A atribulada viagem do "último navio à face da terra" chega ao fim em Marselha
Quando o cruzeiro Magnifica deixou Génova, na Itália, a 5 de janeiro, o mundo era muito diferente do que é hoje. A "nova pneumonia", como era chamada na altura, ainda não tinha nome. A Organização Mundial da Saúde ainda não tinha registo de mortos para a doença e apenas 59 pessoas tinham sido infetadas, todas em Wuhan, na China. A maioria dos 1 760 passageiros do Magnifica - principalmente italianos, franceses e alemães mas também 26 portugueses - não tinham ouvido falar do vírus. E assim continuaram por algum tempo, entusiasmados com a viagem, enquanto assistiam o pôr-do-sol no Bar del Sole do barco ou comiam no restaurante Quattro Venti.
Muito mudou desde então. Apanhado a meio da pandemia, o Magnifica viu vários portos serem-lhe fechados. Sem ter para onde ir, o comandante Roberto Leotta decidiu interromper a viagem em março em Sidney, na Austrália, e o navio de propriedade suíça iniciou uma longa jornada para casa. Os passageiros, acostumados a um novo porto todas as semanas, estiveram pela última vez em terra há seis semanas. Até esta segunda-feira terem, finalmente, terminado a sua viagem em Marselha, França.
Entre os passageiros estavam 26 portugueses. Um deles, o sinólogo António Graça de Abreu, disse à Lusa que os portugueses irão sair do navio, onde não foi detetado qualquer caso da covid-19, para dois autocarros com destino a Portugal. A partida está marcada para as 14:00 de terça-feira (13:00 em Portugal continental) e a viagem será "praticamente direta, sem contactos com ninguém, até à Gare do Oriente", em Lisboa, sublinhou o professor universitário.
Chamavam-lhe "o último navio à face da terra" - o que não é exato. Tal como o Magnifica, há mais dois navios que estão a terminar as suas viagens. Um deles é o Costa Deliziosa que está a desembarcar esta segunda-feira 168 passageiros espanhóis em Barcelona antes de partir para Génova para finalmente atracar e permitir a saída dos restantes 1 600 passageiros.
Também o Pacific Princess atraca esta segunda-feira em Los Angeles. O barco, que também partiu a 5 de janeiro para um cruzeiro mundial de 111 dias a partir de Fort Lauderdale, tem 115 passageiros a bordo depois de fazer paragens na Austrália a 21 de março para desembarcar o maior número de passageiros e em Honolulu na semana passada para permitir que quatro moradores do Havai ficassem em casa.
Acredita-se que estes três navios estejam livres de covid-19. Mas nem por isso as suas viagens foram menos atribuladas.
Ao comando do Magnifica estava o capitão Roberto Leotta, da pequena cidade de Riposto, na Sicília. O capitão Leotta já pilota cruzeiros há 32 anos, depois de ter trabalhado durante três anos em navios-tanque e um na marinha italiana. Como muitas pessoas de Riposto, o seu pai e avô eram marinheiros. "É algo que está no meu ADN", contou ele à BBC.
Depois de deixar a Europa, o navio parou em Cabo Verde, antes de atravessar o Atlântico. Quando chegou ao Brasil a 19 de janeiro, o vírus já era notícia mas ainda estava muito distante, a situação ainda não era preocupante. O navio deixou o Chile a 21 de fevereiro, chegando a Pitcairn, no Pacífico Sul, três dias depois. Aí, a situação complicou-se. Os portos estavam a fechar as portas. Havia navios em quarentena e alguns dos passageiros morreram. O caso mais falado foi o do Diamond Princess, que ficou retido no porto de Yokohama, no Japão, com 3700 pessoas a bordo.
O Magnifica deveria chegar a Aitutaki a 2 de março. Mas à medida que o coronavírus se aproximava, aumentavam as preocupações locais. Apesar de a economia da ilha estar muito dependente do turismo e dos cruzeiros que ali atracam, as autoridades locais pediram ao governo nacional - as Ilhas Cook - que proibisse todos os cruzeiros. O navio, que estava livre de vírus, foi autorizado a atracar na capital, Rarotonga, mas não em Aitutaki.
Esta foi a primeira vez que a covid-19 mudou os planos dos passageiros do MSC Magnifica. Mas tudo ainda parecia dentro da normalidade. Em Auckland, na Nova Zelândia, - a paragem a seguir às Ilhas Cook - o suíço Andy Gerner foi a terra e bebeu uma cerveja ao sol, em Napier, admirou a arquitetura art déco, em Wellington, andou no teleférico.
Mas em Hobart, na Tasmânia, a 14 de março, já ninguém pôde sair.
Mas o grande problema foi Sydney, na Austrália: Gerber tinha reservado uma churrascaria para comemorar com um grupo de amigos o seu 70.º aniversário mas a festa teve que ser feita a bordo. O navio tinha permissão para atracar mas o capitão Leotta sabia que os passageiros podiam voltar com algo mais do que lembranças. "Decidimos que era melhor para os nossos passageiros permanecerem a bordo com segurança", conta o responsável. "Foi terrível!", recorda Andy Gerber. "Mas depois do choque, ficámos gratos por o capitão nos ter proibido de ir a terra, pois isso significava que estávamos 99,999% limpos [do vírus]".
"Estava claro", recorda o capitão Leotta, "que basicamente não havia para onde ir". E assim, em Sydney, o capitão confirmou a notícia: o cruzeiro mundial tinha acabado e estava na hora de voltar para casa. Alguns passageiros quiseram desembarcar ali mesmo e fazer a viagem da Austrália para casa pelos seus próprios meios. Mas a maioria aceitou regressar no barco - mais cinco semanas a bordo, sem autorização para passear e num clima de grande apreensão.
Mas as dificuldades iriam continuar.
Quando um navio de cruzeiro quer atracar, deve fornecer ao porto registos médicos, para provar que não há doenças contagiosas a bordo. Quando o Magnifica se aproximou de Fremantle, na Austrália Ocidental, os registos mostravam que cerca de 250 pessoas tinha visitado o gabinete médico nas últimas duas semanas, sobretudo para pedir analgésicos ou fazer curativos. Não havia sinal de covid-19 a bordo.
O Magnifica queria apenas reabastecer em Fremantle - não desembarcar. Tudo estava a correr bem. Mas, nessa altura, o governador da Austrália Ocidental, Mark McGowan, anunciou que não ia permitir que o navio atracasse. "Atualmente, mais de 250 passageiros [no Magnifica] relataram doenças respiratórias superiores", anunciou McGowan em conferência de imprensa. "Hoje de manhã entrei em contacto com o primeiro-ministro. Não permitirei que o que aconteceu em Sydney aconteça aqui. Não permitiremos que passageiros ou tripulantes passeiem pelas ruas. Esta é uma posição inegociável."
McGowan tinha informações erradas. A empresa insistiu que não havia doenças respiratórias ou sintomas de gripe a bordo. Apesar de tudo, quando chegou a Fremantle, o navio foi recebido pela polícia e pelos serviços de fronteira - para garantir que ninguém saísse - e por um grupo de manifestantes.
"Foi uma desilusão, antes de mais porque eram notícias falsas. E foram publicadas em todo o mundo", queixa-se o capitão Leotta. O Magnifica foi autorizado a reabastecer em Fremantle, antes de seguir a sua viagem.
Mas o cruzeiro continuou a ser notícia.
Depois da Austrália, o plano do Magnifica era navegar para o Dubai para uma "paragem técnica". Mas como isso também se revelou impossível, decidiram ir a Colombo, capital do Sri Lanka. Nessa altura, o cozinheiro do navio, Anura Herath, de 31 anos, que trabalha na empresa de cruzeiros MSC desde agosto de 2017, pediu para ficar em casa - com medo de, depois, não ter autorização para voltar ao Sri Lanka quando a viagem terminasse. Embora o pedido parecesse fazer sentido, o Sri Lanka não queria autorizar ninguém a desembarcar.
Assim, a 4 de abril - dois dias antes de Colombo - Anura, usando a roupa branca de chef, gravou uma mensagem de vídeo de 94 segundos para o presidente e primeiro-ministro do Sri Lanka. "Deixe-me sair", pediu. "Eu sou o único do Sri Lanka a bordo. Será muito difícil voltar de Itália."
Depois de publicar a mensagem, Anura foi trabalhar. E no final do dia de trabalho, quando voltou à sua cabina, recebeu uma mensagem da família a dizer-lhe para ele ir ver o que estava a acontecer no Facebook: o vídeo estava a ser partilhado e comentado por milhares de pessoas. "Tantas pessoas ligaram", conta ele. "Foi como um sonho. Tudo foi muito rápido." Pressionado, o presidente do Sri Lanka autorizou a marinha levou Anura para terra. Uma outra passageira, alemã, ficou no Sri Lanka para receber cuidados médicos - e acabou por morrer, embora não haja qualquer indicação que tenha sido vítima de covid-19.
Para Andy Gerber, que completou 70 anos no porto de Sydney, a vida a bordo "do último navio de cruzeiro da Terra" foi agradável, apesar da falta de visitas à costa. Mesmo sem passeios em terra, ainda havia muito para fazer: "ginásio, jogos, espetáculos, aulas de dança... Temos duas piscinas e um clima perfeito, muito para comer e beber, e fizemos muitos amigos - especialmente durante todos esses dias no mar".
Também o comandante vai guardar boas memórias desta viagem, apesar de tudo., "Encontramo-nos [globalmente] numa situação em que a covid-19 isola pessoas e distancia as pessoas. Aqui aconteceu o oposto. Tornámo-nos como uma família -os nossos passageiros e a nossa equipa juntos. O espírito tem sido lindo."
Os passageiros do Magnifica estão aliviados por finalmente chegarem a casa. O mesmo não podem dizer os passageiros do Costa Deliziosa, que vai atracar em Itália. Para estes, o pesadelo está agora a começar. "O regresso a casa significará uma mudança radical, brutal", disse um passageiro à AP. "Foi o medo que fez muitos passageiros quererem permanecer a bordo"