Sentada a bordar numa divisão em que o rádio é o único luxo, Luisinha (Milu) canta as alegrias da humildade e a superioridade moral da modéstia. O ano é 1943 e o tema A Minha Casinha , com letra de João Silva Tavares e música de António Melo, um dos momentos altos do filme de Arthur Duarte O Costa do Castelo. Recuperada em 1988 pelos Xutos & Pontapés, num contexto histórico totalmente diverso, a canção, como o próprio filme, é a expressão musical de A Lição de Salazar: cada um no seu lugar, um lugar para cada um, o pai de enxada ao ombro, a mãe junto ao fogão. Mesmo que o caldo fosse frequentemente aguado e a harmonia familiar não mais do que tristeza, a propaganda do regime insistia em exaltar as virtudes da resignação ao "fado de cada um"..O estereótipo parece repetido, anos depois, no clássico imortalizado por Amália Rodrigues, Uma Casa Portuguesa : "Quatro paredes caiadas/Um cheirinho a alecrim" e mais adiante "a alegria da pobreza/Está nesta grande riqueza/De dar e ficar contente". Mas as aparências enganam. Para o investigador Frederico Santiago, que está a trabalhar, em colaboração com o Museu do Fado, em Lisboa, na edição crítica e integral da obra de Amália, não só a origem da obra é totalmente diversa de A Minha Casinha, como a inteligência da intérprete soube deslocar a ênfase dos versos mais tradicionais para a valorização do aspeto afetivo: "Uma Casa Portuguesa nasce em Moçambique, entre uma comunidade portuguesa que sente saudades da sua terra e sem relação com o salazarismo." Com música de Artur Fonseca e letra de Reinaldo Ferreira (filho do mítico Repórter X), cantada originalmente por Sara Chaves, a canção foi mostrada a Amália pelo cantor e homem de rádio João Maria Tudela. Na voz dela tornar-se-ia um imenso sucesso internacional, com versões em espanhol e italiano: "Amália, não só tinha cabeça de poeta, como transformava completamente uma canção ou um fado..Em Uma Casa Portuguesa ela acentua não as paredes caiadas ou o São José de azulejos, mas uma promessa de beijos, dois braços à minha espera. E isso faz toda a diferença." No fado, a que o regime procurava colar-se (como ao futebol e a Fátima), estava também a subversão da propaganda, na melhor tradição operária e anarquista herdada da I República.. A Casa da Mariquinhas, um dos grandes êxitos de Alfredo Marceneiro, cantava também uma casa portuguesa com certeza, mas um pouco diferente, onde a própria vivia "com muitas amigas" e escondia, dos olhares desconfiados da vizinhança, o que por lá se passava graças às "janelas com tabuinhas". Marceneiro de profissão (o que valeu o nome artístico a Alfredo Rodrigo Duarte), o fadista construiu uma miniatura da casa em que não falta o mobiliário pobre descrito no fado, "os quadros maganos", as guitarras e as residentes em trajes menores. Propriedade da família, esta peça única pode hoje ser vista no Museu do Fado..As venturas e desventuras de Mariquinhas e da sua famosa casa tornar-se-iam, aliás, um tema recorrente na história do fado. Foi assim que nasceu Vou Dar de Beber à Dor , gravado por Amália Rodrigues em 1968 (tema composto por Alberto Janes), em que, com humor, Amália lamenta a transformação em "casa de penhores o que foi viveiro de amores", com um "secretário lingrinhas"..Como nota Frederico Santiago, o curioso em tudo isto é que estávamos no final dos anos 1960 e Amália não só era há muito uma grande estrela internacional como cantava já poetas eruditos: "No entanto, não tinha qualquer problema em brincar com um tema popular como este, interpretando-o à sua maneira, de uma forma muito divertida pois era também uma atriz da canção, o que é muito raro." O destino funesto, ou talvez não, da Mariquinhas e da sua alegre casa levaria ainda Marceneiro e Fernando Maurício a cantar, com letra de João Linhares Barbosa, O Leilão da Casa da Mariquinhas, em que, por queixa dos vizinhos chocados com a ligeireza dos costumes, acrescida de penhora, tudo lhe levaram e "venderam as tabuinhas"..Mais feliz é, no entanto, o desfecho cantado por Hermínia Silva em Vou Dar de Beber à Alegria (também com letra de Alfredo Janes) em que a ditosa proprietária voltava à casa que a imortalizou graças "a um senhor de falas finas" que lhe devolveu "a casa que é sua/Pôs o prego na rua/E correu com o tal senhor que era lingrinhas". Tudo acabou, como era desejável, em fado devidamente acompanhado à guitarra e jaquinzinhos..Nestas coisas da música popular, as ditaduras políticas ou do gosto põem e o público dispõe. Malgrado as intenções moralizadoras do salazarismo, não houve casa portuguesa mais famosa em toda a história do fado do que esta. Numa rua bizarra e janelas com tabuinhas.