'A Ama Perfeita'. A mão perigosa que embala o berço
Se em Roma, de Alfonso Cuáron, havia uma declarada carta de amor às amas, aqui, nesta adaptação do Prix Goncourt 2016, Chanson Douce, de Leila Slimani, a ideia é inversa: mostrar o quão perigoso pode ser confiar os filhos a uma estranha. Neste caso, uma mulher de meia-idade que vive num apartamento sinistro nos arredores de Paris e que guarda segredos de uma vida frustrada.
Tudo se passa com uma ama que chega para cuidar de dois filhos de um jovem casal liberal. O resultado é um thriller bem competente realizado com vínculo feminino por Lucie Borleteau. Acima de tudo, A Ama Perfeita, título que respeita a estratégia promocional internacional dos produtores, é uma ocasião para Karin Viard, uma das maiores atrizes francesas, brilhar a grande altura. É ela quem é subtil e assustadora no papel da ama que é capaz de tudo para atingir a perfeição junto das criações. Uma interpretação em que Viard se deixa ir num caldeirão de sentimentos opostos. É das grandes favoritas a vencer o César.
Em Paris, quando o DN conversou com a realizadora, era a própria que reclamava a necessidade de Karin Viard ser nomeada. Agora, juntamente com as atrizes do aguardado Retrato de Uma Rapariga em Chamas, é uma front-runner natural. "Fomos ambas muito felizes neste trabalho mútuo. A Karin nunca acreditou que eu a pudesse manipular e eu confiei sempre nela. Confesso que odeio conflitos numa rodagem e sou dos que têm a convicção de que um ator nunca pode ser uma marioneta, antes pelo contrário: tem de conseguir trazer coisas para o filme, tem de ser um criador. Mas a decisão final será sempre minha - sou eu quem está na mesa de montagem, enquanto depois das datas de rodagem um ator desaparece. Com a Karin foi diferente, como é uma grande atriz, tudo o que propôs era interessante. Antes de começarmos a rodar fizemos leituras e ela estava muito por dentro da personagem. Pude puxar muito por ela!", conta-nos depois de segredar que parte da confiança com a atriz partia do facto de muitas cenas com a bebé serem uma prova de confiança para além do fator artístico. Afinal de contas, o bebé que vemos em muitas cenas é a filha da realizadora. E aí o filme arrisca e petisca: há um tempo prolongado na cumplicidade entre a bebé e a atriz. As cenas ganham um peso dramático que não é a chapa 5 de um thriller vulgar.
Realizado com uma intensidade na vertigem do sufoco, A Ama Perfeita representa um bom exemplo de como é possível fazer um thriller aberto sem subverter uma visão de autor. E na autoria desta cineasta cabem observações muito políticas sobre o lugar da mãe trabalhadora na sociedade. "Quis adaptar Chanson Douce ao cinema porque poderia fazer um tipo de filme muito francês, quase na veia de um Chabrol com um naturalismo muito social e, ao mesmo tempo, preservar uma certa qualidade do texto literário que nos leva para uma zona mais de conto, quase mitológica. De alguma forma, quis ir por uma veia mais louca que é comum ao cinema de género, entre o fantástico e o terror. O meu propósito foi misturar tudo e não reclamar nenhuma dessas vias em exclusivo. Isso não é nada comum no panorama cinematográfico francês." Segundo Borleteau, a génese do romance (bem mais explícito do que este filme) monta uma sensação de vertigem: "Aqui as personagens são extremamente ambivalentes e complexas, essa foi a minha bússola no trabalho de adaptação."
No fim da conversa, Lucie abordou a questão que vai mudar o panorama do audiovisual em França: a obrigatoriedade de financiamento por parte da Netflix no cinema francês: "Espero que tudo corra pelo melhor. A Netflix, pela lei, tem de financiar o cinema e, para tal, tem de alterar a sua política de não estrearem em sala as suas produções. Isso para mim é essencial! Estou na boa com o facto de haver gente que não se importa de ver os filmes Netflix no computador, mas sou apologista das salas. Vai ser uma revolução das grandes, ainda que acredite que temos de ter muito cuidado aqui em França - o nosso sistema funciona...Temos uma excelente diversidade na produção, dos filmes para o grande público ao cinema para revelar novos cineastas de autor. Temos um bom ecossistema, vamos ver como outras plataformas podem fazer parte dele."
*** Bom