Lugar dos Dois Caminhos, 5 de Abril.Há pouco dei por mim a ler as letras pequeninas de um contrato. Era um contrato com uma dessas empresas do costume, com que assinamos um contrato de fornecimento de serviços, mudamos de residência ou transferimos a titularidade e ficamos agarrados para a vida. Imaginei-me a ser visitado por um mafioso sorridente, um dia destes - só para me dizer que eu tinha uma mulher bonita e uns cães amorosos, claro. De maneira que peguei na lupa, porque já nem os óculos novos chegam, e pus-me a ler as letrinhas pequenas..Lembrei-me de quando o meu avô era vivo. Foi ele quem pela primeira vez me chamou a atenção para as letrinhas pequeninas de um contrato. Já nem me lembro de que contrato falávamos: quando ele morreu eu tinha 20 anos, pelo que o contrato devia ser dele. A certa altura disse:.- Uma pessoa tem de ler as letrinhas, porque isto às vezes há gajos que..O meu avô era um homem de São Jorge, muito antigo. Só dizia "gajo" quando se tratava de um caso sério. Olhei para ele e achei que, se calhar, estava a ficar paranóico. Ler contratos com uma lupa era como os tipos da Walt Disney desenhavam o Tio Patinhas. Gozo puro. Havia gente para tudo, claro, até para enfiar cláusulas matreiras nas letrinhas de um contrato, mas era preciso azar para nos enganarem logo a nós..Outros tempos. Hoje, uma pessoa assina um contrato e já sabe que não é possível haver uma cláusula matreira escondida algures: é garantido que haverá. Várias cláusulas, todas legais, protegidas legalmente e legalmente dissimuladas. Nem vale a pena ler à lupa. Mesmo que essa pessoa escape às cláusulas expressas, será apanhada pelos vazios legais. E, se escapar aos vazios legais, é agarrada pelos procedimentos..A verdade é esta: a dissimulação deixou de constituir uma excepção no jogo. A dissimulação, agora, é o jogo. Na economia business-to-client contemporânea, não só já não está em causa uma necessidade a suprir, mas já nem sequer está em causa convencer o cliente de que tem uma necessidade a suprir. A ordem é: fisgar, amarrar e sacar tudo o que for possível o mais depressa possível. Vendedor que não saque do cliente o dobro do valor correspondente ao que este pretendia consumir (e consumiu) nem merece tal nome..Está em todo o lado, isto. Ontem, por exemplo, fiz download de uma aplicação que gostaria que me ajudasse a deixar de fumar. Trouxe a aplicação de uma plataforma onde nem o preço me mostraram. Já sabia que ia pagar, mas paciência: era por uma boa causa. Chegada a aplicação, não só tive de pagar pela compra como tive de pagar novamente para a accionar. Como havia duas opções e não sabia qual escolher, decidi ir pelo período de testes gratuitos, que agendou automaticamente a entrada em vigor da opção mais cara para dali a sete dias..Agora é sempre assim, e não só no mercado digital. Os meus telemóveis, por exemplo. Custam uma fortuna porque dependo muito deles. Como não suporto falar ao telefone, preciso de tudo o mais a funcionar bem. Uso e-mails, redes sociais, aplicações, notas. Pois dali a dois anos, ainda o telefone brilha como novo, já tenho de comprar outro, porque as actualizações de software dão cabo do hardware. Desta vez, aliás, foi até mais requintado: ainda vão conseguir vender-me uma nova bateria antes de me venderem o telemóvel seguinte..Dos fornecedores de telecomunicações, então, nem se fala. Uma pessoa adquire este serviço, mas depois há o imposto x, a box y e o extra z. No fim, fica a pagar mais do que ao fornecedor anterior, embora tenha downloads mais rápidos do que o Usain Bolt (dos quais o software dará cabo daqui a seis meses). Entretanto, ligam-nos do call center - não queremos nada e pedimos que apaguem o nosso número. Ligam-nos do call center - não queremos nada e pedimos que apaguem o nosso número. Ligam-nos do call center - não queremos nada, pedimos que apaguem o nosso número e ameaçamos com uma reclamação. Ligam-nos não só desse call center, mas de outro call center ainda, ao qual o primeiro, entretanto, vendeu a base de dados - fazer o quê?.Nem mudar de número vale a pena: há-de haver no novo contrato uma alínea microscópica com uma caixinha esbatida que não assinalaremos devidamente. No dia seguinte já o número estará não só naquele call center, mas em vários call centers. Nomes das pessoas? Não vale a pena guardar. Umas falam português de Portugal, outras português do Brasil, outras português de Cabo Verde - não importa. Nem estão cá. São apenas uma voz no telefone. A ausência de rosto é a nova alma do negócio. O segredo já deu o que tinha a dar. Vivemos o tempo da dissimulação..Ao pé disto, a pequena vigarice dos comerciantes tradicionais era uma brincadeira. Metiam dois e quinhentos no avio, roubavam 50 gramas nas azeitonas, acrescentavam um pacote de manteiga ao rol. Ficávamos furiosos. E continuamos a ficar, porque têm rosto: aquele merceeiro é um sacana inominável e nunca mais vou àquela mercearia. Já o nosso fornecedor de comunicações, ou telefones, ou seguros fanar-nos 30 euros por mês, ou agrilhoar-nos a uma renda desnecessária de 1500 de dois em dois anos, ou ser confrontado com um sinistro e pôr-se na alheta - tudo isso, enfim, paciência, já se sabe como é..Não é capitalismo, isto. Isto já é outra coisa.