas), "pensionistas" (reformados da nomenklatura) e "não-membros da nomenklatura", o que incluía o pessoal doméstico, antigos operários da Casa premiados com apartamentos mais modestos, entre outras categorias minuciosamente estipuladas. A hierarquia, porém, não era inteiramente rígida, registando-se casos de déclassement, em que os moradores eram obrigados a mudar para casas mais pequenas, e outros de inexplicável ascensão, ditada por corrupção e compadrio na gestão do imóvel. Estaline recebeu centenas de pedidos de transferência para apartamentos melhores. Analisava-os pessoalmente, um a um, chegando a demorar um ou dois anos a responder.
Aos poucos, a Casa converteu-se num microcosmos da sociedade soviética, com abissais diferenças de poder e de status, identificáveis na dimensão e na localização dos diversos apartamentos, que eram dominados por uma divisão central, o "escritório do pai", com estantes escuras e austeras onde se acumulavam os tratados do marxismo-leninismo, a enciclopédia Brockhaus, os volumes de Vidas dos Animais, de Alfred Brehm, e a colecção Tesouros da Literatura Mundial, publicada pelas Edições Academia (os membros da nomenklatura recebiam regularmente os catálogos da Academia para escolher os livros que queriam receber gratuitamente em casa).
Os pais soviéticos, porém, pouco paravam em casa: saíam muito cedo, chegavam muito tarde, a dedicação à causa era aferida pelo número de horas passadas no trabalho, a matar fascistas. Nos apartamentos mais pequenos, o "escritório do pai" convertia-se em sala de jantar, mas os maiores tinham uma divisão própria para refeições e festas, ainda que a vida social dos moradores da Casa fosse muito reduzida, quase nula, sendo raríssimas as visitas entre as famílias dos residentes. Até aos primeiros anos, as amas dormiam no quarto das crianças e, depois, passavam para uma alcova para o pessoal doméstico, situada na cozinha, junto à porta de serviço. Só em casos excepcionais, de escritoras afamadas ou cidadãs soviéticas de renome, se previa a existência de um local de trabalho autónomo para as mulheres, geralmente confinadas à cozinha ou à sala de estar.
Quanto à decoração, oscilava-se entre o pesadelo eslavo e o minimalismo, defendendo muitos que os novos tempos soviéticos impunham paredes nuas e divisões austeras, sendo as cortinas das janelas consideradas o cúmulo da decadência burguesa. Ficava por explicar, todavia, como é que a Casa oferecia serviços de cabeleireiro, entrega de jornais e recolha de correio ao domicílio, tinha um canil no rés-do-chão com tratadores a tempo inteiro ou oferecia alimentação específica para "empregados" (criadas, motoristas), menos requintada do que a dos patrões, para "dependentes" (dieta) e para "crianças".
De súbito, tudo mudou. Após o assassinato de Kirov em 1934, Estaline lançou a campanha do Grande Terror. Nas purgas então feitas, os heróis passavam a inimigos e vice-versa, nunca se sabendo quem seria a próxima vítima, como se fosse esse o principal desígnio do tirano, deixar um país inteiro suspenso da sua vontade, bárbara e sanguinária. Apavorada, a Casa mergulhou num silêncio sepulcral, só interrompido pelos gritos lancinantes das mulheres e dos filhos daqueles que, geralmente de madrugada, os guardas levavam para sempre. Por suprema ironia, poucos dias antes de ser lançada a grande purga, o teatro da Casa do Governo levou à cena, com grande sucesso, uma adaptação teatral da vida de Uriel da Costa, filósofo português, mestre de Espinosa, vítima da intolerância de um credo. Agora, em nome de outra religião, um milhão de pessoas foram mortas em dois anos apenas.
E ainda há quem o negue.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia