"Tive a sensação em Munique de que era mais importante salvar os Jogos do que os atletas israelitas"
A primeira escolha de Orlando Ferreira é o Varanda Azul, restaurante no Estádio do Restelo, opção natural para quem se assume do Belenenses "desde pequenino". Mas o Varanda Azul está fechado e por isso a Marisqueira de Algés surge como alternativa para este antigo judoca olímpico, professor universitário e administrador da RodoTejo. Para mim é curioso estar a tratar Orlando pelo nome. Conheci-o há quase 30 anos como professor de Matemática e Estatística para as Ciências Sociais, um cadeirão quando estudava Comunicação Social no ISCSP, mas só há dois anos o reencontrei num colóquio do Comité Olímpico e descobri que tinha sido atleta nos Jogos de Munique em 1972, os do célebre sequestro da equipa israelita por terroristas palestinianos.
Agora, à mesa, fico a conhecer também aquela que tem sido a carreira principal desde engenheiro civil formado pelo Técnico: quadro do Grupo Barraqueiro, que começou com autocarros e já vai nos aviões, pois é acionista da TAP. "Tenho um patrão que sabe tirar de cada um aquilo que cada um pode dar e tenho um orgulho imenso nele, no Sr. Humberto Pedrosa", faz questão de dizer Orlando, enquanto combinamos pedir como entrada vieiras grelhadas. Aos 65 anos, o antigo judoca não tenciona reformar-se da Barraqueiro nem do ISCSP, onde conta ficar até aos 70, mesmo que tenha saudades dos tempos na Junqueira, antes de a faculdade trocar o velhinho Palácio Burnay pelo moderno polo da Ajuda. "Costumo dizer brincando que tudo o que faço pagava para o fazer", diz, entre risos.
Confesso a Orlando que o meu convite para esta rubrica do DN se deve sobretudo ao seu passado olímpico e por ter testemunhado o ataque do Setembro Negro, um grupo palestiniano. Sei que nasceu em Lisboa, "em casa, na Penha de França", em 1953 e que estava no primeiro ano da licenciatura quando se apurou para Munique. Pergunto, antes de mais nada, o que sente um rapaz de 19 anos ao ir aos Jogos Olímpicos. "Para já, é um sonho, depois é um desafio, depois também é saber que parei um ano do Técnico e não saber qual é o meu futuro. Mas obviamente para quem faz desporto os Jogos Olímpicos são sempre o cume. Ser logo aos 19 anos, não sei se foi cedo de mais ou não, mas foi a oportunidade que surgiu e eu trabalhei muito por ela", responde. Modesto, diz que talvez pudesse ganhar um combate a uns cinco ou seis dos outros judocas, mas enfrentou logo Shinobu Sekine, o japonês que acabaria por ganhar a medalha de ouro. "Ele, que tinha sido nesse ano campeão absoluto do Japão, era um tipo com uns braços enormes... e perdi", conta.
Foi entusiasmante a ida a Munique, mas não sem alguns percalços e isto ainda antes do ataque terrorista que matou 11 israelitas, entre técnicos e atletas. Relembra Orlando - depois de pedirmos dourada escalada para os dois, com legumes a acompanhar - que "logo que lá chegámos houve algum impasse na nossa instalação e acabámos por não ficar nos edifícios dedicados aos vários países na aldeia olímpica e sim no edifício administrativo, com 18 andares. Nós e a Rodésia. Sentimos que havia alguma coisa de diferente, não sabíamos o quê, mas havia algo de político nisto. A Rodésia, três dias antes de os jogos começarem, foi expulsa. Em votação renhida, foi decidido por pressão dos países africanos e dos atletas negros dos Estados Unidos que era 'eles ou eu', que a Rodésia tinha de sair. Ficou logo a primeira marca dos Jogos, que foi jovens em fato de treino, bonitos, brancos e negros, da Rodésia, hoje Zimbabwe, serem expulsos. E houve alguém a dizer-nos: 'Tenham calma que daqui a quatro anos são vocês', por causa da guerra colonial e do isolamento do país antes do 25 de Abril. Foi um sinal de que estes Jogos seriam simbólicos. E apesar de aos 19 anos não apreendermos tudo o que se estava a passar ao nosso redor, foram Jogos que marcaram. Estes serem os Jogos da paz e da alegria era uma maneira de os alemães exorcizarem os Jogos de 1936 em Berlim, o das saudações nazis. Tudo era diferente, não havia segurança. É estranho o que viria a acontecer porque Israel viria a marchar em solo alemão, em Munique, que foi o berço do nazismo, portanto estes tinham uma carga bastante forte e notava-se uma alegria imensa em toda a gente."
A delegação portuguesa, acrescenta o antigo atleta, era composta só de homens, 29. E a farda oficial era cinzenta, do alfaiate lisboeta Rodrigues & Rodrigues. "Éramos os homens de cinzento", diz, a rir. "E com chapéus cremes." Moniz Pereira, que dirigia a delegação, ensaiara todos para o desfile da cerimónia de abertura, com indicação para tirarem o chapéu e o colocarem junto ao coração no momento de passagem perante a tribuna de honra no Estádio Olímpico. "Mas ninguém ouviu o sinal e por isso fomos a única delegação que não descobriu a cabeça perante as personalidades", recorda Orlando.
A escolha do vinho para acompanhar o peixe é fácil. Optamos pelo branco. BSE, da região de Setúbal, sugiro eu, numa espécie de bairrismo que Orlando entende, pois ele que é do Belenenses sabe como eu, que sou do Vitória de Setúbal, quanto irrita perguntarem-nos qual é o nosso verdadeiro clube, qual dos três grandes. Chega, entretanto, Manuel Ferreira, dono do restaurante, beirão de Mata de Lobos, aldeia do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo. Orlando cumprimenta-o com gosto, e também à filha. Conhecem-se há décadas, quando Orlando era casado com Paula, a primeira mulher, e o seu sogro era dono da charcutaria Zínia, ali mesmo em frente da Marisqueira de Algés, com Manuel Ferreira na época a ser empregado na loja antes de se lançar por conta própria. "Hoje estou casado com a Nené, estamos juntos há mais de 30 anos. Temos uma filha, a Filipa, e uma neta, a Constança, de seis anos", explica o meu convidado. Fico ainda a saber que Zínia é nome de flor e opção de recurso quando não foi possível dar o nome Paula e Teresa, as filhas do dono, à charcutaria.
De volta ao tema, sequestro dos israelitas, Orlando conta o que viu: "Nós ficámos no 16.º andar do tal edifício dos serviços administrativos, que estava mesmo em frente a onde estava instalada a equipa israelita. Esse 16.º andar tornou-se uma situação de privilégio para o Eduardo Gageiro, fotógrafo que se misturou entre nós. Ele conseguiu uma reportagem que mais ninguém conseguiu fazer. Foi o único repórter que teve uma fotografia dos reféns israelitas a serem levados para os helicópteros pelos terroristas. Lembro-me de ele estar lá a dizer 'apaguem as luzes, apaguem as luzes' e lá foi um rolo a caminho de Lisboa para O Século Ilustrado com uma notazinha a dizer 'puxem bem pelas fotos porque isto é tirado à noite'. E o que é facto é que no dia seguinte em todo o mundo estavam as fotografias únicas pelo facto de termos sido relegados para o 16.º andar dos serviços administrativos de uma aldeia olímpica onde nada estava a acontecer por acaso e onde a alegria se tinha tornado um palco de guerra. Muita gente se perguntava se os Jogos iam continuar ou não e foi dito que tinham de continuar. O importante era salvar os Jogos e o facto de a Mossad não ter sido autorizada a entrar era também uma tentativa para isso. A comunidade judia o que não perdoa aos alemães é não terem sido ouvidos. Mas o que era preciso, sobretudo, era salvar estes Jogos de Munique. Era mais importante salvar os Jogos do que os atletas israelitas."
Regressado de Munique, Orlando decide acabar a licenciatura mas para isso as exigências começavam a ser tantas em termos de competição que decidiu desistir do judo. "Mas com as voltas que a vida dá, acabei por dar aulas de judo. Primeiro no Colégio Marista em Carcavelos, depois souberam que eu estava nos Maristas e vieram convidar-me para o Clube Nacional de Ginástica da Parede, depois como estava no Ginásio Clube Português em ginástica de manutenção, conheceram-me e fiquei lá a dar aulas e quando dei por mim estava a dar aulas em vários sítios. Já era árbitro nacional e internacional. Já estava a gastar mais tempo no judo, que não era o meu objetivo. Isto durou até 1980." Depois foi outra vida. CTT, uns meses, Rodoviária Nacional, com uma passagem pela CP com licença sem vencimento, o regresso à Rodoviária Nacional, depois com a privatização passou para a Barraqueiro, onde continua.
Do tempo do judo ficou-lhe o conhecimento de uma figura que muito admira, e que junta a Rómulo de Carvalho, seu professor no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, numa espécie de panteão pessoal. "Costumo dizer, citando Carl Jung, 'nascemos originais, morremos cópia', e eu sinto que sou muito cópia de algumas pessoas e uma delas conheci no desporto, pois o Prof. Monge da Silva marcou-me para vida, foi uma pessoa que ensinou a quem andava no desporto 'estás a fazer isso para quê?'. Ensinou-nos a pensar as modalidades. Podemos ser velozes e não ser velozes na modalidade, podemos ter força e não ter força na modalidade. O que ele aprendeu cientificamente foi a pegar nas modalidades e na prática e ele isolava-se para refletir e teorizar a prática. Ele foi um homem que marcou uma geração de desportistas. No fundo ele fez evoluir imenso o desporto em Portugal. Tenho-lhe uma admiração imensa pela sua alegria, pelo seu humor, pela sua competência e acima de tudo pela sua humildade de saber, estudar e aprender e de teorizar a prática e não teorizar a teoria, apenas."
Ananás para Orlando e laranja para mim. E, no final, um descafeinado para o antigo judoca olímpico e um café para o jornalista. Antes de pagar um almoço que foi do agrado de ambos, abordo a crise do Belenenses, o chamado quarto grande, que deixei de propósito para o fim: "Sou do Belenenses, sou sócio, tenho lugar cativo e vou aos jogos. Agora tenho camarote por um ano, 300 euros para quatro pessoas. Neste momento é uma angústia, é uma tristeza ter dois Belenenses. Temos o Belenenses SAD que é a parte profissional que espreitaremos sempre nem que seja pela televisão, agora a parte do coração, a parte do Belenenses, ficará sempre com o Belenenses do Estádio do Restelo, que aprendi a ver com o meu pai. Ia ver um jogo do Casa Pia e depois ia ver o Belenenses do Matateu, do Vicente, do Zé Pereira, com o estádio cheio. Serei sempre do Belenenses. E um dia seremos tão bons como o Caldas, que agora, por razões que começaram por ser profissionais, também se tornou um dos clubes do meu coração", remata Orlando, que à saída da Marisqueira de Algés me faz ainda visitar o Zínia, onde está Teresa, a antiga cunhada, que faz questão de me apresentar.
MARISQUEIRA DE ALGÉS
2 salgados
1 vieiras
2 águas com gás
½ garrafa de BSE
2 douradas
1 laranja
1 ananás
2 cafés
57,05 euros