Eugeniusz Mróz, o advogado aposentado e colega de turma de Karol Wojtyla, repete nesta altura de pandemia as palavras "Não tenhais medo", as mesmas com que em 1978 o seu antigo vizinho de Wadowice iniciou o pontificado. Lembra que neste ano, no dia 18 de maio, "Lolek", como lhe chamava, celebraria o seu centésimo aniversário. Ele comemorou o seu próprio centenário em março último, quando a onda de coronavírus chegou à Europa. O amigo de João Paulo II diz que não teme, pois já sobreviveu a uma pandemia junto com Karol..Filhos de pandemia.Mróz e Wojtyła nasceram vários meses depois da Primeira Guerra Mundial, quando a Polónia, após 123 anos de ocupação pelos seus vizinhos, retornou ao mapa da Europa. Juntamente com os soldados que então regressaram a casa chegou também a gripe espanhola, que se espalhou pelo continente. Foi mortífera. Na região de Cracóvia, onde os dois nasceram na primavera de 1920, apenas na primeira metade do ano a gripe levou à morte de vários milhares de pessoas. Duas outras doenças então se juntaram: o tifo e a di senteria. Provavelmente foi nesta altura que o único irmão de Karol, Edmund Wojtyła, decidiu estudar Medicina na Universidade Jaguelônica. Após a morte prematura da mãe tornar-se-á um grande apoio para Karol. Vão ser separados pelo trabalho realizado por Edmund num hospital em Bielsko, onde, em 1932, morreu aos 26 anos, infetado pela escarlatina, então uma doença mortal. Foi contagiado por uma paciente que tentava salvar. Anos mais tarde, João Paulo II confessará que o óbito de Edmund foi inscrito ainda mais profundamente na sua memória do que a morte da mãe, "devido às circunstâncias dramáticas em que aconteceu, e porque era mais maduro". Até 2 de abril de 2005, o seu último dia da vida, Karol manteve o estetoscópio do irmão na gaveta da sua mesa no Vaticano..O Papa operário.O respeito pelo trabalho de Edmund e o seu compromisso com os operários e pobres cravaram-se profundamente na personalidade de João Paulo II, que entre os Papas se tornou talvez o maior defensor dos trabalhadores. Ele próprio, ainda como estudante, trabalhou durante a Segunda Guerra Mundial numa empresa de produtos químicos, onde sentiria a fadiga do esforço físico. Quarenta anos depois, escreveu uma das poucas encíclicas dedicadas exclusivamente ao trabalho, Laborem Exercens. Nela mencionou os trabalhadores das pedreiras, tal como ele próprio durante a guerra. Ao todo, trabalhou num lugar destes quatro anos, a maioria dos quais em condições de risco e exposto a substâncias tóxicas. Mesmo apesar de assumir o cargo de professor académico na Faculdade de Ética e de ter tido um brilhante percurso na hierarquia da Igreja, Karol manteve sempre o contacto com vários operários. Tudo isso tornou-o mais credível nos seus discursos sobre questões sociais e fez que as suas ações dedicadas aos operários fossem mais autênticas. Ainda durante a ditadura na Polónia comunista, apelou ao respeito pelos trabalhadores. Com base nas suas homilias pregadas durante a primeira visita papal ao país natal em 1979, alguns meses depois viria a nascer o sindicato Solidariedade, o primeiro independente no Bloco de Leste. Uma década mais tarde, a organização transformou-se num movimento político capaz de vencer as primeiras eleições parcialmente livres na Europa Central e de Leste após a Segunda Guerra Mundial, iniciando o processo de democratização da Polónia e de outros países da região. Até aos seus últimos dias, João Paulo II costumava reunir-se frequentemente com representantes de sindicatos e de outras organizações de trabalhadores..Isolamento forçado.Um dos momentos decisivos na vida de Karol, assim como na história da Polónia, foi a detenção do cardeal Stefan Wyszynski pelas autoridades comunistas em 1953. Durante o seu isolamento forçado, o Primaz da Polónia desenvolveu um programa pastoral para a Igreja polaca, chamado a Grande Novena. Iria servir como uma forma de evangelização e ao mesmo tempo de melhoria das atitudes dos cidadãos nas suas vidas no dia-a-dia. A finalização do programa pastoral coincidiu com a intensificação da vida religiosa na Polónia, incluindo as inúmeras peregrinações e procissões, sempre malvistas pelo regime, bem como com a reta final do Concílio Vaticano II. Meses depois, Wojtyła vai receber o título de cardeal, tornando-o a segunda pessoa na hierarquia da Igreja polaca, logo a seguir ao Primaz da Polónia. Entretanto, o ritmo dos eventos religiosos na Polónia não diminuiria na década seguinte, coincidindo com o crescente descontentamento social devido à deterioração das condições de vida. Essa insatisfação enfraqueceu com a eleição de Karol Wojtyła como Papa em 1978. A sociedade tornou-se mais otimista, diminuiu o número de suicídios, bem como aumentou o grupo de clérigos e de pessoas nas igrejas, embora os rendimentos dos polacos continuassem extremamente baixos - 30 dólares por mês. No ano de sua morte, em 2005, na Polónia democrática, o salário médio mensal já correspondia a 800 dólares. Neste período também se registou um aumento significativo no número de pessoas contrárias ao aborto, regularmente reprovado pelo Papa durante as suas viagens apostólicas ao seu país, que sublinhava que "uma nação que mata os seus próprios filhos não tem futuro". Desde então, o número de opositores ao aborto subiu sucessivamente de 32% até aos 60%..Confiança nas pessoas.As visitas de João Paulo II à Polónia, em média a cada três anos, significavam uma continuação de obra de evangelização da Grande Novena do cardeal Wyszynski, que morreu em 1981. O Papa costumava mencionar nas homilias o seu mentor e, tal como o Primaz, encorajava as pessoas à recuperação do seu país e da Igreja. Paradoxalmente, as suas instruções, às vezes duras, não afastavam multidões, entre as quais havia ateus e jovens. Multidões no Vaticano nos dias que antecederam a sua morte e durante o funeral confirmaram quantos fãs deixou. Já no seu funeral viu-se pessoas com cartazes "Santo já!" e logo depois deu-se um processo acelerado de beatificação e em seguida de canonização de Wojtyła. Uma grande ajuda para o Provedor de Fé no Vaticano, chamado "O advogado do diabo", cujo trabalho serve para questionar as virtudes do candidato, foram as pastas dos serviços de segurança polaca comunista, hostis a Wojtyła. Desde 1945, as informações de natureza pessoal sobre ele foram recolhidas escrupulosamente pelos funcionários do regime. Vários documentos confidenciais do regime publicados após a morte de João Paulo II provam que pessoas próximas do Papa eram muitas vezes obedientes aos serviços de segurança, incluindo alguns membros do clero. Os arquivos de segurança comunista descrevem com detalhe situações e conversas, mas também locais de esconderijo de escutas ou alcunhas de inúmeros confidentes do regime. Um deles, "Włodek", em 1960, no seu relatório sobre a personalidade de Wojtyła escreveu: "Muito acessível, com atitude de serviço, diligente. Não tem ambições excessivas, mantém um julgamento sóbrio sobre si mesmo e as suas habilidades. É improvável que um dia vá galopar imprudentemente. É equilibrado, sabe o que quer, tem uma vontade muito forte e crenças bem fundamentadas." Anos mais tarde, um dos amigos íntimos de Wojtyła confessará que a única fraqueza dele era uma "demasiada confiança nas pessoas"..Depois do JP2.Quinze anos após a morte do Papa, vários grupos continuaram a escolhê-lo como padroeiro nos mais diversos contextos: religioso, científico, desportivo e até cultural. O sentimento dos polacos pelo Wojtyła revela-se pela atribuição do seu nome a inúmeros monumentos, parques e ruas, bem como de ações sociais apelidadas de JP2. Mais longe da morte do Papa, as igrejas tornam-se mais vazias e o número de vocações para a vida religiosa diminui. Embora o grupo de sacerdotes seja um dos maiores do mundo - 25 mil - e a Polónia pareça bem no cenário europeu, no entanto, nas últimas duas décadas registou-se uma queda de 60% no número de seminaristas. Quando da morte de Wojtyła, havia 6000, hoje são apenas 2500. A vida religiosa dos polacos também diminuiu um pouco, apesar de mais de 90% admitirem o seu vínculo ao catolicismo, e quase 40% deles participam na missa dominical. Enquanto isso, a religiosidade polaca tornou-se ativa no envolvimento em movimentos e organizações religiosas de leigos, também com cariz social. Têm hoje 2,5 milhões de membros. Há 30 anos, quando a Polónia se libertou do regime, eram apenas centenas. Nas últimas três décadas, foi também visível um aumento significativo de livros e publicações religiosas, bem como de concertos e festivais cristãos. Um dos maiores eventos desse tipo é um encontro com oração e música dedicado aos jovens em Lednica. Por um dia de junho, participam no encontro todos os anos mais de 60 mil adolescentes de vários cantos do país. Também esta iniciativa teve o dedo de João Paulo II, que pessoalmente, em 1997, inaugurou o encontro. Por fim, o evento tornou-se um fenómeno invulgar no mundo..Jornalista e investigador polaco residente em Portugal