Até que a censura nos separe

Daqui a um mês cumprem-se 44 anos de liberdade de imprensa em Portugal. A história da censura cruza-se com uma grande parte da história do <em>Diário de Notícias</em>, em que até um anúncio a pedir casamento foi alvo do lápis azul.
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"CASAMENTO. CAVALHEIRO DE COR, MOÇAMBICANO, 44 ANOS DE IDADE E HONESTO, BOA CULTURA GERAL, SITUAÇÃO PROFISSIONAL E ECONÓMICA ESTÁVEL, DESEJA CONHECER SENHORA OU MENINA DE 28/35 ANOS PARA FINS MATRIMONIAIS, DE PREFERÊNCIA NASCIDA ENTRE 21 DE MAIO A 21 DE JUNHO, MUITO HONESTA E BOA FORMAÇÃO MORAL, (............), DE CULTURA MÉDIA OU ILUSTRADA, DE PREFERÊNCIA VEGETARIANA. AGRADECE FOTO RECENTE QUE SERÁ DEVOLVIDA NÃO INTERESSANDO. ASSUNTO MUITO SÉRIO. RESPOSTA AO ROSSIO, 11, N.º 5187."

Em setembro de 1971, o desejo deste homem honesto, que pagou um espaço para publicar um anúncio numa coluna do Diário de Notícias, era analisado à lupa na sede da Comissão da Censura.

Pensou o homem do lápis azul que sim, aquele cavalheiro podia desejar uma mulher, ela podia ser honesta, podia até ser apenas do signo Gémeos e não comer carne nem peixe. Ainda assim, um exagero foi detetado e o anúncio mandado cortar. O carimbo vermelho determinava: "Autorizado com cortes." E o homem do lápis riscou "sócio politico ultramarina.

Queria o cavalheiro que a sua futura dama tivesse então uma "boa formação moral, sócio político ultramarina". E isso já era, talvez, pedir demais, pedir ao lado, invocar em tão bela descrição de uma almejada companheira uma alusão às colónias portuguesas, em plena guerra. Melhor não. As donzelas que enviassem as fotografias até ao Rossio, que até chorassem uma lágrima porque o correio as devolveu, mas que fosse reservado para o encontro cara a cara tudo o que poderia ser dito (em privado) sobre as políticas ultramarinas. O assunto era sério. A censura também.

O dia em que a censura veio escrita na primeira página do DN

Foi a 22 de junho de 1926 que a censura apareceu impressa na primeira página do Diário de Notícias sob o título "O novo regime da imprensa". Desde a Constituição de 1822, nascida do liberalismo, e em que tinha ficado instituída a "livre comunicação de pensamentos", que a liberdade de imprensa andava aos solavancos. E mais para trás do que para a frente.

Em 1823 a censura regressa; em 1826 a Carta Constitucional volta a estabelecer que "todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras e escritos e publicá-los pela imprensa"; mas logo acabou nos anos seguintes "nos papéis volantes e escritos periódicos". E assim se andou da censura para a liberdade, da liberdade para a censura até 1910. A República quis carimbar a liberdade de expressão, a 28 de outubro, mas "a defesa das instituições republicanas" e a "segurança do Estado" pareciam sempre sobrepor-se.

A Primeira Guerra Mundial agrava a situação e em 1916 a censura regressa em força. Nessa altura já o Diário de Notícias tinha 52 anos. E começou a sair com espaços em branco nas páginas, a meio dos textos, no fim, no princípio. Por onde passava, a censura deixava marca e os jornais ostentavam-na.

Mas é com o golpe de 28 de maio de 1926 que a censura fica escrita, definida e é impressa em papel de jornal. A partir do dia 24 de junho, o DN passa a ostentar na sua primeira página a seguinte inscrição: "Este número foi visado pela Comissão da Censura." E explica num editorial que ocupa a coluna da esquerda da primeira página "o novo regime da imprensa".

"O governo, entre várias providências que adotou, no desejo de corresponder ao que exige a situação em que se encontra, resolveu estabelecer a censura à imprensa. O Diário de Notícias, na sua longa existência, nunca receou que os poderes públicos tivessem o mínimo pretexto para o sujeitar a quaisquer violências, porque, liberto de paixões partidárias e convencido de que a linguagem da razão é sempre a que se faz ouvir com maior ressonância, sabe bem que ninguém pode encontrar nas suas colunas informações ou artigos que visem despertar sentimentos exaltados, ou provocar ódios ou violentos antagonismos entre os que constituem a nossa nacionalidade", escrevia-se.

Mas a censura estava em letra de lei. E se naquele editorial o Diário de Notícias dizia esperar que ela até poderia justificar-se pelo ambiente conflituoso resultante do golpe que acabou com a Primeira República, a verdade é que ela tinha vindo para ficar durante longos anos.

Às comissões da Censura sucede, em 1933, a Direção-Geral dos Serviços de Censura. Em 1940 é criado, na Presidência do Conselho de Ministros, um gabinete de coordenação dos Serviços de Propaganda e Informação, presidido pelo próprio António de Oliveira Salazar. Em 1972, a direção dos Serviços de Censura é transformada numa Direção-Geral da Informação e a censura recebe a designação de "exame prévio".

E não é imediatamente a seguir à Revolução de Abril que a censura termina. Em junho de 1974 é criada uma comissão ad hoc de controlo da imprensa de carácter transitório. Só dez meses passados do 25 de Abril é aprovada a Lei de Imprensa, a 26 de fevereiro de 1975, e só a 10 de outubro do mesmo ano é extinta definitivamente a tal comissão transitória.

António de Oliveira Salazar dizia que "politicamente, só existe aquilo que o público sabe que existe". Podia não imaginar que em 1971 a censura intrometia-se, até, nas matérias do coração. Mas, quem sabe? O cavalheiro do anúncio pode ter-se apaixonado por uma linda mulher de signo Gémeos, vegetariana, honesta e de boa formação moral, mas apoiante fervorosa da independência das colónias. Talvez o amor, e neste estranho caso a censura, os tenha unido. E tenham vivido em liberdade para sempre.

*Texto foi originalmente publicado no suplemento 1864. da edição em papel de dia 19 de janeiro de 2018

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