O presidente da Câmara de Palermo, capital da Sicília, já leva mais de 40 anos de vida política. E se Leoluca Orlando começou a lutar contra a máfia nos anos de 1980 ("não sei o que é ir comprar um jornal sem guarda-costas desde 1985"), agora é reconhecido por ser um acérrimo defensor dos direitos dos migrantes. Na sua cidade, todos são palermitanos, tenham ou não nascido lá..Leoluca Orlando, de 73 anos, é um dos galardoados deste ano com o Prémio Norte-Sul, do Conselho da Europa. É distinguido em reconhecimento dos seus esforços para apoiar a integração dos migrantes e pelo seu contributo para o reforço dos direitos humanos e do Estado de direito a nível local. A outra galardoada (há sempre um vencedor do hemisfério norte e outro do hemisfério sul) é a socióloga e ativista tunisina Nabila Hamza, especialista em assuntos de género e desenvolvimento social..O prémio será entregue nesta quarta-feira, às 12.00, pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, numa cerimónia na Assembleia da República que pode ser seguida online na plataforma do Fórum de Lisboa. Leoluca Orlando não estará em Lisboa, mas falou ao DN por telefone, lembrando o passado e falando das esperanças de futuro.. Antes da Primavera Árabe, como ficou conhecido o movimento de protestos contra os regimes de países árabes em 2010 e 2011, houve a Primavera de Palermo, de revolta contra a máfia que o senhor liderou na década de 1980, e o Renascimento de Palermo, nos anos de 1990. Qual foi a chave do sucesso? Nenhuma cidade europeia mudou tanto culturalmente como Palermo nos últimos 40 anos. Berlim mudou, mas mudou com as mudanças internacionais, com a queda da União Soviética, a queda do Muro de Berlim, a unificação da Alemanha. Nós não mudámos na Constituição, mudámos no coração, na mente, no estilo de vida. Foi uma mudança tremenda graças às pessoas, que finalmente abriram os olhos, abriram os ouvidos, abriram as bocas. Porque há 40 anos, quando comecei a minha atividade política, Palermo era governada pela máfia. A máfia era o rosto do Estado, era o rosto da Igreja, era o rosto dos empresários, era o rosto dos políticos. Antes de mim, os presidentes da câmara tinham medo dos líderes da máfia. Houve um que não tinha medo, ele era o líder da máfia. Sentava-se na cadeira onde agora eu me sento..CitaçãocitacaoAntes de mim, os presidentes da câmara tinham medo dos líderes da máfia. Houve um que não tinha medo, ele era o líder da máfia..O que mudou? Há 40 anos, quando comecei a minha experiência política, foi muito importante o que aconteceu a 6 de janeiro de 1980. Nesse dia, o governador da região da Sicília, Piersanti Mattarella, foi morto pela máfia, por políticos ligados à máfia..Ele era um amigo seu, certo? Eu era o conselheiro legal dele, ele tinha sido um jovem assistente do meu pai. Quando visitava o meu pai, conheci este jovem advogado que me deu muitas lições positivas. Quando começou a ser político, recusou ser advogado. E eu segui os passos dele. Quando fui eleito, deixei a minha atividade profissional como advogado. A minha mensagem era a de que iria dedicar a minha vida à cidade de Palermo..Mas falava de quando ele morreu... Quando Piersanti morreu, eu estava com o irmão dele, Sergio, o meu colega da universidade. Ele era um jovem professor de Lei Parlamentar e eu era professor de Lei Constitucional. Era muito novo. E todos os amigos do Piersanti me disseram: "Não podes deixar que ele morra uma segunda vez." És novo, o mais novo professor da universidade, não tens ligações aos políticos que mataram o Piersanti... Não fui capaz de dizer não e envolvi-me na política. Pode entender que a 31 de janeiro de 2015, quando o Sergio foi eleito presidente de Itália, lhe liguei e lhe disse: "Sergio, missão cumprida. Tu és o presidente da República de Itália. Eu ainda sou o presidente da Câmara de Palermo, e as pessoas que mataram o Piersanti já não governam a cidade de Palermo." Foi uma mudança tremenda..Vê-se que tem orgulho do que foi feito... Tenho orgulho de ser o presidente da Câmara de Palermo, a cidade onde Puglisi nasceu. Tenho orgulho de ser o presidente da câmara que organiza a maior Gay Pride do sul da Europa. Eu fui o primeiro presidente da câmara italiano a celebrar um casamento entre dois homossexuais, e sou católico; fi-lo em nome da liberdade das pessoas. Por isso pode imaginar que fico muito feliz em ter um Papa como Francisco..CitaçãocitacaoFui o primeiro presidente da câmara italiano a celebrar um casamento entre dois homossexuais, e sou católico..Falou em Puglisi. Quem era Puglisi? Pino Puglisi era um simples padre, outro amigo meu que foi morto pela máfia. Ele não era contra a máfia. Ele só pediu para ter uma escola para as crianças. Mas um simples padre pedir uma escola para as crianças no bairro de Brancaccio era mais perigoso do que as armas da polícia. Para o patrão da máfia era muito perigoso, porque ele estava a tentar mudar a mente das pessoas, educar as pessoas. E eles mataram-no. O Papa declarou-o um mártir da Igreja, que começou a mudar a posição em relação à máfia. Antes era não ver nada, não ouvir nada, não dizer nada. Muitos bispos tinham medo da máfia..O senhor teve medo em algum momento? Acho que tinha sempre medo. Ter medo é normal, é humano. A questão é libertarmo-nos desse medo. Neste ano recebi o prémio Freedom from Fear [liberdade do medo], que vou receber no próximo ano por causa da pandemia. É dado pelo rei e pela rainha da Holanda e pela Fundação Franklin D. Roosevelt. Só há uma forma de ficar livre do medo, que é cuidar; cuidar de nós, cuidar dos outros, respeitar os direitos humanos. Eu fui apoiado pelas pessoas, pelas mulheres, pelas crianças, pelas pessoais normais, que me protegem mais do que as armas dos guarda-costas. E eu não sei o que é ir comprar um jornal sem guarda-costas desde 1985. Porque eu não estava isolado. As pessoas apoiaram-me, porque eu digo o que eles queriam dizer mas não diziam, por medo, por outras razões. Palermo mudou culturalmente graças à máfia. A máfia matou muito, foi demasiado brutal, e obrigou as pessoas que não queriam ver a ver, as pessoas que não queriam abrir a boca a abri-la. As pessoas diziam não quero saber da máfia, não me interessa. A máfia usou o silêncio das pessoas honestas para governar a cidade..Era conhecido como alguém que lutava contra a máfia, mas mais recentemente ganhou também notoriedade pela luta pelos direitos dos migrantes. Porquê? Eu defendo os direitos humanos. O problema é que as pessoas esquecem-se de que os migrantes também são seres humanos. Se me perguntar quantos migrantes há em Palermo, eu não respondo 80 mil ou 100 mil. Eu respondo nenhum. Quem vive em Palermo é palermitano. Não faço qualquer distinção entre aqueles que nasceram em Palermo e os que vieram para Palermo. Peço desculpa, mas quando vier a Palermo, vai ser uma palermitana. Claro que pode sair quando quiser. Dito isto, Palermo foi no ano passado a cidade mais segura de Itália. Incrível. Palermo é excitante, tem tantas cores, é um mosaico. Temos problemas económicos, mas somos atrativos. Nem pode imaginar as pessoas que querem vir investir em Palermo, tornámo-nos uma cidade turística. Mas depois veio a pandemia e o confinamento..CitaçãocitacaoSe me perguntar quantos migrantes há em Palermo, eu não respondo 80 mil ou 100 mil. Eu respondo nenhum. Quem vive em Palermo é palermitano. Não faço qualquer distinção..O que é que a Carta de Palermo defende? A Carta de Palermo foi proposta por mim em 2015. A minha ideia é que a mobilidade internacional é um direito humano. Ninguém pode ser condenado por deixar o local onde os pais quiseram que nascesse. Por isso, acho que a autorização de residência é a nova escravidão, é a nova pena de morte. Eu percebo que vai demorar muito tempo até ficarmos livres dela. Também foi assim com a escravidão ou com a pena de morte. Sabia que formalmente a pena de morte só foi abolida no Vaticano em 2001? Eu sou católico, mas completamente contra o Vaticano. Em alguns casos é o inimigo. Não posso aceitar um estado teocrático em nome da religião..CitaçãocitacaoA mobilidade internacional é um direito humano. Ninguém pode ser condenado por deixar o local onde os pais quiseram que nascesse. Por isso, acho que a autorização de residência é a nova escravidão, é a nova pena de morte..Falou em escravidão, palavra forte... A Europa terá um novo julgamento de Nuremberga. O primeiro foi contra o nazismo e o fascismo. O segundo vai ser contra o genocídio no Mediterrâneo. Os nossos avós podiam dizer "nós não sabíamos o que estava a acontecer". Nós não podemos dizer isso. Palermo não quer ser julgada nesse segundo julgamento de Nuremberga. Não saberemos se o novo julgamento será nas salas dos tribunais ou nos livros de História, mas existirá. A mobilidade internacional mudou os nossos fundamentos, as nossas opiniões sobre identidade. Na minha visão, a identidade é o primeiro direito humano. E sou completamente contra a lei do sangue. Não sou palermitano porque o meu pai e a minha mãe são palermitanos, porque tenho sangue palermitano. Sou palermitano porque decido ser palermitano. Os migrantes têm o mesmo direito à identidade. Eu sou obrigado a ser italiano porque o meu pai e a minha mãe me obrigaram a nascer em Itália? Não me pediram autorização para isso... Não posso ficar satisfeito por a pátria ser o local onde a minha mãe e o meu pai quiseram que eu nascesse. É o mesmo de alguém que vem do Bangladesh. Eles têm o direito a escolher se querem que a sua pátria seja o Bangladesh, a Itália ou a Alemanha. E acredite, só com liberdade de escolha é que alguém escolhe que a sua pátria seja a Itália. Só por amor..CitaçãocitacaoA Europa terá um novo julgamento de Nuremberga. O primeiro foi contra o nazismo e o fascismo. O segundo vai ser contra o genocídio no Mediterrâneo..As suas opiniões sobre os migrantes chamaram a atenção do ex-ministro do Interior, Matteo Salvini... Eu não sou um concorrente de Salvini. Eu jogo voleibol, ele joga críquete. É um desporto extracomunitário [risos]. Há dois anos, nas eleições contra mim, o candidato do partido de Salvini teve 2,3%. Eu ganhei na primeira volta, sem segunda volta. As pessoas percebem que eu falo claramente. Quando, no ano passado, resolvi violar a lei Salvini, dar a toda a gente a autorização de residência em Palermo, deixar as pessoas serem visíveis... Porque se algumas destas pessoas ficam invisíveis, aí é que é perigoso. Eu decidi ir contra a lei e dar-lhes residência. Salvini no ano passado disse: "Como ministro do Interior vou enviar o Exército para parar o Orlando." Um ano passou e o Exército ainda não chegou a Palermo..E ele já não está no Governo... Eu fui professor de Direito Constitucional, eu li os artigos da Constituição. Eu sei que era contra a lei de Salvini, mas estava a respeitar a Constituição. E o Tribunal Constitucional declarou, passados oito meses, que a lei Salvini não era constitucional. Deu-me razão. O populismo não é um substantivo, é um adjetivo. Conheço comunistas que são populistas, conheço fascistas que não são populistas. Quem é populista? É alguém que não respeita o tempo. É alguém dizer que é possível mudar rapidamente. Se em 1980 tivéssemos dito que Palermo iria ficar livre da máfia em três meses, seríamos populistas. Precisámos de 40 anos. O populista é alguém que não respeita o tempo, porque não respeita a democracia. A democracia não pode ser "eu tenho razão e ninguém me pode contradizer". Democracia é: "Eu tenho uma opinião e espero que partilhes a minha opinião." Isso é democracia. Agora finalmente a Europa é Europa. Temos de agradecer. Porque agora os populistas não têm espaço. Eles perderam. No ano passado toda a agente tinha medo de que os populistas pudessem governar a Europa. A eleição de David Sassoli, o meu amigo, para presidente do Parlamento Europeu e a eleição de Ursula von der Leyen para presidente da Comissão Europeia pôs os populistas na periferia. Por cinco anos, a Europa será isso. E eles serão minoria..CitaçãocitacaoA democracia não pode ser "eu tenho razão e ninguém me pode contradizer". Democracia é "eu tenho uma opinião e espero que partilhes dela"."..Comparando com a luta contra a máfia e o trabalho a favor dos migrantes, como é lutar contra a pandemia? Esta pandemia mandou a mensagem de que o direito à saúde é um direito humano. O vírus é muito global, mais global do que a II Guerra Mundial. Mais países e mais pessoas estão envolvidos com o vírus do que estiveram na II Guerra Mundial. O outro global é o digital. Mas o vírus ajudou a União Europeia (UE) a descobrir finalmente os direitos humanos. Como a máfia, que matou demasiadas pessoas e obrigou as outras a abrir os olhos, o vírus matou demasiadas pessoas, mas as pessoas abriram os olhos. Pela primeira vez, a UE está discutir um tema que não é dinheiro. É fantástico. Tenho a certeza de que a UE ficará melhor. O vírus obrigou a UE a olhar para os direitos humanos e a cuidar dos migrantes. Os migrantes lembram-nos dos nossos direitos. São os nossos direitos, não os deles. Sou otimista. Não gosto da palavra "extracomunitário", porque isso é uma divisão. E o Mediterrâneo não é um mar a dividir as pessoas, é um continente de água. E Palermo é uma cidade do Médio Oriente na Europa, é Istambul, é Jerusalém. Queremos ser uma ponte entre a Europa e o Mediterrâneo, um verdadeiro ponto de encontro..CitaçãocitacaoComo a máfia, que matou demasiadas pessoas e obrigou as outras a abrir os olhos, o vírus matou demasiadas pessoas, mas as pessoas abriram os olhos..Ao longo da sua vida já recebeu vários prémios. O que significa para si este Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa? Eu sou um político. Eu sou eleito e reeleito pelo povo por dizer o que digo. Por isso considero que este prémio é para a cidade de Palermo, não para mim. Eu tento ser um ser humano. Como costumo dizer, combinar raízes e asas. Só ter asas é ser transportado pelo vento, só ter raízes é morrer dentro dessas raízes. É preciso combinar as duas coisas. Tenho de dizer que tenho muito orgulho deste prémio que vem do Conselho da Europa. Não vem da União Europeia, mas de uma União Europeia muito mais alargada. Nós, em Palermo, temos o Conselho das Culturas..O que é o Conselho das Culturas? Nós não temos vice-presidente da câmara para a Cultura, temos para as Culturas, no plural. Temos o Conselho das Culturas, para o qual só podem ser eleitas pessoas que vivem em Palermo e não têm passaporte italiano. São 21 pessoas de 12 nacionalidades. Entre eles, nove são mulheres. O primeiro presidente era um médico da Palestina, a segunda era uma mulher de Cabo Verde, e agora é um homem da Costa do Marfim, é negro, negro. Nós somos contra o racismo e o pior racismo que existe é contra aqueles que têm a cor da pele mais negra. As pessoas dizem que são contra os romenos porque eles são roma, ciganos. São contra os roma porque são sujos. Dizem que são contra os alemães porque são nazis. São contra os sicilianos porque são mafiosos. Mas são contra os negros porque são negros..Também há por vezes questões religiosas... Eu acredito em Deus, estou preparado para morrer por ele. Mas, por favor, não me pergunte o nome de Deus. Porque eu quando estou na mesquita rezo a Alá, quando estou na sinagoga rezo a Javé. Quando estou com o meu amigo, o palermitano honorário o Dalai Lama, digo que rezo a Buda. Quando estou numa igreja católica rezo a Jesus Cristo. Não estou a pensar na minha segunda vida. É para mandar uma mensagem de que não podemos justificar a nossa divisão em nome de Deus..CitaçãocitacaoEu acredito em Deus, estou preparado para morrer por ele. Mas, por favor, não me pergunte o nome de Deus.