48 pessoas e as suas causas. A Santa Casa muda vidas e isso deu um livro
São 48, no total. A lista passa pela história de Nuno, que ficou tetraplégico depois de um amigo ter disparado acidentalmente uma arma; pela forma como o teatro salvou o jovem Alexandre; até pela terapeuta que ensina pessoas a falar com os aviões; também pela Rita, que põe os turistas a fazer voluntariado. Desde 2018 que esta cerca de meia centena de histórias foi sendo publicada no Diário e Notícias e na TSF, no âmbito de uma parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, cujo objetivo era dar rosto às causas da instituição. Estão também agora imortalizadas num livro, "Pessoas & Causas", apresentado esta terça-feira, em Lisboa, numa cerimónia onde se debateu o futuro da economia social no país.
Já lá vão 195 anos desde que as paredes onde decorreu esta terça-feira a conferência se ergueram. Ninguém nega a antiguidade do Teatro Thalia, situado nas Laranjeiras, e a arquitetura que decidiram manter viva no seu interior não deixa mentir. Desde a sua edificação, este teatro já passou por várias restruturações, assistiu à ação de diversos governos e à revolução de outras tantas gerações. Não tantas, ainda assim, como aquelas às quais a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa assistiu, desde a sua fundação, no ano de 1498.
Passados 520 anos, "a missão continua a mesma": dá-se de comer a quem tem fome, dá-se de beber a quem tem sede, veste-se os nus, dá-se pousada aos peregrinos (sem-abrigo), assiste-se aos enfermos, visita-se os presos e enterra-se os mortos. Ao todo, são sete as "obras corporais" às quais a instituição desde sempre se compromete, tendo como missão melhorar a vida de quem os procura. De todas estas vidas que tocaram, 48 ficaram agora escritas, como forma de "devolver à sociedade uma parte daquilo que faz" na Santa Casa, começou por dizer o provedor da instituição, Edmundo Martinho.
Nas palavras do subdiretor do Diário de Notícias, Leonídio Paulo Ferreira, o trabalho desenvolvido nesta parceria permitiu mostrar que estas pessoas "não são números, são histórias". Histórias que "o jornalismo tem de mostrar", mas que "por vezes não tem acesso" senão através deste encontro de vontades. O trabalho final, disse o chairman da Global Media Group (ao qual pertencem o DN e a TSF), Daniel Proença de Carvalho, permite uma "consciência de dever cumprido".
Mas se a missão continua a mesma de antigamente, os desafios, esses, são atualmente muito diferentes dos antigos. Para o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares, resumem-se em quase tantos quanto as obras corporais da instituição.
Começa pela gestão dos "talentos" que lá trabalham, lembrando que se trata de um setor que não remunera como os funcionários merecem - grande parte ganha o ordenado mínimo, num setor que representa mais de 6% da população portuguesa empregue remunerada.
Passa pelas mudanças na demografia portuguesa, com uma população cada vez mais envelhecida, "o que vai trazer ao perfil das instituições", mais "habituadas a lidar com deficiências e crianças". Contudo, também toca as mudanças no território português, hoje "completamente diferentes", com realidades compartimentadas entre Porto e Lisboa, contra o resto do país.
Os tempos são outros e é também um desafio a forma como as instituições podem jogar "com as novas tecnologias", conciliando as suas potencialidades com as das máquinas informatizadas. Não é só um tempo mais tecnológico, é também um tempo onde se impõe a "tolerância", com o aparecimento de "visões mais populistas", disse António Tavares. Este é, na sua opinião, "o grande desafio da década".
Por último, o provedor aponta como desafiador "o que o Estado esperará destas instituições" e como ambos funcionarão de forma a garantir a sustentabilidade do setor social. Para a questão da sustentabilidade financeira das Misericórdias, o provedor do Porto confessa não conhecer a solução para reagir ao futuro. Sabe apenas que "a escala" sobre a qual trabalham torna o processo mais complicado e, por isso, "as instituições têm utilizado cada vez mais uma lógica de serviços partilhados", que "o Estado nem sempre consegue acompanhar".
O trabalho deverá exatamente, na perspetiva de Edmundo Martinho, passar por uma "concentração de esforços", partilhando os serviços em vez de os multiplicar. E a prestação de serviços seria solução? "Tenho um sentimento misto", confessa o provedor da Misericórdia de Lisboa. Não tem dúvidas de que "é importante que tal possa desenvolver-se", desde que com a garantia de "uma segregação muito clara entre o papel da instituição no mercado e o papel social", de forma a evitar aquilo que chama de "seleção negativa". "Temos de evitar pôr em causa o enquadramento constitucional da economia social. Até para evitar uma seleção negativa: quando tiver de escolher entre dois cidadãos, escolher aquele que me garante uma maior comparticipação", frisa.
Os provedores partilharam o palco com o professor Carlos Farinha Rodrigues, num debate moderado por Paulo Tavares, da TSF. Na ótica do docente associado do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG), "o principal ponto de partida" para discutir o futuro é realmente "a insuficiência financeira", devido às "novas formas de exclusão e desigualdade" que "cada vez mais" assolam atualmente a sociedade. "Se é verdade que nos últimos estudos temos evoluído [positivamente] nos indicadores de pobreza, também é verdade que temos novas formas de a medir", alerta. Para fazer face à pobreza e à desigualdade, "é preciso mudar a forma como se mede" as mesmas.
De uma coisa António Tavares, por outro lado, não tem dúvidas: a questão da sustentabilidade financeira das instituições sociais "vai demorar muito tempo a resolver, porque nem sempre é pondo [mais] dinheiro que se resolve".
Na conferência desta terça-feira estiveram ainda presentes o antigo ministro do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social, José António Vieira da Silva, bem como a atual, Ana Mendes Godinho.