O coletivo de juízes que compunham o Tribunal de Justiça de Cuiabá, capital do estado do Mato Grosso, foi unânime naquela manhã de dezembro de 2018. "Absurda e desproporcional", disse um dos magistrados, ao analisar a sentença em primeira instância que condenava um vereador da cidade a 18 anos em regime prisional fechado por desvio de dinheiro. "Não é porque um réu errou que precisa ser espezinhado", acrescentou outro. "De onde sai tanta criatividade na 7ª vara criminal para se chegar a estas penas exasperadas ao limite e sem fundamentação?", completou um terceiro..A 7ª vara criminal era liderada por Selma Arruda, uma juíza que, de tanto condenar com mão pesada políticos locais, se tornou popular ao ponto de concorrer a uma vaga no Senado Federal. Os "marqueteiros" de campanha não hesitaram no epíteto: "Moro de saias", numa alusão, considerada machista mas de efeito publicitário garantido, a Sergio Moro, o juiz que liderou a Operação Lava Jato e chegou a ministro da justiça e da segurança no governo de Jair Bolsonaro..E Selma venceu mesmo a corrida ao Senado - vinculada ao Partido Social Liberal (PSL), o mesmo de Jair Bolsonaro, vencedor, naquele sufrágio, da eleição para presidente da República, foi a mais votada do Mato Grosso..Contribuíram decisivamente para o sucesso da eleição da magistrada de 57 anos, o discurso de campanha, cheio de referências à luta dela contra a corrupção, o aparato mediático de nove seguranças pessoais em seu redor, por causa das supostas ameaças de morte que recebia dos poderosos que mandou para a cadeia, a tal alcunha "Moro de saias" e as generosas contribuições de apoiantes, incluindo do seu suplente, o fazendeiro Gilberto Possamai..Como uma das estrelas maiores da "nova política" - a corrente que, impulsionada por Bolsonaro, elegeu um batalhão de ex-juízes, de ex-pastores, de ex-oficiais do exército e de ex-polícias - Selma tomou posse em Brasília em fevereiro de 2019..A lua-de-mel com a política durou, no entanto, meros dois meses. Em abril, o Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso suspendeu o seu mandato por abuso de poder económico e uso de saco azul [caixa dois, na terminologia local] na campanha. Em dezembro, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou a decisão. E, na quarta-feira, foi a vez de a direção do Senado, por quatro votos a um, determinar a perda de mandato da "Moro de saias" e a inelegibilidade por um período de oito anos..Ela é acusada de não ter informado a Justiça Eleitoral de uma doação de 1,5 milhões de reais [perto de 300 mil euros ao câmbio atual] de Possamai. E de, com esse dinheiro, contratar institutos de sondagens e de marketing - como o que cunhou o cognome "Moro de saias" - antes do início da campanha formal..Essas práticas são consideradas, segundo a lei, crime de "saco azul" e de abuso de poder económico - ironicamente a acusação que pendeu sobre tantos dos acusados na Lava Jato..Já a defesa da senadora alega que o dinheiro não foi usado em atos de campanha e que os gastos não necessitavam de ser declarados.."É um dinheiro privado, uma relação entre particulares. Ele poderia ter doado para ela, inclusivamente. A acusação tenta criar uma cortina de fumo questionando a origem do dinheiro. A origem é lícita, o primeiro suplente é um agricultor conhecido no estado, com património expressivo", contrapôs o advogado da ex-senadora Bonini Guedes..Ainda antes da sentença final, Selma foi ao púlpito do Senado defender-se. Em lágrimas, reclamou de "injustiça" e disse que se recusaria a usar a "tornozeleira [pulseira] eletrónica" que tantos dos réus que passaram pelas suas mãos foram obrigados a carregar..Durante a curta experiência em Brasília, destacou-se por brigar com Flávio Bolsonaro, colega senador e filho do presidente da República de cuja candidatura a juíza era indiscutível apoiante..Empenhada na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da "Lava Toga", operação que investiga ilícitos no poder judicial e cujo nome remete à Lava Jato, Selma Arruda recebeu um dia um telefonema de Flávio "aos gritos". Segundo ela, "ele foi grosseiro, bastante mal-educado, parecia que me estava dando uma ordem"..Supostamente, Flávio considerava que essa CPI iria incomodar os juízes e, dessa forma, prejudicar "a estabilidade do governo" - o filho de Bolsonaro é acusado de lavagem de dinheiro e de "rachadinha", a prática de desviar o dinheiro dos assessores. Por causa da discussão, saiu do PSL e alistou-se no Podemos..Noutra ocasião, Selma foi cáustica numa observação a propósito da namorada de Lula da Silva, a sociólogo Janja da Silva. O antigo presidente, ao ser solto, disse em jeito de piada que, mesmo preso arranjou uma namorada; nas redes sociais, a ex-senadora afirmou que "isso não é nenhuma proeza. Mulher "cadeieira", barata e porcaria tem é muita. Nenhum preso fica solteiro. Fui juíza criminal por 22 anos e sei disso. E com a grana que você tem guardada por aí, duvido se não tivesse fila para te namorar, lindão!"..Logo após perder o mandato na quarta-feira, voltou a intervir publicamente ao afirmar, em nota, que se vai dedicar à advocacia "e lutar para que outros cidadãos não tenham os seus direitos cerceados como ocorreu" no seu caso..Terá de enfrentar, talvez, coletivos de juízes como o do Tribunal de Justiça de Cuiabá, que considerava "absurdas" as suas sentenças. A propósito, o coletivo reduziu a pena de 18 anos em regime fechado dada por Selma àquele vereador da cidade para cinco anos e três meses em regime semiaberto.