O administrador da Porto Editora viveu nos últimos meses devido à pandemia aquilo que se poderá comparar à história de um livro de terror: não publicar livros e adiar a quase totalidade dos lançamentos de mais de dezena e meia de editoras e chancelas, bem com ter as portas das mais de 50 livrarias do maior grupo editorial português fechadas até há poucas semanas. Para Vasco Teixeira a situação pode descrever-se assim: "Diria que estamos mais próximos de um livro de ficção científica, em que se vive sob a permanente ameaça e não se sabe muito bem o que nos espera em cada virar de página." Acrescenta que "os tempos estão muito difíceis para o setor do livro em Portugal, penso mesmo que é a mais grave crise de que há memória". Mesmo tendo uma área de vendas online, a Wook, esta não compensou as perdas do atendimento físico, apesar de proporcionar o acesso a toda a edição portuguesa e a muita estrangeira. "Houve um crescimento nas vendas online, mas longe de compensar as perdas registadas no mercado", refere..Estamos a pouco mais de cem horas da abertura da Feira do Livro de Lisboa e no dia seguinte da do Porto. Estas iniciativas vão compensar a paragem no setor devido à pandemia ou o segundo trimestre pode ser dado como inexistente? De forma alguma, as perdas são demasiado grandes para que as Feiras do Livro de Lisboa e Porto proporcionem qualquer compensação. Quando muito, estes eventos poderão estimular a reaproximação das pessoas com os livros, uma vez que as restrições ao comércio estão a dificultar esse processo. Esperava-se que os leitores regressassem em força às livrarias reabertas..Surpreendeu-o a fraca adesão que parece ter acontecido? Não me surpreendeu. Desde a reabertura das livrarias, as regras têm-se revelado demasiado restritivas no que concerne ao número de clientes por metro quadrado. Existem diferentes pesos e medidas entre a restauração e o comércio, o que é incompreensível, com claro prejuízo para as livrarias..Esta crise teve maior impacto em Portugal ou acompanha o que acontece lá fora? São poucos os países onde a pandemia não teve impacto no setor do livro. Mas Portugal registou das maiores quebras verificadas nos países europeus, consequência do processo de confinamento, naturalmente, bem como do menor poder de compra, dos fracos hábitos de leitura e, para piorar ainda mais o cenário, da combinação de dois fatores particularmente negativos: a ausência de uma estratégia de apoio de emergência para esta área e as restrições exageradas relacionadas com o acesso das pessoas às livrarias..Será possível dar uma resposta por parte da indústria do livro a esta crise económica que se instalou durante a pandemia ou o setor vai regredir? Infelizmente, a indústria do livro sempre teve de contar quase exclusivamente com a sua capacidade de enfrentar e ultrapassar as crises. Mas esta que se vive - há notícias de insolvências - é particularmente dura e temo que os próximos tempos não tragam quaisquer melhorias..A Porto Editora adiou os pagamentos das livrarias. Era a única solução para as livrarias independentes? Era a que estava ao nosso alcance, uma medida com efeitos imediatos que aliviou a tesouraria de muitas livrarias um pouco por todo o país. Mas é pouco comparado com o que é necessário fazer, especialmente da parte do Ministério da Cultura, que permanece completamente alheado desta realidade..O Estado não criou entretanto soluções para o setor e as editoras estão apenas por sua conta? O Ministério da Cultura anunciou, em abril, uma verba de 400 mil euros para apoiar editoras e livrarias, o que é insignificante face às dificuldades. Como disse a APEL na altura, o ministério abandonou à sua sorte o setor do livro. E eu subscrevo essa afirmação..Porque não deu o Estado uma resposta? A resposta a essa questão deve ser dada pela ministra da Cultura..A Porto Editora convive bastante com as escolas. Quando os estabelecimentos fecharam foi o momento em que ficou consciente da hecatombe que se aproximava? Antes desse momento, acompanhávamos com atenção o que se estava a passar noutros países através de contactos com os nossos congéneres europeus, especialmente em Itália. Os editores italianos foram partilhando informação, dando-nos uma noção cada vez mais clara do cenário que iríamos enfrentar. Por isso, foi possível dar respostas imediatas, nomeadamente no apoio à comunidade educativa, com a abertura da nossa plataforma de ensino à distância, a Escola Virtual, a todos os alunos, professores e encarregados de educação..Até que ponto esta pandemia vai alterar a produção de manuais escolares? As circunstâncias vividas colocaram o foco nas soluções digitais, no entanto a Porto Editora há muitos anos que já fez esse caminho e se preparou para qualquer cenário. A Escola Virtual existe desde 2005 e há mais de uma década que disponibilizamos as versões digitais de todos os nossos manuais escolares. Todo o trabalho editorial nesta área é feito de forma a que todos os recursos, em papel e digital, sejam complementares e coerentes..A relação com professores e alunos também mudou? Foi uma realidade nova para todos e que exigiu capacidade de adaptação. É de louvar o trabalho dos professores porque deram prova de um espírito admirável de missão e de dedicação. Como também é de reconhecer o esforço que muitos pais fizeram para ajudar os filhos, muitas vezes conjugando com o teletrabalho. Preocupa-me o impacto nos alunos, não só a nível das aprendizagens, mas também ao nível da socialização e do desenvolvimento das suas competências pessoais..O que houve de negativo? Há um ponto que emergiu e que exige a maior atenção: a desigualdade que se verificou no acesso à educação nas famílias que não dispunham de meios tecnológicos para o efeito. As estimativas apontam para cerca de 40% de alunos que, de alguma forma, ficaram prejudicados no contexto do Ensino@Distância. É um número demasiado pesado. Na educação, o ensino presencial é insubstituível..Assistimos ao regresso da telescola e de outras formas digitais de ensino. Essa novidade, que se poderá manter no reinício das aulas, irá alterar a oferta da editora? A telescola regressou e com o apoio da Porto Editora, que disponibilizou gratuitamente os seus recursos educativos, digitais e físicos. Todos os dias viram-se nos televisores ora conteúdos da Escola Virtual ora referências dos nossos manuais. Isso prova que estamos preparados para qualquer cenário, pois o objetivo é disponibilizar os melhores conteúdos educativos, em diferentes suportes, para responder a quaisquer necessidades e diferentes metodologias..A pandemia tornou os manuais digitais uma realidade ou os alunos precisam ainda do livro em papel? Paradoxalmente, a pandemia também mostrou a importância dos manuais em papel, que foram usados por todos os alunos, houvesse ou não computador por perto. De facto, não há um país, mesmo o mais avançado, que tenha eliminado o livro escolar físico. Aposta-se, sim, na complementaridade de recursos, uma vez que o livro e o digital proporcionam processos diferentes, mas que se complementam. O ideal será que ambos os suportes estejam acessíveis nas aprendizagens dos alunos..A disseminação crescente dos suportes digitais nas escolas não eliminará o livro físico a médio prazo? No primeiro ciclo, o livro físico manter-se-á e compreensivelmente, pois são anos de iniciação na aprendizagem da escrita, da leitura e de desenvolvimento da motricidade. Nos seguintes, é difícil prever, mas acredito que prevalecerão as soluções mistas..Costuma dizer que o setor do manual escolar está "regulado em excesso". Justifica-se esta tão grande atenção oficial ao setor? O que digo é que a pandemia clarificou, espero que definitivamente, a seriedade e o valor acrescentado do trabalho que é feito pelos editores escolares, que já há algum tempo se assumem como produtores de conteúdos educativos com forte carácter de inovação. Espero que o preconceito injusto que havia sobre este setor tenha desaparecido. Num momento de enorme emergência, no preciso instante em que se pedia uma solução, demos a melhor resposta. A Porto Editora abriu a Escola Virtual para todos, disponibilizámos gratuitamente conteúdos para a telescola, tornámos acessíveis milhares de recursos a todos os professores do país para ajudar no trabalho à distância com os alunos. Os nossos atos falam por nós e o resultado é inquestionável..É contra a definição oficial dos preços dos manuais? Pelo contrário: estando definido que os manuais escolares vigoram por seis anos, entendo que, após a seleção, é salutar haver regulação dos preços..Defende uma nova política dos preços dos manuais escolares no pós-covid? A política dos preços dos manuais escolares terá de contemplar os formatos digitais, um processo que, na verdade, já se iniciara antes deste contexto..Vêm de longe as lutas da editora com os ministros da Educação devido à produção escolar. Isso levou-o em 2016 a rebater as declarações da ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues. Começava o artigo a referir que "num tempo em que o populismo cresce". Voltaria a iniciar uma resposta ao governo deste modo? A Dra. Maria de Lurdes Rodrigues não era ministra em 2016, pelo que não me dirigia ao governo. Mas quero deixar claro o seguinte: a editora não tem lutas com ministros da Educação. A existência de discordâncias é perfeitamente natural e assumida com frontalidade, respeito institucional e serenidade. Tenho a certeza de que a generalidade dos titulares do Ministério da Educação reconhecerão na Porto Editora uma postura incontestável de seriedade e de compromisso com o bom funcionamento do sistema de ensino, de uma vontade firme de contribuir para o desenvolvimento da educação em Portugal..Já criticou a ministra da Cultura do atual governo por insuficiência de apoio à crise provocada pela covid. Os governos mudam mas a política para o setor não se altera? Infelizmente, é o caso. Olhando para os anos mais recentes, pode dizer-se que Francisco José Viegas e Jorge Barreto Xavier foram secretários de Estado da Cultura sensíveis ao setor mas com muitas limitações orçamentais devido ao tempo que vivíamos. Acredito que João Soares teria sido um excelente ministro da Cultura, mas, infelizmente, esteve pouco tempo no cargo..Continua a achar que nos anos em que há eleições o livro escolar torna-se uma "arma de arremesso"? Esse facto era por demais evidente quer nas eleições legislativas quer nas eleições autárquicas. Contudo, alcançada a gratuitidade, estou em crer que essa "arma" terá menor relevância no combate político..O fim dos dicionários tradicionais da Porto Editora em papel foram um prenúncio da mudança de paradigma editorial? Continuamos a publicar dicionários em papel, mas há uma forte aposta no digital, que se iniciou já em 1992. Na altura, tínhamos a noção de que os dicionários seriam os primeiros conteúdos a migrar para o digital, o que se confirmou. Hoje, a Infopédia tem cerca de 30 dicionários online, cobrindo 11 idiomas e milhões de utilizadores..Quando inauguraram em 1995 um centro multimédia estavam a disputar um mercado muito pequeno. Antecipavam a evolução? Em 1995, nem sequer havia mercado digital na educação em Portugal. Mas acompanhávamos o que se estava a passar noutros países mais avançados, e decidimos começar a criar uma estrutura, adquirir novas competências, desenvolver uma nova área que nos preparasse para um mundo novo que sabíamos inevitável. Foi assim que conseguimos lançar a Diciopédia em 1997, no mesmo ano em que abrimos o nosso site, e dois anos depois criámos a Wook..Se tivesse de eleger "o" concorrente mais feroz qual seria? A Amazon? A dimensão do nosso mercado é muito pequena quando comparada com a Amazon, uma multinacional muitíssimo poderosa e que atua em inúmeras áreas além do livro..Acredita que o ebook nunca matará o livro físico? Não tenho a menor dúvida de que o livro físico terá uma vida longa, embora o ebook possa ter também o seu espaço..Nos primeiros anos da editora o livro escolar quase não existia enquanto objetivo. O que fez mudar o rumo editorial? Poderia não constituir-se como objetivo primordial, mas verificou-se essa evolução natural. Afinal, os fundadores da Porto Editora eram todos professores, pelo que havia especial sensibilidade para a importância de existirem livros escolares de qualidade..Abrir a Porto Editora a outras áreas, como a literatura e a não ficção, foi uma resposta imposta à diminuição da natalidade no país? Fundamentalmente, foi uma opção estratégica de horizonte de longo prazo. Queríamos diversificar a atividade editorial, ficar menos dependentes da área escolar, que é sazonal e muito exposta a decisões políticas que condicionam o normal desenvolvimento do trabalho dos autores e editoras..Na base do sucesso da editora estão várias situações. Uma, o facto de ser uma estrutura familiar. Será sempre a melhor garantia? O sucesso da Porto Editora assenta nos nossos valores, na competência da estrutura, no profissionalismo dos recursos humanos e na excelência dos autores..A pouca visibilidade pública da administração será a segunda? Gostamos de liderar pelo exemplo, trabalhando todos os dias lado a lado com os colaboradores. A visibilidade pública não faz parte das nossas preocupações..Dominar todo o processo de edição, de produção e colocação no mercado é a terceira e mais importante? Dominar todo o processo é mais difícil e desafiante, mas, quando é bem executado, acrescenta valor..Já afirmou que a Porto Editora é uma "uma empresa portuense". Porquê marcar esse made in Porto? O Porto é uma cidade cosmopolita, afirmativa, dinâmica, resiliente. Nascemos nesta cidade magnífica e crescemos inspirados também nos seus valores históricos e no seu carácter. Somos uma empresa portuense, que está na esmagadora maioria das casas de todo o país e somos a editora portuguesa com maior projeção internacional..A editora é marginalizada devido à distância de Lisboa ou o poder centralizado está em vias de extinção? Acaba por ser uma vantagem estar distantes do poder centralizado, pois contribui para o nosso espírito livre e independente. A editora está na vida de muitas gerações e de milhões de portugueses, há uma ligação afetiva com leitores de todas as idades - não há forma de sermos marginalizados..Já é mais fácil a relação com países africanos de língua portuguesa ou a presença neles é uma profissão de fé pouco lucrativa? Os países africanos de língua oficial portuguesa são países jovens, ainda em desenvolvimento e, por isso, muito sujeitos a crises e a alguma instabilidade. São mercados difíceis que têm de ser trabalhados na perspetiva de cooperação e de médio/longo prazo..Como vê acusações como a de há três anos sobre a discriminação de género. É manipulação das redes sociais ou descuido? Os nossos valores são inequívocos: defendemos uma sociedade livre, justa, humanitária e solidária, e opomo-nos firmemente a qualquer discriminação ou fundamentalismo..Há duas décadas, a Porto Editora decidiu começar a adquirir várias chancelas, editoras e até grupos. Esse gigantismo é a única forma de manter a liderança? O caminho que seguimos foi consequência de dinamismo e desenvolvimento enquanto empresa moderna. Creio que será extremamente difícil negar o facto de que todo o património editorial que adquirimos ao longo dos anos tem sido protegido e valorizado. Recuperámos selos como a Assírio & Alvim e a Livros do Brasil, revitalizámos um grupo que se encontrava num estado muito complicado e contribuímos de forma positiva para o setor do livro português. Se não tivéssemos feito essas apostas, teriam sido grupos internacionais e, provavelmente, muito desse património já não existiria..A história recente da editora, designadamente com a compra da Bertrand, das suas livrarias e chancelas, vai contra o que acontece no universo editorial estrangeiro, que é entregarem-se a grandes grupos mundiais. Até quando a Porto Editora resistirá? Nunca equacionámos esse cenário. O grupo continuará a afirmar-se aqui e no mundo lusófono, sem qualquer complexo..Entre os marcos da Porto Editora está o da publicação da História da Literatura Portuguesa, de Óscar Lopes e António José Saraiva. Que outros exemplos daria? Numa editora com mais de 75 anos de atividade, é muito difícil responder a essa questão, tantos são os marcos. Diria a publicação do primeiro Dicionário da Língua Portuguesa, em 1952, e todos os outros que se lhe seguiram até à sua disponibilização online. As primeiras edições infantojuvenis, a primeira Diciopédia, o lançamento da Escola Virtual, as primeiras edições literárias..Já tem sinais de que a covid-19 irá criar, como todos os acontecimentos mundiais dramáticos, a necessidade nos leitores de uma moda literária que faça o exorcismo destes tempos? Não há sinais claros sobre o tratamento editorial do tema, mas iremos lançar em breve um livro escrito por várias personalidades portuguesas que dará pistas dos desafios que enfrentaremos no futuro..Formou-se em Engenharia Civil, onde ainda trabalhou por uns anos. Já se arrependeu alguma vez de ter mudado? Não. A gestão de um grupo editorial é muito estimulante, com atividades diversificadas que me preenchem por completo..Quando a vida voltar definitivamente à normalidade o que fará primeiro? Cumprimentar afetuosamente, com beijos e abraços, aqueles que me são mais próximos, família, amigas e amigos.