Horta Seca, quatro horas da tarde de uma sexta- -feira 13; um assessor, no gabinete das secretárias, ao mesmo tempo que o ministro fazia uma sessão de fotografias na escadaria principal, segredava-me: conseguimos! Sem perceber que eu não sabia, pôs-me a par da demissão do dr. Castro Rocha, que naquele preciso momento se encontrava na Central Termoeléctrica de Sines, em reunião de trabalho. Tinha sido assegurada a publicação, no Expresso do dia seguinte, da demissão do presidente da EDP, facto que àquela hora o próprio desconhecia em absoluto. Esta demissão fora urdida ao longo do tempo, primeiro beneficiando das quezílias existentes entre o secretário de Estado da Energia e o próprio ministro, e depois consumou-se com a substituição de Nuno Ribeiro da Silva por Luís Filipe Pereira, na Secretaria de Estado..A partir desta data seria posto em prática um alucinado plano estratégico que interrompeu um processo de reforma bem sucedido que deu à empresa importantes resultados, nomeadamente, ao nível das operações e do saneamento das dívidas das autarquias. Apesar das deficiências estruturais na produção de energia eléctrica por via térmica, a empresa conseguia custos de produção que situavam os preços nacionais da electricidade na média europeia. Há vinte anos, a EDP, tendo o monopólio da produção, transporte e distribuição de energia, tinha como missão o serviço público da electricidade: produzir a preço acessível para a economia e disponibilizar a electricidade em todo o território nacional, com qualidade de serviço..Na actualidade, a EDP não explicita a sua missão, apresentando, em substituição, a sua visão: em 2007, "uma empresa de energia integrada, líder na criação de valor nos mercados onde podemos fazer a diferença; em 2010, uma empresa global de energia, líder na criação de valor, inovação e sustentabilidade..Daqui se percebe que hoje não há primazia para o mercado nacional e nada é dito sobre o serviço público de electricidade. De empresa pública de capitais públicos passou a empresa privada de capitais privados, onde a missão de serviço público foi substituída pelos objectivos de lucro. Quem estranha que o dr. Mexia seja premiado com milhões de euros pelo seu trabalho desconhece as profundas alterações produzidas na empresa; o dr. Mexia é pago pelos resultados económicos que consegue para os accionistas, como qualquer outro gestor. Os seus accionistas são privados e estão exclusivamente interessados em dividendos..Para explicar a EDP de hoje, um Estado dentro do Estado, é preciso recuar no tempo e chamar à colação o período da história correspondente ao último Governo de Cavaco Silva e aos Governos de Guterres..Na transformação profunda operada no sector eléctrico durante a época de noventa é fácil identificar os seus actores principais, a saber: Nuno Ribeiro da Silva, Luís Filipe Pereira, Pina Moura e José Penedos..O primeiro rompeu com o monopólio da produção de energia eléctrica entregando a privados a concepção, construção, financiamento e operação da Central a Gás da Tapada do Outeiro, em prejuízo da EDP, e criou condições para a venda da Central do Pego..O segundo levou por diante um alucinado plano estratégico, visando o desmembramento da empresa, através da criação de várias dezenas de empresas e a venda da Central do Pego, causando o enfraquecimento da EDP..Acresce que, para viabilizar os investimentos privados, houve que criar os CAE - contratos de aquisição de energia -, transformando-os em autênticas PPP - parcerias público- -privadas e garantindo margens consideráveis para os respectivos investimentos, o que introduziu distorções significativas no sector eléctrico. Às novas empresas, respectivamente detentoras da Central da Tapada do Outeiro e da Central do Pego, foram criadas condições de operação sem riscos, altamente rentáveis, que, naturalmente, anos mais tarde vieram a ser também asseguradas à EDP vantagens equivalentes..Pina Moura e José Penedos, respectivamente ministro e secretário de Estado do Governo de Guterres, fizeram o resto; consumaram a política de enfraquecimento do sector eléctrico como motor da economia nacional e levaram a EDP para investimentos no exterior, à partida de rentabilidade duvidosa, incrementando o seu endividamento. .Assim, sob a bandeira, primeiro do PSD e depois do PS, foram levados a cabo políticas que beneficiaram interesses privados, por homens que em determinado tempo da sua vida se afirmaram como homens de esquerda. Nesse lote deverá incluir-se Eduardo Catroga, referenciado em 1980 como sendo um homem de esquerda. (Belmiro - História de Uma Vida, de Magalhães Pinto, 2001, pág. 197).Olhando para o panorama nacional do sector eléctrico, não podemos deixar passar em claro o que se passa na EDP, de contestar as escandalosas remunerações e mordomias que recebem os principais responsáveis, de nos indignarmos até com a eleição de Catroga, mas não podemos também deixar passar em claro o que passa ao lado da EDP. Nomeadamente, não podemos esquecer Nuno Ribeiro da Silva, o primeiro protagonista no ataque à EDP, que é presidente da Endesa, empresa eléctrica espanhola a operar em Portugal; Pina Moura, que é presidente da Iberdola, empresa eléctrica espanhola a operar em Portugal; que José Penedos era até há pouco tempo o presidente da REN - Rede Eléctrica Nacional; que Luís Filipe Pereira entrava e saía da política o mesmo número de vezes que entrava e saía do Grupo Mello, tendo sido até há pouco tempo presidente da Efacec, um dos principais fornecedores da EDP. Tal panorama sugere uma grande promiscuidade entre interesses públicos e interesses privados e devia merecer uma especial atenção..A privatização completa da EDP constitui um erro tremendo e só uma revolução impossível o poderia emendar; este Governo não é responsável pelo que foi feito ao sector eléctrico e em particular à EDP, mas cometeu um erro grave; a EDP só poderia ser vendida (a sê-lo ) depois de saneadas as distorções do sector eléctrico, postas a claro com a demissão do secretário de Estado da Energia, Henrique Joaquim Gomes..Os portugueses, se quiseram continuar a ter um país onde possam com alegria cantar o hino nacional, têm de passar em revista o que aconteceu nos últimos vinte anos; nomeadamente, terão de pôr em causa muitos direitos adquiridos, para os quais não há moral que os defenda. Como cidadão amo o meu país e a minha pátria e quero continuar a acreditar neste Governo, mas hoje não me revejo em nenhum político que governou o País nas duas últimas décadas..Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.