Estávamos a começar a almoçar, depois de uma manhã a palmilhar a rota do presunto mais caro do mundo, quando Eduardo Donato lançou aquilo, abrindo muito os olhos: «Os nossos porcos vivem melhor do que milhões de humanos. Não comem químicos, veem nascer e pôr o Sol, fazem exercício, não têm stress.» E é esse um dos segredos do presunto 100% ibérico Manchado de Jabugo que sai da Dehesa Maladúa - uma quinta de 70 hectares no fim do mundo, numa Espanha colada a Portugal, reserva biosfera da UNESCO desde 2002..Sentamo-nos no restaurante de um hotel rural no lugar de Cortegana, em Huelva, Espanha. O império do presunto pata negra vive às segundas-feiras uma espécie de torpor: sim, os porcos andam nos campos, nas bodegas os presuntos, pendurados, prosseguem a cura de sal, mas os restaurantes estão todos fechados. Ali o que contraria isso, a carta do dia não tem porco ibérico mas pode sempre resgatar-se a ementa de especialidades e escutar as conversas da gente do mundo suíno nas mesas ao lado. Tudo naquela zona da Andaluzia gira à volta do porco. Cabe ao discreto Eduardo Donato fazer o mais caro do mundo: cada presunto ibérico biológico da sua Dehesa Maladúa custa 4100 euros..Podia pôr-se a questão nestes termos, usando a moderna medição do sucesso empresarial: Eduardo Donato é o CEO da empresa que produz o presunto mais caro do mundo. Mas à medida que o jipe Nissan avança fora de estrada percebe-se o despropositado que o título é. Demoramos meia hora a fazer os oito quilómetros que separam o alcatrão mais próximo da quinta que comprou em 1989. Eduardo conduz devagar, ao ritmo a que fala. A sua história desenrola-se ao sabor das lombas do chão acidentado. Já nem é preciso cinto de segurança, não há carros nem pessoas. Seguimos por ali fora como se fosse terreno quase virgem. Mas há trinta anos que por ali anda, ele e a filha, Marta, mais o marido dela - e os jornalistas. Hoje os portugueses («os primeiros jornalistas portugueses!»), umas semanas antes a Forbes, a BBC e a televisão oficial chinesa, há um par de meses a televisão japonesa, que mais parecia que ia fazer cinema, tal a parafernália de gente e material que trazia..Consumo de carne suína Infogram.A razão de peregrinação é o presunto que Eduardo produz desde os 40 anos (tem 71), quando mudou de vida - e que em 2016 se destacou na feira de produtos biológicos Biofac, em Nuremberga, na Alemanha, bem como no Guinness com o presunto mais valioso do mundo..Donato intercala a narrativa do negócio com a da própria vida. De como vivia para trabalhar e agora trabalha para viver, só consome produtos biológicos e não entende como os médicos, em vez de ensinarem os pacientes a comer, os entopem de comprimidos. «Sabem que os coentros e as tangerinas são do melhor que há para limpar o organismo de metais pesados? Porque não se divulga isto?» Saltou fora da poluição, dos químicos e do negócio de construção que seguia de vento em popa em Tarragona, de onde é natural. Durante meses procurou um sítio onde se fixar. A Dehesa Maladúa foi a primeira que visitou. Percorreu mais umas dezenas de quintas antes de ali se fixar e só tomou a decisão depois de passar o verão a ver como se portava a ribeira do Chança, um afluente do Guadiana que corre lá em baixo. Quando percebeu que tinha água durante todo o ano, mais uma lista de requisitos cumpridos, fechou o negócio. E tratou de perceber como podia produzir de forma ecológica. Só depois vieram os porcos.. Primeiro trabalhou com porco preto. Quando soube de uma espécie em extinção, interessou-se pelo tema e mudou para o Manchado de Jabugo, para evitar o fim da espécie. Foi o primeiro a fazê-lo (depois do sucesso, outros chegaram). O Manchado de Jabugo está ameaçado porque tem um crescimento lento e porque alguns elementos da espécie ocorrem com... pata branca. «Eram associados ao porco branco, mas não são. As indústrias cansaram-se de dar explicações aos consumidores porque é que aquele pata negra era pata branca e deixaram de comprar.» A qualidade, essa não é posta em causa. «A prova é que os ganadeiros guardam alguns em casa para consumo próprio. Supõe-se que uma espécie está em extinção quando tem menos de mil reprodutores. O Manchado de Jabugo tem no máximo 80 reprodutores. Nós temos no total uns 200 porcos.».O portão da quinta está sempre aberto e os caminhos lá dentro não melhoram. Só há rede de telemóvel de vez em quando. «Gostamos de ter tudo o mais natural possível.» Aponta a paisagem de bosque ibérico, montanhosa, vegetação despenteada, terra, lama - e excrementos de porco..Eduardo não sabe bem por onde andam os animais. «Todos os dias sobem e descem a serra para comer bolota. Fazem uns dez a 12 quilómetros diariamente e estão musculados. São atletas a tempo inteiro. Nas quintas planas fazem pouco exercício.» E porque descem? «A água está cá em baixo», responde com a naturalidade de quem vive ao ritmo dos elementos..Os porcos de Eduardo comem bolota entre novembro e fevereiro. A este período de quatro meses chama-se montaneras. Nos outros meses do ano alimentam-se de cereais e legumes biológicos. «Fazem três montaneras, é um plus de qualidade», diz entre solavancos. Quer dizer que os porcos são criados ao ar livre durante três anos antes do «sacrifício», no matadouro de Jabugo. Depois têm uma cura de cinco ou sete meses. Antes de oito ou dez anos não estão no mercado. É um negócio demorado, e isso reflete-se no preço..Não tardou muito a vislumbrarmos dois porcos. Eduardo para o carro e seguimos na sua direção. Estranhamente não só não fogem como rapidamente se juntam dezenas à nossa volta. Fazendo jus ao nome, são malhados. E também curiosos, afáveis, a ponto de alguns se deixarem tocar. Conseguimos ver um ou dois indivíduos de pata branca entre a vara instantânea que ali se forma. Seguem Eduardo pelo carreiro fora como uma maré. Mais tarde brincaríamos: são os maiores engarrafamentos que ele agora tem..Os bichos crescem ao ar livre durante três anos. Só não nascem na natureza - há bebés num barracão a que chamámos maternidade e ali vão ficar até as porcas terem leite - e os reprodutores estão numa zona diferente da quinta. O dono conta que não há recurso a inseminação ou a qualquer processo químico. Nem quando algum deles se fere: «Faço uma pasta com cinza de carvalho e azeite biológico e aplico. Cura tudo.».Insiste: «Fazemos produção biológica por respeito aos porcos, ao consumidor, ao meio ambiente. Temos produção biológica certificada, 100% ibérico e denominação de origem protegida Jabugo. Temos todos os plus de qualidade.».E isso - juntamente com o processo, lento, de cura - justifica os 4100 euros cada presunto, com seis a oito quilos. «Estão agora a sair os de cinco anos de cura.» Estão desde janeiro de 2014 pendurados na Bodega Jamones Chaparro, a uns 40 quilómetros da quinta, em Cumbres Mayores. Na quinta há calor, e é bom para a bolota e para criar os porcos, na adega há humidade, ideal para curar o presunto, explica Eduardo Donato..Um dos artesãos dos presuntos superstar é Rafael Chaparro Holgado, a quinta geração dos Jamones Chaparro, empresa familiar fundada em 1909. Explica que o presunto é mergulhado em sal marinho - um dia de sal por cada quilo de peso -, depois lavado à mão em água quente e água fria, antes da longa jornada de cinco ou sete anos suspenso por uma corda, no teto. Umas dezenas de jamones alinham-se numa sala de janelas abertas (protegidas por redes), onde a cura acontece por efeito do ar natural e da humidade. O bem-disposto Rafael (estudou Publicidade mas a crise atirou-o para a genealogia do negócio) revela um dos segredos: o rio subterrâneo debaixo do edifício centenário responsável pelo bolor branco que, com o tempo, se agarra à carne seca dos animais. O resultado chega ao palato de gente com «poder aquisitivo, que les gusta el mejor», diz Donato..Gente de elite e bem conhecida, de que não revela nomes. A maior parte dos clientes são particulares e só um restaurantes recebe os presuntos da Dehesa Maladúa: o Ferreteria, na Calle Atocha 57, em Madrid (propriedade de um cortador de presunto conhecido, Emilio García Ortigosa). Em Lisboa há um restaurante que recebe enchidos da Dehesa Maladúa, o Mami Organic Food, no Picoas Plaza - «mas não é o plus», ressalva Eduardo. A empresa não exporta para fora da Europa. As licenças são caras e complexas, não compensa. «Somos uma empresa familiar pequenina e a Europa já é grande [para a produção que tem].» Já lhe falaram em aumentar a produção ou diversificar a atividade. Eduardo não usa relógio e tem resposta pronta: «Vim para aqui para ter vida.»