A arte de filmar sem desperdício 

Grande Prémio do Júri no Festival de Berlim 2022, <em>A Romancista e o Seu Filme</em> é um dos dois títulos de Hong Sang-soo em estreia esta semana. A vitamina que faz bem à alma e ajuda a pensar o "estado do cinema".
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Numa cena de A Romancista e o Seu Filme, uma jovem ensina a personagem do título a reproduzir em linguagem gestual esta expressão simples: "O dia ainda está radioso, mas não tarda escurece. Enquanto o dia dura, aproveitemos uma boa caminhada." O momento é belíssimo, com a repetição de gestos em silêncio e a protagonista deliciada com a sua aprendizagem fresca. Mas entretidos com esta imagem, quase nos passa despercebida a mensagem que contém: na expressão em jeito de haiku está desenhada a forma do filme. Isto é, a duração de um dia e como aproveitá-lo (há inclusive uma caminhada a certa altura).

Parece insignificante, mas é de doces e amargas "insignificâncias" que se faz o cinema de Hong Sang-soo, apresentando as suas variações dramáticas em produções regulares, quase sempre com os mesmos atores e invariavelmente com conversas à mesa, regadas a álcool, com ou sem moderação. A Romancista e o Seu Filme é uma das duas obras recentes do realizador sul-coreano que chegam agora às salas portuguesas - a outra chama-se Lá em Cima -, cumprindo uma lógica de distribuição que tem procurado acompanhar o próprio ritmo invulgar a que Hong San-soo produz filmes. E escolho-o, por assim dizer, pelo modo como encapsula a verdade deste cinema, nos seus pequenos momentos de desconforto social, de embriaguez serena e de lucidez repentina.

A propósito, outra cena que não resisto a citar é aquela, já quase a meio do filme, em que um realizador diz a uma jovem atriz que é um "grande desperdício" ela não estar a "aproveitar o seu talento" na representação, levando a um rechaço enérgico da romancista, que dá uma descompostura ao realizador por este designar como desperdício as opções de uma adulta... Que jovem atriz é essa? Kim Min-hee, a companheira de Sang-soo na vida real, rosto assíduo dos seus filmes, que de facto se afastou do cinema comercial nos últimos anos (e que é aqui ternamente homenageada; atente-se no final). E quem interpreta a romancista? Lee Hye-yeong, a atriz que fez brilhar o magnífico título anterior, Perante o Teu Rosto (2021).

A sinopse de A Romancista e o Seu Filme pode ajudar a pôr estes momentos em contexto: trata-se de uma romancista, claro, em visita à livraria de uma amiga numa pequena cidade, que acaba por passear na zona e encontrar um realizador seu conhecido, este, por sua vez, reconhecendo na rua a jovem atriz com quem, no fim de contas, a romancista vai querer fazer um filme independente...

Hong Sang-soo cria assim um circuito de conversas - pessoas a encontrarem um assunto, entre elogios mútuos -, com diálogos graciosos, quais miniaturas de emoções sofisticadas, que refletem a sua própria filosofia de produção. Neste caso, a sua específica forma de olhar o temperamento criativo e o ócio, em planos quase sempre estáticos, por vezes interrompidos por zooms ou movimentos panorâmicos. É o cinema a ruminar o cinema, a exibir o porquê de não ser necessário muito dinheiro para se fazer um filme que satisfaça tanto como a ida a um restaurante secreto recomendado por um amigo. E porque não quero que lhe falte nada, fica a dica.

dnot@dn.pt

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