9-1. A decisão que manteve o futebol na Nicarágua por entre críticas e fé em Deus
Na Nicarágua o futebol não parou. A pandemia de covid-19 paralisou o desporto em praticamente todo o mundo, mas naquele país da América Central de seis milhões de habitantes, situado entre o oceano Pacífico e o mar do Caribe, a bola continua a rolar nos modestos campos de futebol. Uma imposição do presidente Daniel Ortega, para passar uma imagem de normalidade do país para o exterior, dizem uns. Outros defendem que os casos de covid-19 são tão poucos que não fazia sentido o desporto parar - existem nove infetados e uma vítima mortal.
As casas de apostas, sem grandes opções para oferecer aos clientes, recorreram a este modesto campeonato (o país está na 151.ª posição do ranking FIFA) para continuar a segurar apostadores. E um pouco por todo o mundo, a liga até aqui sem qualquer expressão foi alvo de notícias e reportagens pela primeira vez. Afinal, a par da Bielorrússia, é dos poucos países onde ainda se joga à bola. De praticamente desconhecido, aquele campeonato ganhou mais visibilidade.
Foi assim que há poucos dias foi notícia um pouco por todo o mundo que um jogo entre a Juventus Manágua e o Real Madriz (são mesmo assim os nomes dos clubes, a fazer lembrar os dois colossos europeus) foi interrompido aos 71 minutos porque os futebolistas de uma das equipas decidiram abandonar o campo em protesto contra um golo que consideraram irregular. E foi também por a bola continuar a rolar na Nicarágua que no início de abril uma foto se tornou viral, com os jogadores do Diriangén FC de máscara e com distanciamento uns dos outros na habitual fotografia antes do jogo - alguns atuaram alguns minutos de máscara e de luvas.
"Talvez tenhamos agora mais visibilidade, porque somos dos poucos países onde ainda se joga futebol. É normal que os media prestem mais atenção. Sabemos das nossas limitações, somos um país sem grande expressão no futebol. Mas sinceramente não sei se estamos a passar uma imagem positiva ou negativa para o exterior. Por um lado, há o facto de termos futebol e de quem quiser poder seguir-nos. Mas também pode ser visto de uma forma depreciativa, porque todos os outros pararam e nós não", disse ao DN o treinador Flávio da Silva, brasileiro de 46 anos que já foi selecionador da Nicarágua e que agora orienta o Diriangén FC.
Os receios foram muitos, sobretudo da parte dos jogadores estrangeiros que atuam naquele campeonato. Apesar dos poucos casos conhecidos no país, as notícias alarmantes da pandemia a nível mundial, que levaram ao cancelamento de praticamente todos os eventos desportivos em todo o planeta, fizeram soar os alarmes. Mas nem isso parou o futebol na Nicarágua.
Leandro Figueroa, jogador argentino que atua no Walter Ferretti, foi uma das vozes mais críticas quando há umas semanas viu o desporto ser cancelado em todo mundo. "Supostamente há mais infetados, mas estão a ser ocultados, talvez para não criar alarme. Um companheiro nosso tem familiares que trabalham num hospital e disse que há mais infetados. Andamos com máscara, temos de tomar precauções. O vírus está a chegar e há medo por tudo aquilo que vemos no resto do mundo. É incrível que ainda se jogue. Eu ia para os treinos de autocarro, mas agora ando no meu carro, porque os autocarros vão cheios e é um risco estar em contacto com outras pessoas", referiu a um jornal argentino.
O treinador Flávio Silva, que também foi contra a continuidade do campeonato, explicou ao DN como tudo aconteceu. "Houve uma reunião entre todos os clubes para decidir o que ia acontecer na sequência da pandemia de covid-19. E a minha equipa mostrou-se contra a continuidade das competições. Mas a votação terminou nove contra um, ou seja, fomos os únicos a defender que o futebol devia ser suspenso. Os outros clubes votaram todos a favor da continuidade", contou. "Seguimos apenas as indicações do Ministério da Saúde. As notícias são de que só temos nove casos, todos importados. O campeonato não parou, mas os jogos são à porta fechada", acrescentou.
Flávio contraria um pouco a tese dos que defendem que a decisão foi governamental, isto porque o país que tem Daniel Ortega como presidente desde 2007 continua a levar uma vida normal, com as escolas e as universidades a funcionar, e com quarentena obrigatória apenas para quem chega do estrangeiro - sim, as fronteiras mantêm-se abertas. Daniel Ortega reapareceu nesta semana, após um mês sem dar notícias, e num discurso na televisão foi perentório: "No meio desta pandemia, não se deixou de trabalhar, porque aqui se deixamos de trabalhar o país morre", afirmou, alegando que o coronavírus é "um sinal de Deus" para dizer ao mundo que está a ir por um mau caminho.
"Não se pode dizer que foi uma decisão [de não parar o futebol] do governo. A decisão foi tomada pela Liga, mas tomada com base em indicações do Ministério da Saúde. Eu entendo de futebol, não entendo de propagação viral. Agora, vemos os exemplos do que se está a passar nos outros países. E parece-me lógico que quanto maior for o isolamento, menos infetados vão existir. Logo, em minha opinião, teria sido mais seguro o campeonato ser suspenso, para evitar um problema maior no futuro", defende o treinador do Diriangén FC.
Christiano Fernandes, 34 anos, joga no Managua FC, o líder do campeonato. Chegou à Nicarágua em 2015 para representar o Real Estelí. Mas está há quatro anos no clube da capital. Homem de fé, este brasileiro que afirma ser um grande fã de Cristiano Ronaldo diz que tenta levar uma vida normal. E pede a Deus que o vírus não se propague na Nicarágua. "Não tenho medo. Nem eu nem os meus companheiros. Temos muita fé em Deus. Felizmente aqui são muito poucos os casos de pessoas infetadas com covid-19 e podemos continuar a levar uma vida mais ou menos normal. Com alguns cuidados, obviamente. Mas acho que aqui na Nicarágua somos abençoados. Nós, os futebolistas, temos de dar graças a Deus por podermos continuar a fazer aquilo que mais gostamos, que é jogar futebol", referiu ao DN. "Mas se um dia o Ministério da Saúde nos mandar parar, obviamente vamos acatar as ordens. Mas para já julgo que não existe perigo. Temos apenas nove casos de pessoas infetadas", acrescentou.
"Seguimos as recomendações das autoridades. Usamos gel, lavamos as mãos... e, claro, os jogos são realizados à porta fechada. A maior preocupação é que não haja grandes aglomerados de pessoas. Durante os jogos, porque o futebol é um desporto de contacto, é óbvio que continua a existir. No meu caso, continuo a jogar como sempre. Não pode deixar de haver contacto. Não há como evitar. Mas temos confiança uns nos outros. Assim como eu tenho cuidado com a minha higiene, acredito que os meus colegas e adversários também", explicou.
Christiano Fernandes acompanha com preocupação as notícias alarmantes sobre infetados e mortes noutros países, até porque tem toda a família no Brasil. "Lá, a situação é muito pior. Falo todos os dias com a minha mulher e com a minha filha. Estão preocupadas, claro. Mas a vida não pode parar. Eles têm todos os cuidados. Acredito que em breve teremos uma vacina e vamos vencer este vírus que virou o mundo ao contrário. Rezo todos os dias por isso. Tenho fé de que dentro de alguns meses tudo possa voltar ao normal. Os desportos em geral e a vida das pessoas. É uma questão de ter fé em Deus", diz.
Ao contrário do treinador Flávio Silva, o médio defensivo do Managua FC acredita que o facto de o futebol não ter parado na Nicarágua pode dar maior visibilidade ao país. E pela positiva: "Tenho visto muitas notícias e reportagens em jornais brasileiros. Não nos ligavam nenhuma e agora já falam de nós. No meio de todos este flagelo que está a acontecer no mundo, é uma coisa positiva. Espero que olhem para o nosso futebol de outra forma, porque aqui também há qualidade. Temos jogadores com potencial para poderem jogar na Europa. É uma oportunidade para nos verem."