A "árvore de Anne Frank" já floresce em Lisboa
É das primeiras árvores a florir em Lisboa no fim do Inverno e no princípio da Primavera aquela que Bagão Félix mostra na Rua António de Serpa, em meio à poluição de centenas de automóveis. Mas o castanheiro-da-índia não se preocupa com as condições adversas: "É uma árvore que se dá muito bem com a cidade." É o que explica enquanto refere o nome em latim da espécie que escolheu neste Dia Mundial de Árvore: a Aesculus x, que resulta da junção entre a Aesculus hippocastanum com a prima Aesculus pavia.
O castanheiro-da-índia tem uma especial particularidade que fez com que o autor do novo livro a ser lançado nos próximos dias, Raízes de Vida, o escolhesse para protagonizar uma das muitas histórias que conta sobre o reino vegetal: "Era a árvore que Anne Frank via do cubículo no sótão da casa onde esteve dois anos escondida antes de ser deportada para um campo de concentração [durante a II Guerra Mundial e a ocupação nazi]. Tinha em frente da janela um castanheiro-da-índia e registou várias vezes no seu diário a sua presença, sendo através dele que percebia a mudança das estações."
Bagão Félix escolheu 42 palavras para discorrer sobre as árvores e as plantas no seu novo livro, que conta com a colaboração de Ana Paula Figueira. Aquela que coube ao capítulo onde está Anne Frank é "Tolerância", que associa à intolerância que vê no mundo: "Ela via na árvore a possibilidade de dialogar com o mundo em absoluta tolerância." Entre os restantes 41 tópicos estão, entre outros, esperança, ética, solidariedade ou ócio.
O ex-ministro confessa que não precisou de fazer muita investigação para escrever este livro: "Já conhecia muitas destas histórias porque a minha investigação botânica tem 40 anos. É um reencontro em que todos os dias procuro saber mais e ainda ontem comprei um livro sobre ervas alentejanas num alfarrabista. Como dizia Mark Twain: 'Demorei três anos a preparar o meu improviso'; eu levei quatro décadas para saber algumas destas histórias."
Não é só o castanheiro-da-índia onde se deixa fotografar que aprecia em Lisboa: "Sou apaixonado pelas magnólias no verão, dos jacarandás violáceos em Lisboa , principalmente, da oliveira. Que é a árvore mais parecida com o Homem. Mas não sou esquisito em relação às outras árvores e plantas, gosto de todas." Enquanto toca no tronco da árvore avisa: "As árvores não tem costas." Também recorda uma situação dos novos tempos: "Se Robinson Crusoe naufragasse hoje não precisava da ética tradicional porque não tinha mais ninguém com quem se relacionar, mas necessitaria de ter uma ética ambiental para se relacionar com a natureza à sua volta."
Para Bagão Félix não é estranho que os lisboetas se cruzem com ele e perguntem 'que árvore é esta?'. Mas nos seus passeios pela capital, ou pelo país, garante que lhe custa "ver tantos erros técnicos nas plantas que escolhem". E, com um sorriso, diz: "Sou botânico amador, mas vejo os erros. Que a natureza resolve muitas vezes, ainda que maliciosamente o problema. Foi o caso do escaravelho que veio matar a maior parte das palmeiras, uma árvore que ainda é aceitável no Algarve mas quando a sua presença é no Minho está contra natura."
Olha para a natureza como uma "coisa" perfeita. Acredita nisso?
Acredito na busca da perfeição da relação entre o homem e a natureza, ou seja temos muito a aprender com a natureza e esta bastante a pedir ao Homem. É nesse casamento que procurei neste livro interligar valores e atitudes humanas em 42 palavras com exemplos da vida vegetal e mostrar que, obviamente de maneira diferente, chegaremos a uma conclusão de que há muitos pontos comuns. Este livro também foi uma maneira de agradecer ao mundo vegetal aquilo que nos oferece: a possibilidade de vivermos neste planeta. Se não fossem as árvores e as plantas, não teríamos o oxigénio suficiente para habitar este mundo. Tenho um sentimento de gratidão para com elas.
Mesmo que a humanidade trate mal o planeta?
Sim, basta ver a desflorestação em curso por todo o lado - temos uma visão de curto prazo. Existe uma relação muito taticista na política com a própria natureza e só acordamos para os problemas em cima deles em vez de os prevenir. Através de histórias mais ou menos inventadas, tentei fazer um aviso de que a natureza tem de ser prevenida dos ataques dos homens.
Estas histórias partem de epígrafes inesperadas?
Temos escritores notáveis que eram amantes apaixonados da natureza, por exemplo Goethe, um botanista dedicado. Ou Shakespeare, que falava dos jardins como a expressão da beleza natural. Hoje, em vários países, está a acontecer uma certa preocupação em elevar a vida das árvores e das plantas a um patamar não de coisas mas de seres que têm sensibilidade e precisam de ser cuidados porque também podem cuidar de nós.
Isso enquanto se abatem árvores em Lisboa!
Felizmente, já existem movimentos de defesa que se opõem ao abate de uma árvore sem uma justificação. No balanço do que é bom e mau nas redes sociais está aí um dos aspetos positivos. É uma consciência nova que está a ganhar alguma importância.
O leitor deste livro espera pelo que lhe vai dar?
Quem me acompanha enquanto leitor já adivinha ao que vai. O meu anterior livro era com árvores em discurso direto, elas próprias a falar. Aqui, a linguagem botânica é um mero instrumento para falar de valores. Através de seis grupos - a raiz, caule, ramos, flores, frutos e folhas - e que a cada uma liguei certos valores: amor, ambição, preguiça, paz.... É um jogo de 42 palavras cruzadas entre os valores que suportam e o que a botânica pode exemplificar. O livro não é sobre botânica, mas sim sobre valores e com uma linguagem em que uso muitas vezes o humor, pois há duas coisas que não prescindo na minha vida: sentido de humor e o prazer nos jogos de palavras.
Que escritores o influenciaram?
Miguel Torga e Vergilio Ferreira são a minha ambiência na fase atual da vida. Sou um homem que sempre viveu na cidade mas gosta da aldeia e Torga dizia que na cidade "somos ficções entre as ficções e na aldeia somos criaturas entre criaturas". Este livro traduz essa minha simbiose. Sou daqueles que estranho que as frutas existam em todas as épocas, porque a melhor fruta é aquela que se apanha no seu tempo. As crianças da cidade nem sabem onde estão as laranjeiras ou de onde vem o kiwi. Sou de um tempo em que a fruta era por estações, ou seja quando vinha era desejada porque era acompanhada de uma estação nova. Procuro de forma subliminar fazer a ponte entre as minhas diferentes facetas ao longo da vida.
Quem é o leitor para este livro?
Percebo que é preciso ter um certo estado de espírito para ler este livro, embora tenha textos curtos, com mais ou menos humor, mas também quero lutar contra a ideia da literatura utilitarista. Quero ler porque gosto e não porque é útil. É gostar ou não, mesmo que muitas pessoas não estejam preparadas para isso. Uma das coisas boas da velhice é que agora escolho o que gosto. Sou eu que determino o que quero fazer - é a vantagem de já não ter patrão -, porque até ao fim dos meus dias não quero perder a curiosidade e poder continuar a espantar-me.
Entre o que o espanta há coisas pela negativa, como os incêndios?
Olho com profunda angústia e critico que se reaja à natureza apenas por causa de uma catástrofe e nunca antes. É com um ar incrédulo que vejo pessoas que estão neste domínio, mesmo na política, e que não percebem o que está acontecer. Nada compreendem! Custou-me ver o nosso presidente da República, uma pessoa admirável e fulgurante, na televisão a arrancar eucaliptos-bebés. Com força e com vigor como se estivesse a fazer uma grande coisa. Estava antes a fazer uma péssima atuação e a dar um mau exemplo, porque esta guerra contra o eucalipto está errada - uma árvore que nem existia na maior parte do país que ardeu. Depois, foi o primeiro-ministro a pôr no meio do pinhal de Leiria uns sobreiros... Uma patetice completa, de quem nada sabe sobre o clima e o ordenamento. É só para as televisões e incomoda-me que a política tenha capturado o marketing da natureza. A natureza não precisa de marketing, apenas ser cuidada.
Por isso compara o "aquecimento global com o esquecimento global"?
Há uma linha muito ténue entre ambos, pois há uns incêndios e pouco depois já se esqueceu. Todos os anos a parte destruída da Amazónia corresponde a um território igual ao do da Suíça. Quando acordarmos pode ser tarde.
Nota-se neste livro a presença de um diálogo religioso. Liga bem com a natureza?
Admito que por este livro perpassa sempre um sentimento religioso, a ideia de um Criador e o respeito que tenho por Ele. Sou católico e acredito no Criador mesmo que não possa provar a sua existência. Procuro viver como se exista, que é um pouco como vivo este casamento entre a natureza e nós. Acho que o Criador torna mais bela a relação entre a natureza e a pessoa humana.
Raízes da Vida
António Bagão Félix
com Ana Paula Figueira
Editora Clube do Autor