A coincidir esta semana com os 75 anos da Independência da Índia e do Paquistão, irmãos-inimigos com três guerras no historial, um estudo científico estimou que "mesmo um conflito militar nuclear limitado" entre ambos "mataria dois mil milhões de pessoas no mundo inteiro". E dos seis cenários estudados pela americana Rutgers University, esta guerra entre as duas potências da Ásia do Sul nem sequer seria a mais mortífera. Um conflito nuclear total entre os Estados Unidos e a Rússia, dois países que detêm juntos 90% do arsenal global, provocaria a morte de cinco mil milhões de pessoas, mais de metade da humanidade. Parte das vítimas seria causada pelas próprias bombas, mas a mortandade prosseguiria não só por causa da radioatividade, mas também por impactos vários, desde a total perturbação das redes de comércio alimentar mundial, até às imediatas alterações climáticas..O sucesso internacional que está a ter A Bomba, uma BD em dois volumes agora editada pela Gradiva, talvez se explique por esta consciência de que a ameaça de um conflito nuclear nunca foi tão forte desde o fim da Guerra Fria, sobretudo depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia e a NATO ter vindo em auxílio de Kiev, fornecendo armas, mas não tropas, a linha vermelha para Moscovo..Claro, ninguém entre os governantes mundiais fala abertamente do uso de armas nucleares, a não ser Kim Jong-un, da Coreia do Norte, país que já neste século se tornou o mais recente membro do clube nuclear, nove ao todo, se incluirmos Israel, que nunca o admitiu..A edição em francês de A Bomba ocorreu em 2020, quando se assinalaram os 75 anos dos ataques americanos a Hiroxima e Nagasaki no início de agosto de 1945, que resultaram dias depois na rendição do Japão, pondo fim à Segunda Guerra Mundial, quando na frente europeia tinha já terminado em maio, com a derrota da Alemanha Nazi. Os autores são, para o texto, o belga Didier Alcante e o francês Laurent-Frédéric Bollée e, para o desenho, o canadiano Denis Rodier, trio que produziu um livro excecional, pois à expressividade das imagens a preto e branco soma-se uma qualidade de escrita notável. E o rigor histórico.."Desde o início, considerámos que o assunto nos impunha um rigor total, tanto a nível histórico como científico. Fossem factos, datas, personagens, ou, igualmente, locais, construções, veículos, uniformes...Tudo foi verificado repetidamente. Obviamente, às vezes, por razões narrativas, precisámos de recriar os diálogos, voltar a encenar certos episódios, sintetizar várias reuniões numa só, este género de coisas. Mas, fundamentalmente, tudo o que acabou de ler é autêntico!", pode ler-se no posfácio..Entre os muitos artigos na imprensa internacional dedicado a este A Bomba, destaca-se um da edição em inglês do Mainichi, um dos grandes jornais japoneses, pois conta como Alcante, em criança, ficou impressionado com a visita que fez em 1981 a Hiroxima, a cidade bombardeada a 6 de agosto de 1945 (nos Estados Unidos era ainda dia 5, daí a divergência de datas por vezes nas efemérides), em especial com a sombra de uma pessoa que a explosão fixou numa parede. Quem já visitou esta cidade japonesa não consegue ficar indiferente à narrativa do sofrimento que foi então vivido, mesmo que Hiroxima tenha feito uma reconstrução notável, deixando as ruínas do antigo edifício de exposições, raro prédio de betão numa época de construções de madeira, como memorial, a célebre Cúpula Atómica..O Mainichi chama a atenção para o facto de já estar traduzido A Bomba, logo a sua mensagem de alerta, para as línguas das cinco grandes potências nucleares, ou seja Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França, na realidade os cinco vencedores da Segunda Guerra Mundial (a Rússia aqui considerada como herdeira da União Soviética, o que é tanto mais verdade no caso do arsenal nuclear, pois Ucrânia e Cazaquistão prescindiram dessa arma)..Além do rigor na descrição das grandes linhas de desenvolvimento da bomba pelos americanos, e da tentativa falhada pelos nazis, esta BD impressiona pelo modo como humaniza os intervenientes, caso de Leo Szilard, judeu húngaro que conseguiu a primeira reação nuclear em cadeia, mas que ajudando no Projeto Manhattan, tentou várias vezes alertar Franklin Roosevelt e depois Harry Truman para o risco da sua utilização, uma luta em que teve o apoio de Albert Einstein..Também é curiosa a forma como os autores nos apresentam psicologicamente Karl Fuchs, comunista alemão que a partir do complexo de Los Alamos passou informação que permitiu a Estaline testar uma bomba em 1949..E não falta a firme oposição do secretário da Guerra, Henry Stimson, a que Quioto, a capital cultural do Japão, fosse o alvo da bomba. Terá sido por ter visitado a cidade em tempo de paz ou antes porque era vital não extremar a animosidade dos japoneses, já a pensar numa futura competição geopolítica com os soviéticos (por isso também foi excluída a opção de lançar a bomba sobre o palácio do imperador em Tóquio)? O livro vai respondendo o melhor que pode.."A BD, tal como já era no meu tempo - e eu aprendi a ler e cresci com ela - é uma fonte cativante de saberes. Hoje é um veículo de conhecimento, exibindo muita dela exigente rigor. É o caso de A Bomba e foi essa uma das razões para a Gradiva a ter selecionado, rigor científico e histórico como nos melhores livros da coleção Ciência Aberta. A segunda razão foi por ser um imperativo humano publicá-lo. Não se pode deixar esquecer! É preciso lembrar o horror e a ameaça que continuam a assombrar o mundo. Tal como ontem, há doidos e tiranos que não hesitarão em a usar se tiverem uma oportunidade para isso. A história que esta obra admirável conta parece não ter ainda terminado... E será que vale a pena lembrar que é uma obra para todos os que sabem ler? E as escolas, não sabem? A Gradiva continuará a editar BD, BD que queremos seja como nós", afirma Guilherme Valente, o homem que fez questão de editar este livro em Portugal..A Bomba (Volumes I e II) Alcante, Bollée e Rodier Gradiva 216 + 264 páginas 18 euros cada volume l.leonidio.ferreira@dn.pt
A coincidir esta semana com os 75 anos da Independência da Índia e do Paquistão, irmãos-inimigos com três guerras no historial, um estudo científico estimou que "mesmo um conflito militar nuclear limitado" entre ambos "mataria dois mil milhões de pessoas no mundo inteiro". E dos seis cenários estudados pela americana Rutgers University, esta guerra entre as duas potências da Ásia do Sul nem sequer seria a mais mortífera. Um conflito nuclear total entre os Estados Unidos e a Rússia, dois países que detêm juntos 90% do arsenal global, provocaria a morte de cinco mil milhões de pessoas, mais de metade da humanidade. Parte das vítimas seria causada pelas próprias bombas, mas a mortandade prosseguiria não só por causa da radioatividade, mas também por impactos vários, desde a total perturbação das redes de comércio alimentar mundial, até às imediatas alterações climáticas..O sucesso internacional que está a ter A Bomba, uma BD em dois volumes agora editada pela Gradiva, talvez se explique por esta consciência de que a ameaça de um conflito nuclear nunca foi tão forte desde o fim da Guerra Fria, sobretudo depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia e a NATO ter vindo em auxílio de Kiev, fornecendo armas, mas não tropas, a linha vermelha para Moscovo..Claro, ninguém entre os governantes mundiais fala abertamente do uso de armas nucleares, a não ser Kim Jong-un, da Coreia do Norte, país que já neste século se tornou o mais recente membro do clube nuclear, nove ao todo, se incluirmos Israel, que nunca o admitiu..A edição em francês de A Bomba ocorreu em 2020, quando se assinalaram os 75 anos dos ataques americanos a Hiroxima e Nagasaki no início de agosto de 1945, que resultaram dias depois na rendição do Japão, pondo fim à Segunda Guerra Mundial, quando na frente europeia tinha já terminado em maio, com a derrota da Alemanha Nazi. Os autores são, para o texto, o belga Didier Alcante e o francês Laurent-Frédéric Bollée e, para o desenho, o canadiano Denis Rodier, trio que produziu um livro excecional, pois à expressividade das imagens a preto e branco soma-se uma qualidade de escrita notável. E o rigor histórico.."Desde o início, considerámos que o assunto nos impunha um rigor total, tanto a nível histórico como científico. Fossem factos, datas, personagens, ou, igualmente, locais, construções, veículos, uniformes...Tudo foi verificado repetidamente. Obviamente, às vezes, por razões narrativas, precisámos de recriar os diálogos, voltar a encenar certos episódios, sintetizar várias reuniões numa só, este género de coisas. Mas, fundamentalmente, tudo o que acabou de ler é autêntico!", pode ler-se no posfácio..Entre os muitos artigos na imprensa internacional dedicado a este A Bomba, destaca-se um da edição em inglês do Mainichi, um dos grandes jornais japoneses, pois conta como Alcante, em criança, ficou impressionado com a visita que fez em 1981 a Hiroxima, a cidade bombardeada a 6 de agosto de 1945 (nos Estados Unidos era ainda dia 5, daí a divergência de datas por vezes nas efemérides), em especial com a sombra de uma pessoa que a explosão fixou numa parede. Quem já visitou esta cidade japonesa não consegue ficar indiferente à narrativa do sofrimento que foi então vivido, mesmo que Hiroxima tenha feito uma reconstrução notável, deixando as ruínas do antigo edifício de exposições, raro prédio de betão numa época de construções de madeira, como memorial, a célebre Cúpula Atómica..O Mainichi chama a atenção para o facto de já estar traduzido A Bomba, logo a sua mensagem de alerta, para as línguas das cinco grandes potências nucleares, ou seja Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França, na realidade os cinco vencedores da Segunda Guerra Mundial (a Rússia aqui considerada como herdeira da União Soviética, o que é tanto mais verdade no caso do arsenal nuclear, pois Ucrânia e Cazaquistão prescindiram dessa arma)..Além do rigor na descrição das grandes linhas de desenvolvimento da bomba pelos americanos, e da tentativa falhada pelos nazis, esta BD impressiona pelo modo como humaniza os intervenientes, caso de Leo Szilard, judeu húngaro que conseguiu a primeira reação nuclear em cadeia, mas que ajudando no Projeto Manhattan, tentou várias vezes alertar Franklin Roosevelt e depois Harry Truman para o risco da sua utilização, uma luta em que teve o apoio de Albert Einstein..Também é curiosa a forma como os autores nos apresentam psicologicamente Karl Fuchs, comunista alemão que a partir do complexo de Los Alamos passou informação que permitiu a Estaline testar uma bomba em 1949..E não falta a firme oposição do secretário da Guerra, Henry Stimson, a que Quioto, a capital cultural do Japão, fosse o alvo da bomba. Terá sido por ter visitado a cidade em tempo de paz ou antes porque era vital não extremar a animosidade dos japoneses, já a pensar numa futura competição geopolítica com os soviéticos (por isso também foi excluída a opção de lançar a bomba sobre o palácio do imperador em Tóquio)? O livro vai respondendo o melhor que pode.."A BD, tal como já era no meu tempo - e eu aprendi a ler e cresci com ela - é uma fonte cativante de saberes. Hoje é um veículo de conhecimento, exibindo muita dela exigente rigor. É o caso de A Bomba e foi essa uma das razões para a Gradiva a ter selecionado, rigor científico e histórico como nos melhores livros da coleção Ciência Aberta. A segunda razão foi por ser um imperativo humano publicá-lo. Não se pode deixar esquecer! É preciso lembrar o horror e a ameaça que continuam a assombrar o mundo. Tal como ontem, há doidos e tiranos que não hesitarão em a usar se tiverem uma oportunidade para isso. A história que esta obra admirável conta parece não ter ainda terminado... E será que vale a pena lembrar que é uma obra para todos os que sabem ler? E as escolas, não sabem? A Gradiva continuará a editar BD, BD que queremos seja como nós", afirma Guilherme Valente, o homem que fez questão de editar este livro em Portugal..A Bomba (Volumes I e II) Alcante, Bollée e Rodier Gradiva 216 + 264 páginas 18 euros cada volume l.leonidio.ferreira@dn.pt