Quando Bong Joon-ho subiu ao palco do Dolby Theater, em Los Angeles, na recente noite dos Óscares que consagrou o realizador e o seu filme Parasitas, Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira receberam mais um "prémio" de carreira para o Fantasporto. Tal como tantos outros nomes que nas últimas décadas acabaram premiados na mais famosa das festas de cinema, o sul-coreano já fazia parte da história que este casal de cinéfilos começou a escrever há 40 anos, quando lançou no Porto um festival de cinema fantástico que se tornou uma das mais fortes marcas da cidade e da oferta cultural do país..No início era o sangue, muito sangue, e largas doses de terror a proporcionar um culto por algo que, até pouco tempo antes, era um fruto proibido. Portugal dera o grito da liberdade apenas há meia dúzia de anos e os portugueses despertavam para temáticas e consumos que lhes tinham estado vedados. Como o cinema fantástico..Uma viagem a Barcelona, no final dos anos 1970, deu a descobrir a Mário e a Beatriz o impactante Festival de Sitges, ainda hoje um ícone deste género de cinema. Dois anos depois, em 1981, nascia o Fantasporto, anunciado em letras gordas pela imprensa da época. Mário Dorminsky lembra-se como um jornal escarrapachou nas suas páginas: "O sangue escorre pelas ruas do Porto". O culto foi praticamente imediato, recorda ao DN..Desde então que fevereiro no Porto é sinónimo de Fantasporto e de uma romaria cinéfila que começou dominada pelo espetro visual negro gótico, nessa década de 80 do século passado, e se foi tornando cada vez mais heterogénea e generalista, como o festival, com o passar dos anos..O Fantasporto entra agora nos "entas", pronto a festejar os seus 40 anos a partir da próxima terça-feira (dia 25), sem qualquer "crise de meia-idade", garante Dorminsky. Antes com a "maturidade e experiência" que permitem racionalizar decisões e também com o prestígio ganho ao longo de um trajeto que começou então por apresentar o universo do fantástico mas se abriu depois a outros mundos, numa montra da melhor filmografia de várias latitudes. O que levou o Fantas, como carinhosamente é tratado pelos seus fãs de longa data, a ser integrado numa lista dos melhores 25 festivais de cinema do mundo pela revista da especialidade Variety.."Nos anos 1980, quando o festival foi fundado, o fantástico era o género de cinema que surgia em força nos ecrãs. O fantástico que ia, e vai, muito para lá dos filmes de terror. Era tudo o que era fantasia, ficção científica, do Tim Burton ao Ridley Scott. Mas no final dos anos 80 sentimos a qualidade da oferta no fantástico a decrescer e não podíamos ficar presos a isso. E em 1991, o Fantasporto abriu as suas portas a todos os géneros, com a Semana dos Realizadores, em que passaram a surgir muitos dos maiores cineastas de várias geografias", recorda Dorminsky..Por isso, se a consagração de Bong Joon-ho nos recentes Óscares de Hollywood foi surpresa para alguém, não o foi certamente para Mário Dorminsky e para Beatriz Pacheco Pereira. No Fantasporto, há muito que o cinema coreano foi descoberto, logo no início deste século, a par da introdução de uma terceira secção competitiva oficial, Orient Express, dedicada ao cinema asiático..O realizador de Parasitas ganhou, de resto, o prémio de realização no Fantas em 2007, com The Host - A Criatura. "E não foi o único premiado neste ano nos Óscares a fazer parte da história do Fantasporto", sublinha Dorminsky, apontando também os exemplos de Julia Reichert e James Mangold.. De Cronenberg a Tarantino.Nomes que se juntam a uma extensa lista de realizadores que o Fantas "ajudou a revelar". Logo desde o primeiro ano, quando o festival ainda não era festival mas apenas uma mostra, passaram pela sala do Carlos Alberto (a primeira casa do Fantas) filmes de cineastas até então "desconhecidos" do grande público português, como David Cronenberg ou John Carpenter, a par de Brian de Palma, Andrei Tarkovski ou Alain Resnais..O primeiro grande vencedor, em 1982, foi a Noite da Metamorfose, do croata Krsto Papic, um filme politizado sobre a situação da ex-Jugoslávia, no qual um homem descobre uma raça de ratos inteligentes disfarçados de humanos. Coube-lhe iniciar uma lista de premiados que foi incluindo, ao longo dos anos, nomes como o já citado David Cronenberg (1983), Luc Besson (1984), Neil Jordan (1985), Peter Jackson (1993), Guillermo del Toro (1994 e 2007), Danny Boyle (1995), os irmãos Wachowski (1997) ou Alejandro Iñárritu (2001), num festival que destapou ainda obras de David Lynch, Ridley Scott, Peter Greenaway, Joel e Ethan Coen, Lars von Trier, Pedro Almodóvar, Quentin Tarantino, entre tantos outros..É talvez a principal riqueza do festival, esse "bom olho para detetar os talentos do futuro", reconheceu Beatriz Pacheco Pereira, a programadora, quando apresentou esta 40.ª edição. Tal como no futebol, um bom olheiro faz a diferença no acesso ao talento e tem contribuído para reforçar o prestígio internacional do festival. "Hoje já não precisamos de pagar nada a ninguém, só duas ou três noites de hotel. As pessoas vêm porque querem conhecer o Fantasporto, fazer parte. Só isso explica que tenhamos tantas antestreias todos os anos", reforça Dorminsky.. A sessão vudu e o assalto à alfândega.Mas se estes 40 anos serviram para revelar vários dos grandes nomes do cinema contemporâneo, também proporcionaram inúmeras histórias incríveis, muitas delas que poderiam até servir de argumentos no género que notabilizou o Fantas, entre a fantasia, o terror e alguma comédia negra à mistura..Mário Dorminsky desfia uma coleção delas sem se esforçar muito. Como a dos "chilenos que resolveram fazer uma sessão vudu no quarto de hotel e de repente fizeram disparar o alarme de incêndio a meio da noite"; ou quando, "num outro ano, ficaram retidos na alfândega uns filmes de que precisávamos para o fim de semana" e a solução de improviso foi "ir lá roubar os filmes na sexta à noite e repor na segunda-feira, a seguir à exibição". Ou o episódio caricato de 1983: "Tive de andar a distrair o Luc Besson e a empatá-lo no Pipa Velha (um bar vizinho da sala Carlos Alberto) enquanto passava o filme dele, para ele não perceber que a sala não tinha som dolby stereo como ele tinha pedido.".Enfim, histórias que contribuem para o culto em redor de um festival que se tornou ponto obrigatório no circuito cultural portuense (e não só). O que, aliás, Dorminsky ilustra bem com outra história da coleção do Fantas, cujo entusiasmo gerado nesses primeiros anos, na década de 1980, levou até a que uma vez tenha sido necessário "irem lá chamar os médicos de urgência do Hospital do Carmo, que se tinham esgueirado para ver uma das sessões"..Agora, a chegada do festival aos seus 40 anos é abraçada com entusiasmo, garantem os fundadores. Mesmo que os tempos das vacas gordas já tenham ficado para trás e já não seja, pelo menos agora, possível voltar a ter orçamentos de um milhão de euros e convidar estrelas como Danny Boyle, Ben Kingsley ou Guillermo del Toro, que já passaram pela passadeira vermelha do Fantas. "Mas este sempre foi um festival de bom cinema, de descoberta, nunca foi um festival de estrelas. Isso foi apenas um extra, quando foi possível", diz Mário Dorminsky.. Festa com o regresso de cenas chocantes.Para esta 40.ª edição, o Fantas promete uma programação festiva ao longo de 13 dias (de 25 de fevereiro a 8 de março), com "muita gente conhecida que passou por cá ao longo destes anos", como o galês Julian Richards, que receberá o prémio Carreira..E anuncia também um "regresso aos tempos do Carlos Alberto", a sala original do Fantasporto, que antecedeu o salto para o Rivoli, nos anos 1990. O que quer isso dizer? "Que vamos voltar a ter neste ano filmes que tivemos de classificar com o aviso de cenas eventualmente chocantes. E que são mesmo chocantes", frisa Mário Dorminsky..O arranque do festival faz-se na Terça-Feira de Carnaval, com o clássico Blade Runner, de Ridley Scott, "o filme da vida" do Fantas para Mário Dorminsky, e prossegue com outros dois clássicos nos dias seguintes: o Drácula, de Bram Stoker, apresentado de surpresa, em antestreia, em 1993; e o Touro Enraivecido, de Martin Scorsese, obra-prima que, tal como o Fantas, cumpre também os seus 40 anos..A sessão de abertura competitiva tem lugar na sexta-feira, 28, com a antestreia mundial de Adverse, de Brian A. Metacalf, "um dos nomes emergentes em Hollywood", apontam os criadores do Fantasporto. Por isso, fica o aviso: é provável que venha a ouvir este nome a ser pronunciado numa qualquer cerimónia dos Óscares num futuro próximo..Pode consultar a programação completa em www.fantasporto.com