A oficina de Nuno Batalha é um mundo castanho. Nas paredes, no chão, nas portas, nas torneiras, nas prateleiras, nas dobradiças, o castanho-alaranjado do barro entranhou-se em todos os recantos e cobre o avental que ele enfia pela cabeça e ata à cintura antes de se pôr a trabalhar: «Ora então, vamos lá fazer um porquinho-mealheiro» Nuno tem 42 anos e é o atual responsável pela Olaria Norberto Batalha & Filhos, umas das muitas na região de Mafra. O pai, Norberto Batalha, era funcionário de José Franco (o conhecido oleiro da região) quando em 1984 decidiu abrir a sua própria olaria..Com a oficina ao lado de casa, Nuno cresceu entre os montes de terra avermelhada, brincando com o barro e inevitavelmente começando a aprender aquela arte e até, na adolescência, a ajudar o pai aos fins de semana. «Quando terminei o 12º ano decidi que já não queria estudar mais e que queria trabalhar aqui. Quando comecei a tempo inteiro a roda era a única coisa que eu não sabia fazer. De resto, já sabia tudo.».Nuno Batalha ainda tem uma roda de pé mas só a usa «em situações específicas». A maior parte do trabalho é feito nas quatro rodas mecânicas. «Muitas pessoas ainda se surpreendem com isso, mas o mais importante acontece em cima da roda e não em baixo.» O pé é apenas um pormenor. São as mãos as obreiras do grande milagre. É isso que acontece quando Nuno põe um naco grande de barro em cima da placa e em poucos segundos, e apenas tocando-lhe delicadamente com as mãos molhadas, ele começa a ganhar formas arredondadas e daí a pouco já se parece com uma bilha. «A roda é a parte mas difícil de todo o trabalho do oleiro. É preciso paciência e força de vontade.».Ao princípio, quando ainda se está a aprender, começa-se por fazer objetos simples, como canecas, tachinhos para o arroz-doce, comedouros para os pardais, coisas que não exigem grande qualidade nos acabamentos. E mesmo assim com que esforço. É preciso falhar muitas vezes, ver as peças saírem tortas, errar no momento de cortar com o garrote, voltar a tentar até que as coisas comecem a sair como deve ser. 24 anos depois de se sentar pela primeira vez na roda, Nuno já quase não precisa de pensar: os gestos saem com naturalidade..«Não parece, mas isto vai ser um porco, não se preocupe», lança, rindo, quando dá por terminada a primeira fase do trabalho. Parece uma espécie de barril, mas na verdade é o corpo do porco que vai ser colocado nas pranchetas a secar - de preferência no quintal, ao sol, mas também pode ficar dentro da oficina ou mesmo na estufa. «O tempo de secagem depende se está frio ou calor, se está sol ou muita humidade», explica o oleiro. Um porquinho-mealheiro pode secar durante um dia ou de um dia para o outro..Depois, falta arredondar as formas do porco e aplicar os membros: as orelhas feitas à mão, as patas bicudas ou redondas, que lhe «dão um ar mais patusco», o rabo (um rolinho de barro encaracolado). Os dedos de Nuno a moldar as peças como uma criança que brinca com plasticina. E depois os acabamentos: marcar os olhos, alisar o barro. Por fim, a ranhura que há de transformar aquele porco num mealheiro onde se guardam tesouros. «Este é um porco-mealheiro tradicional, não tem rolha. Para tirar o dinheiro é preciso parti-lo.».A última etapa é a cozedura. Primeiro, o porco é «chacotado» a 980ºC. Se for vidrado, vai novamente ao forno a 1040ºC. Na oficina, existem dois fornos a gás que são ligados por volta das cinco tarde e ficam toda a noite a cozer as peças feitas durante o dia..Estes porquinhos foram feitos de propósito para nós. Na maioria das vezes, quando tem encomendas de mealheiros, Nuno usa um molde: o processo é mais rápido e os porquinhos ficam todos iguais. Mas hoje já quase ninguém quer porquinhos-mealheiros. Nuno faz sobretudo loiça de mesa: para restaurantes, feiras medievais, empresas e outros eventos gastronómicos. Por exemplo, para os restaurantes do chef britânico Jamie Oliver..Na olaria Norberto Batalha, Nuno controla todo o processo. Compra três tipos de matérias-primas e produz ele mesmo a pasta de barro com que vai trabalhar. Rolinhos que se moldam e transformam em pratos, travessas e potes que viajam para todos os cantos do mundo: 65 por cento da produção vai para exportação. São sete os trabalhadores e felizmente não têm mãos a medir. Nos dias bons gastam uma tonelada de barro. Encomendas estranhas? Há muitas. Uma vez, para o Salão Erótico de Lisboa, tiveram de fazer uns falos enormes. Mas também trabalham com artistas que precisam de peças específicas para integrar nas suas obras de arte..Os porquinhos estão quase prontos. São peças únicas, feitas à mão, e no entanto se os quisesse vender Nuno tem a certeza de que ninguém daria mais de cinco euros por cada um deles. «É por isso que não os fazemos, as pessoas ainda não valorizam muito este trabalho.» Mas há outras coisas que compensam no trabalho do oleiro. Atualmente, o que lhe dá mais gozo é quando tem de produzir de raiz todo o serviço de loiça para um restaurante: há o lado criativo, de encontrar a melhor maneira de concretizar aquilo que o designer imaginou, e há a emoção de estar a fazer algo completamente novo. «Depois, quando o restaurante abre, ir lá ver o nosso trabalho e comer naquela louça...».E porque é que o mealheiro tem a forma de um porco?.O porco está associado à abundância. Apesar de ser, à partida, um animal associado à porcaria por se banhar na lama e cheirar mal, a verdade é que desde tempos antigos ter porcos era sinónimo de ter comida para toda a família durante muito tempo. Mais ainda se tiver uma porca, porque ela tem leitões que podem depois ser vendidos..Os falantes de língua inglesa juntam uma outra explicação: pygg é o nome de uma argila de pouca qualidade que na Idade Média era usada para fazer loiças, bilhas e cofres onde as pessoas guardavam o dinheiro. Era um pygg jar (pote) ou pygg bank (banco). Lia-se pug mas a pronúncia foi-se alterando e acabou por dizer-se da mesma forma que pig (porco). Aproveitando o trocadilho, os oleiros começaram a fazer os mealheiros com esta forma.