Lisboa nunca mais te deixo sem mim
Tenho tantas saudades de ti, Lisboa. Das tuas escadas, das com corrimão a meio da calçada empedrada, subindo para o bairro onde o meu jornal nasceu. Tenho saudades das peixeiras cabo-verdianas e de canastra, mandadas calar no elétrico por falarem alto e calarem-se de espanto por alguém não perceber quanto também era delas, Lisboa.
Tenho saudades de como me habituei num repente às jovens estrangeiras deitadas ao sol e ao lado do Tejo, guardadas pelas colunas do Cais das Colunas. Preciso de revê-las já, ou pelo menos ao artista das pedras sobrepostas.
Tenho saudades de Sapkota, o nepalês gentil que me oferece massa italiana, na cidade que há tanto ano, numa casa de pasto do Poço dos Negros, me ofereceu, ao estudante recém-desembarcado, lulas recheadas iguais às da minha mãe. Tenho saudades da cidade onde aprendi outras saudades.
Desejo-te outra vez, uma que seja, no acordar da madrugada, no miradouro de Santo Estêvão, Alfama. Ver-te, Lisboa, naquele candeeiro preso ao muro caiado, de oito vidros e do encaracolar do ferro forjado e eu descobrir, surpreso: "Mas é o meu..." Sim, é o da minha fortaleza luandense, sim, igualzinho, só soube então, e soube também, mais tarde, igual ao de São Luís do Maranhão, e de Goa, e de Coloane e ainda de mais mundo. Tenho saudades do miradouro lisboeta que me revelou ser o que sou.
Lisboa, aqui nasci, não tendo sido aqui, mas longe. Minha. Preciso de ti, descubro, como não me lembro supor precisar tanto. Vou gostar de reencontrar taxistas rabugentos. Tenho saudades da gaivota pousada na cabeça do Marquês. Quero voltar ao café da Madragoa onde há dez anos, único cliente, a televisão me mostrou o último resgatado dos 33 mineiros chilenos soterrados. A loira da Sky News chorava e os olhares, o meu e o do rapaz do balcão, ao cruzaram-se logo se esconderam, pudor de homens. Porque nunca lá voltei?
E pela Madragoa, prometo-me, irei resolver mais uma angústia de confinamento: será que já não há? Quero suspirar de alívio e na rua das Trinas, nº 55, encontrar a sede e respetiva tabuleta: "Vendedores de Jornais Futebol Clube". E ainda não descansado, prometo-me buscar mais provas.
Mais além, num cruzamento da rua do Machadinho quero encontrar homens de camisola cavada e mulheres de chinela a gritar pelos filhos que jogam à bola no asfalto. Quero beber conversas à pintas, entre apartamentos de parisienses de passagem. Quero saber de povo resistente, em bairro ex-popular. Sobreviventes, como sérvios no Kosovo ou comerciantes brancos no centro de Joanesburgo.
Juro, ao sair para a liberdade nunca mais cometerei o pior dos crimes contigo, Lisboa. Nunca mais me distrairei de ti. Vou meter-me por travessas, como a do Pé-de-Ferro. Irei minucioso e preparado com uma gravura de Roque Gameiro, descer pela calçada do Castelo Picão. Quero imaginar-te Lisboa, com garotos a comprar fruta ao vendedor de chapéu preto, bebés envoltos em xailes das mães e janelas abertas à espreita das vizinhas.
Vou encostar-me a uma parede das Amoreiras e vou deixar passar o tempo a olhar o liceu Charles Lepierre. Foi a minha filha, outra confinada, em Londres, que me pediu para confirmar porque foi tão feliz na nossa Lisboa. Tu és tão, Lisboa, tão, que não me importo partilhar paixões por ti.
Mário Soares, nos seus últimos anos, sempre que saía de casa pedia ao motorista para passar pela rua Gomes Freire. A rua leva ao Campo de Santana mas não o merece, é incaracterística. O Campo de Santana tem galos de plumagem e faisões, e teve fogueiras que anunciaram a Lisboa os enforcamentos dos portugueses das Luzes, em 1817. "Felizmente há luar", disseram os algozes, porque assim Lisboa inteira saberia do suplício. Mas o velho Soares não era ao Campo de Santana que rumava, era mesmo à rua Gomes Freire.
O motorista abrandava pelos caixotes com marquises, prédios feios da década de 1960, mas só no muro alto do hospital Miguel Bombarda, Soares, pela janela do carro, espreitava para o que não via. Ali havia uma casa, onde ele foi Gigi, o menino de sua mãe. A volta do carro era um passeio íntimo, a madalena de Proust, o trenó do Citizen Kane.
Eu tenho saudades das caras lavadas que me acolhiam no restaurante Trempe, em Campo de Ourique, acicatado agora pela quase certeza que não será mais com abraços e beijos. Mas onde puder, Lisboa, vou-te buscar. Venha a mais pequena neblina e corro ao Cais do Sodré para ouvir as buzinas dos cacilheiros. Lisboa, nunca mais te deixo sem mim.