14 vítimas do Daesh testemunharam contra iraquianos detidos em Portugal

A PJ reuniu provas e testemunhas do terror de Yasir e Ammar em Mossul. Segundo a acusação do MP, no Iraque, cometeram violentos crimes em nome do estado islâmico. Pela primeira vez em Portugal as autoridades usaram informação da UNITAD, a equipa da ONU que investiga os crimes de guerra do daesh, e da Operation Gallant Phoenix, coligação militar internacional liderada pelos EUA. Os dois irmãos contaram com a ajuda de funcionárias do SEF e de ONGs de apoio aos refugiados.
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Histórias de verdadeiro terror, espancamentos até perda de sentidos, ameaças permanentes, tortura cometidas, em nome do estado islâmico, pelos irmãos Ammar e Yasir Ameen, em Mossul, no Iraque, foram descritos à Polícia Judiciária (PJ) por 14 das vítimas e estão gravadas para "memória futura".

Estes testemunhos exaustivos registados pela Unidade Nacional de Contraterrorismo da PJ são o principal pilar da acusação contra ambos, deduzida pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), pela prática de crimes de adesão a organização terrorista e de crimes de guerra contra as pessoas.

Neste inquérito, aberto em setembro de 2017, cerca de seis meses depois de Ammar e Yasir terem chegado a Portugal e pedido asilo, foi investigada a sua atividade enquanto membros do autoproclamado estado islâmico, nos departamentos Al Hisbah (Polícia Religiosa) e Al Amniyah (Serviços de Inteligência) durante a ocupação do Iraque por essa organização terrorista, designadamente entre 2014 e 2016.

Durante o período em que decorria esta investigação e já com as autoridades informadas sobre a sua presumível perigosidade, Yasir - que foi alegadamente um comandante da AI Amniyah - trabalhou num restaurante em Lisboa, visitado, primeiro, pelo ex- ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita, depois pelo primeiro-ministro António Costa e o Presidente da República Jorge Sampaio (que conversaram e fizeram-se fotografar junto a Yasir) e, por fim, pelo próprio Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa com um grupo de embaixadores estrangeiros, incluindo o dos EUA.

O erro de segurança - as equipas de segurança pessoal desconheciam estar na presença de um suspeito terrorista - nunca foi assumido oficialmente, mas no Sistema de Segurança Interna impuseram-se novas regras para a partilha de informação na Unidade de Coordenação Antiterrorista.

Foi ainda durante a investigação, que a 16 de setembro de 2019, o então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, lhe concedeu autorização de residência permanente em Portugal.

Enquanto isso, ao contrário do discreto e "manipulador" Yasir (fruto do treino das secretas do daesh?), o irmão Ammar, que, segundo regista a acusação, exerceu "funções de destaque na Al Hisbah" (polícia religiosa, responsável pela fiscalização agressiva e aplicação das políticas e procedimentos religiosos do Estado Islâmico), perdia a paciência com a demora na concessão de asilo.

Caracterizado como "pessoa de trato difícil, extremamente exigente, reivindicativo e constantemente insatisfeito, (...) perspicaz e inteligente, arrogante, altivo, pouco respeitador, com instabilidade emocional e com propensão para a violência", numa deslocação ao SEF para saber do seu processo, terá ameaçado funcionários.

Citaçãocitacao"Cheguei ao meu limite, eu suicido-me Mas não morro sozinho. Estou a falar a sério"; "Portugal é um país de merda que não presta para nada"

"Cheguei ao meu limite, eu suicido-me Mas não morro sozinho. Estou a falar a sério"; "Portugal é um país de merda que não presta para nada", terá dito, ao mesmo tempo que elogiou o Iraque. Ao sair das instalações, segundo a acusação do DCIAP, ainda acrescentou: "Por hoje vou-me embora, mas volto. Mato-me aqui. Os jornalistas vão ter o que filmar. Não estou a brincar. Cheguei ao limite".

Tal comportamento terá contribuído para que visse o seu pedido de asilo recusado a 26 de abril de 2019 [ver cronologia em baixo] por representar "perigo ou fundada ameaça para a segurança interna ou externa ou para a ordem pública".

Apesar disso, ainda permaneceu mais 860 dias em Portugal até ser detido, a 2 de setembro de 2021 pela PJ, quando se preparava para fugir, esgotados os recursos jurídicos e os apoios que conseguira conquistar de três mulheres: uma do SEF e outras duas de Organizações Não Governamentais (ONGs) que ajudam na integração de refugiados.

Com ordem de expulsão decretada, foi colocado no Centro de Instalação Temporária, do SEF, "por motivos de segurança nacional". Recorreu da decisão, foi libertado por se ter esgotado o prazo máximo de 60 dias de detenção.

Viu depois inferidos todos os seus pedidos aos tribunais para anular a decisão de recusa de asilo, até que no final de 2020 casou com Ana Figueiredo, que tinha conhecido em 2017 num convívio de refugiados na Mouraria, ligada a várias ONGs, sendo voluntária na Caritas e associada da Amnistia Internacional Portugal e da Quercus, com conhecimentos e contactos relevantes no âmbito de matérias de imigração e refugiados.

Ana é o primeiro elo de uma rede de apoio feminino que Ammar consegue atrair em sua defesa. É amiga de Marta Leandro, vice-presidente da Quercus e também da Amnistia Internacional Portugal, que faz a ligação com Catarina Carreira, funcionária do SEF.

Esta trata pessoalmente do processo de Ammar Ameen e consegue a renovação da sua autorização provisória de residência mais seis meses, até 2 de setembro de 2021 - precisamente a data da operação da PJ, que acabou por se antecipar por suspeita que o iraquiano se preparava para sair do país.

No Iraque, os irmãos Ameen deixaram um rasto de violência, cujo inspirador principal era o seu irmão mais velho, Fouad, que foi membro da Al Qaeda no Iraque, sendo conhecido como um "homem das execuções".

"Fouad Ameen é reconhecido, presentemente, pelo Estado iraquiano como membro do ISIL e é procurado pelas autoridades judiciais por crime de terrorismo", escreve o DCIAP.

Para reunir todos os testemunhos, a PJ contou com a "estreita cooperação" da UNITAD - Investigative Team to Promote Accountability for Crimes Commited by Da"esh/ISIL - Equipa de Investigação das Nações Unidas mandatada pelo Conselho de Segurança da ONU para Promover a Responsabilidade pelos Crimes Cometidos pelo Estado lslâmico/Da"esh", que disponibilizou, através da polícia iraquiana, provas e testemunhas da ação dos irmãos Ameen.

Outra colaboração preciosa, e também inédita, para uma investigação em Portugal, veio da Operation Gallant Phoenix (OGP), coligação militar internacional liderada pelos EUA, sediada numa base militar na Jordânia, cujo foco inicial foi a monitorização dos fluxos de Foreign Terrorist Fighters (FTF).

"Um dos objetivos da OGP é, agora, providenciar aos diversos países que fazem parte deste projeto, a possibilidade de obter dados (registos fotográficos, documentos, ficheiros ou suportes informáticos, perfis ADN, entre outros), que foram recolhidos em cenários de conflito (...) e que podem constituir elementos de prova fundamentais para as diversas investigações que se encontram a decorrer a nível internacional, permitindo assim conduzir a detenções e acusações formais por terrorismo", explica o documento do DCIAP.

Pelo menos um dos vídeos originais do estado islâmico que incrimina Yasir como membro do daesh terá sido obtido por esta via.

Em Portugal os irmãos Ameen não cometeram crimes de terrorismo e não ficou claro até agora quais eram as suas intenções.

Mas de acordo com a acusação, mesmo detidos em prisão de alta segurança, conseguiram saber o nome de algumas das vítimas que testemunharam contra si e, em Mossul, os seus irmãos, foram a suas casas ameaçá-las e pressionar para retirarem as queixas. Só depois, as autoridades pediram ao juiz que impedisse que fizessem contactos telefónicos.

A acusação histórica, por crimes de guerra, contra os dois irmãos iraquianos que viveram em Portugal como refugiados, revela também fragilidades de segurança num sistema de acolhimento e de controlo em território nacional. Marcelo, Costa e Sampaio estiveram num restaurante onde trabalhava Yasir já a ser investigado pela PJ. Ammar foi considerado uma ameaça à segurança nacional, mas só foi detido 860 dias depois, depois de ter estado dois meses num Centro de Instalação do SEF , para ser expulso, e depois libertado.

2017

29 de março - Os irmãos Ammar e Yasir Ameen chegam a Portugal depois de terem estado cerca de um ano num campo de refugiados na Grécia. As declarações que prestam às autoridades portuguesas são diferentes da história que contaram às gregas mas tal não é impeditivo da sua aceitação.

30 de março - São-lhes concedidas autorizações de residência provisórias.

Julho - O SEF informa na Unidade de Coordenação Antiterrorista (UCAT) que os irmãos eram suspeitos de terem pertencido ao Estado Islâmico. Yasser e Ammar Ameen tinham sido reconhecidos por outros refugiados que os denunciaram ao SEF. A informação que partilharam na UCAT era bastante completa, com as respetivas moradas na zona de Lisboa, números de telemóvel, endereços de e-mail, páginas no Facebook.

26 de setembro - A PJ abre um inquérito por suspeita de Ammar e Yasir pertencerem ao daesh, com base em troca de informação partilhada em sede de cooperação internacional e de uma organização iraquiana com uma página no Facebook que identificava combatentes do estado islâmico.

25 de outubro - Um relatório do Serviço de Informações de Segurança (SIS) identifica os irmãos como prováveis relacionados a uma ameaça de atentado na Alemanha.

28 de novembro- O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita visitou o restaurante Mezze, em Lisboa, onde Yasir trabalhava.

2018

16 de janeiro - Incomodado por não ter uma consulta de dentista rapidamente, Ammar terá dito a uma assistente social da Câmara de Oeiras, concelho onde estava colocado: "Eu hei-de ir ao Centro Português de Refugiados (CPR) e vou destruir todo o gabinete".

30 de janeiro - O primeiro-ministro, António Costa, visitou o restaurante Mezze, acompanhado pelo Presidente Jorge Sampaio, e evidencia o importante trabalho daquele espaço na formação e integração de refugiados do Médio Oriente. Troca palavras com vários empregados, entre eles Yasir.

7 de junho - O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também visita o restaurante e vai acompanhado por um extenso grupo de embaixadores da União Europeia e pelo embaixador dos EUA, acreditados em Portugal. Em declarações aos jornalistas, quando veio a público que Yasir ali se encontrava, Marcelo Rebelo de Sousa assumiu que nem ele nem a sua equipa de segurança pessoal sabiam quem era aquele empregado.

Setembro - Chega ao fim o período de apoio do Programa de Refugiados e do prazo estipulado para que os irmãos obtivessem a sua autonomia social e financeira em relação ao Estado português. Residiam gratuitamente numa casa alugada pelo CPR. Recusaram-se a sair. Ammar desafiou os funcionários da autarquia e os assistentes sociais.

25 de outubro - O SIS entregou na UCAT um extenso relatório sobre os dois irmãos, indicando que trabalham no Mezze. Considera Ammar "um risco para a segurança interna" e Yasir bem integrado.

Outubro - Ammar começou a trabalhar numa empresa multinacional, onde desempenhava funções em língua inglesa.

2019

19 de março - Ammar desloca-se ao SEF para saber do seu processo de pedido de asilo e quando lhe é dito que não estava concluído grita e ameaça inspetores e outros funcionários. "Cheguei ao meu limite, eu suicido-me Mas não morro sozinho. Estou a falar a sério"; "Portugal é um país de merda que não presta para nada", terá dito, ao mesmo tempo que elogiou o Iraque. Ao sair das instalações ainda acrescentou: "Por hoje vou-me embora, mas volto. Mato-me aqui. Os jornalistas vão ter o que filmar. Não estou a brincar. Cheguei ao limite".

26 de abril - O pedido de asilo de Ammar Ameen foi recusado, por representar "perigo ou fundada ameaça para a segurança interna ou externa ou para a ordem pública".

20 de maio - Emitido um mandato de detenção para expulsão de Ammar, tendo sido "colocado em Centro de Instalação Temporária, por motivos de segurança nacional".

22 de junho - Jorge Sampaio voltou a visitar o Mezze, desta vez acompanhado pela presidente da Assembleia-Geral da ONU, Maria Fernanda Espinosa.

24 de julho - Amman Ameen foi libertado, por se ter esgotado o prazo máximo de 60 dias de detenção, depois de ter recorrido do indeferimento do seu pedido de asilo.

16 de setembro - O ministro da Administração Interna, Eduardo cabrira, concede Yasir Ameen, Autorização de Residência Permanente em Portugal.

2020

27 julho - O tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra indefere o recurso de Ammar contra a recusa de asilo. Este recorre de novo.

26 de novembro - O Tribunal Central Administrativo Sul mantém a sentença. Recorre de novo.

11 de março - O Supremo Tribunal Administrativo, confirma a sentença.

29 de dezembro - Ammar casa-se com Ana Cristina Figueiredo, que tinha conhecido já em 2017 num convívio de refugiados na Mouraria, ligada a várias Organizações Não Governamentais (ONG) , sendo voluntária na Cantas e associada da Amnistia Internacional Portugal e da Quercus, com conhecimentos e contactos relevantes no âmbito de matérias de imigração e refugiados.

2021

5 de março - Ammar e Ana Cristina Figueiredo encontram-se com a funcionária do SEF Catarina Carreira para que esta lhe entregue um formulário para requerer a renovação provisória de Autorização de Residência, que foi levado pessoalmente. Foi renovada até 2 de setembro desse ano.

2 de setembro - Yasir e Amman são detidos pela PJ, indiciados por crimes contra a humanidade, adesão e apoio à organização terrorista ISIS / Daesh.

2022

5 de setembro - É anunciada a acusação contra os dois irmãos, pela prática de crimes de adesão a organização terrorista e de crimes de guerra contra as pessoas. É mandada extrair certidão para investigar uma funcionária do SEF.

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