A bolha
T1 nas Laranjeiras, em Lisboa. A renda é de 850 euros por mês - um preço alto, mas "normal" tendo em conta a zona, o prédio e a época que vivemos. O primeiro telefonema para o senhorio, que vive fora do país, serve para confirmar o valor e marcar a visita logo que ele chegue a Portugal. No dia combinado, e antes de pegar no carro, telefono para confirmar o encontro.
- Bom dia. Vou sair agora para aí.
- Bom dia. Pode vir, mas talvez seja melhor conversarmos uma coisa primeiro.
- Então?
- É que, como lhe disse, vivo fora de Portugal e ontem, quando cheguei, jantei com uns amigos e eles disseram-me que estava a pedir pouco pela casa.
- Mas nós já acertámos o preço.
- Bem sei, mas vou ter de subir o preço da renda.
- Muito bem. E para quanto?
- 1200 euros.
Do lado de cá, sobrava-me o silêncio. O que é que se responde a isto? Mas a casa virou um T3? Foi remodelada, entretanto? Não. Os amigos do senhorio convenceram-no que 850 euros por um T1 nas Laranjeiras (para quem não conhece Lisboa, não tem vista rio) é pouco. 1200 euros por uma casa com 80 metros quadrados. Uma sala, uma cozinha, um quarto e uma casa de banho. Ainda fiz mais uma tentativa para tentar compreender o racional desta súbita mudança de preço.
- Mas pediu alguma avaliação? Consultou uma imobiliária? Como é que chegou a esse valor?
- Não, é como lhe digo: os meus amigos dizem que, neste momento, com a procura que há, eu consigo arrendar a casa por muito mais dinheiro.
Agradeci, declinando o aumento de 350 euros na renda, e desliguei o telefone.
O episódio aconteceu há quase um ano e meio e veio-me à memória esta semana quando li o Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal. Diz o regulador que "na segunda metade de 2017 começaram a surgir alguns sinais, embora ainda muito limitados, de sobrevalorização dos preços no segmento imobiliário". Muito limitados? Claramente, o Banco de Portugal não conhece os amigos do meu ex-futuro-senhorio.
As previsões e as capacidades de análise do Banco de Portugal são, infelizmente, sobejamente conhecidas. O BES era um banco sólido até ao dia em que fechou as portas. E Ricardo Salgado era um banqueiro idóneo, mas deixou de o ser de um dia para o outro. São coisas que acontecem. E a lei - defende-se o governador - não o deixou fazer mais.
Esqueçamos por um momento este e outros episódios que põem em causa a competência do regulador e puxemos o filme atrás. Voltemos aos anos loucos antes da crise, em que os bancos financiavam a compra de casa a 100% e ainda emprestavam mais algum para o recheio. Anos de juros baixos - ainda que não tão baixos como agora - e de spreads quase nulos. Os anos em que qualquer pato bravo se transformava em empresário da construção, fazia uns caixotes e enchia-se de dinheiro, porque investir no imobiliário era assim uma espécie de novo ouro e toda a gente queria o seu quilate.
O dinheiro, na altura, chegava para tudo. Para comprar casa, mobilá-la e ainda para umas férias no Algarve. "O banco empresta e isto são só mais 50 euros por mês, não custa nada." Claro que correu mal. Muito mal. Com a crise veio o desemprego, com o desemprego começaram a chegar aos bancos molhos de chaves de casas que as pessoas já não conseguiam pagar e para as quais os bancos não tinham destino. São os tais NPL (non performing loans), ou créditos incobráveis, para os quais o Banco de Portugal vem, ainda agora, alertar: "Ostock de NPL ainda é significativo e a elevada exposição à dívida pública e ao imobiliário tornam o setor particularmente sensível a evoluções desfavoráveis nos preços destes ativos". Ou seja, os bancos ainda não se curaram da loucura anterior e já estão a meter-se noutra.
Senão vejamos: contava-me um amigo no outro dia que lhe ligaram do banco. "Para me dizerem que eu tinha um crédito pré--aprovado de 300 mil euros para comprar casa e se não queria aproveitar." O espanto na cara do meu amigo, que ainda está a pagar um empréstimo, foi equivalente ao meu quando li no Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal que "os bancos portugueses não são os principais dinamizadores do mercado imobiliário". Se isto não é dinamizar o mercado, não sei o que seja.
Ainda assim, o Banco de Portugal avisa que podemos estar à beira de uma bolha imobiliária. Carlos Costa não tem bem a certeza, mas suspeita que isso possa vir a acontecer. Talvez porque ainda não lhe pediram dez mil euros por metro quadrado, ou 150 mil euros por um apartamento do tamanho de um quarto. Talvez nunca ninguém tenha pedido a Carlos Costa 1200 euros por um T1 nas Laranjeiras, ou 600 euros por um quarto de estudante. Mas, se o governador do Banco de Portugal lesse as notícias, ficava a saber que não estamos apenas à beira de uma bolha. Já estamos dentro dela.
São as próprias empresas de mediação imobiliária - que são quem mais beneficia com os preços praticados - a assumir que eles são "inaceitáveis". E a lembrar o óbvio: tudo o que sobe, também desce e, normalmente, a descida é muito mais rápida do que a subida.
Os riscos de uma queda abrupta, de consequências imprevisíveis, são múltiplos. A começar pelo Banco Central Europeu, que já avisou que vai tirar o pé do travão e começar a retirar as ajudas à economia europeia. Passando pelos juros que vão subir - nada mais previsível - e por uma economia europeia que tende mais para a estagnação do que para um crescimento duradouro e sustentado. Pior, parte substancial do crescimento está assente no consumo das famílias e menos nas exportações. Se a tudo isto somarmos a instabilidade política em grandes economias europeias como Itália ou Espanha, um brexit que ainda ninguém sabe que fatura vai ter e um louco a governar a maior potência mundial do lado de lá do oceano, pode estar a criar-se a tempestade perfeita - e Portugal não conseguirá fugir a ela.
O que se está a passar no setor imobiliário devia fazer soar todas as campainhas. No Banco de Portugal, no governo e nas autarquias. Porque a questão, neste momento, não é se estamos ou não próximos de uma bolha. É se conseguimos pensar fora da bolha e aprender com os erros do passado.
Subdiretor da TSF