Uma verdadeira "revolução" na política externa americana. O presidente eleito Joe Biden propõe-se restabelecer a "liderança americana" no mundo revertendo o unilateralismo da Administração Trump e apostando de novo na diplomacia, em alianças internacionais de provas dadas e nas instituições globais..Trump retirou a América das agências da ONU nas áreas da saúde e dos direitos humanos, abandonou importantes acordos no clima ou no controlo de armamentos, ao mesmo tempo que procurava renegociar acordos comerciais dos EUA, entrando em confronto com aliados, e lançando uma guerra de taxas com a China..Biden propõe-se reparar o mais possível os danos nos seus primeiros 100 dias no cargo revertendo um número de ordens executivas assinadas pelo seu antecessor, e que suspenderam acordos e alianças internacionais que Trump considerava desvantajosas para a América..Numa palavra, onde Trump tentou impor os interesses americanos através de ações unilaterais e renegociar completamente os acordos internacionais para os ajustar aos interesses da América, o futuro inquilino da Casa Branca propõe-se recuperar o papel da América mobilizando os aliados em torno da "liderança americana".."A agenda de política externa de Biden colocará de novo os Estados Unidos à cabeça da mesa, numa posição para trabalhar com os seus aliados e parceiros pra mobilizar uma ação coletiva em ameaças globais" - escreveu Biden num artigo da Foreign Affairs da Primavera deste ano..A primeira grande iniciativa de Biden será convocar uma "Cimeira Global da Democracia" para congregar as democracias e com elas forjar uma agenda comum..A "revolução" começa logo na questão climática, um dos domínios em que Biden pretende marcar uma diferença radical em relação à política de Trump de negação das alterações climáticas e de defesa dos combustíveis fósseis. Joe Biden prometeu no primeiro dia da sua presidência regressar ao Acordo de Paris, declarou as alterações climáticas "a maior ameaça à nossa segurança" e traçou um plano nacional para reduzir as emissões poluentes, apostar e investir em energias limpas. Os críticos observam ainda assim que, enquanto senador, Biden não deixou de apoiar fontes de energia controversas como o gás de xisto e o chamado "carvão limpo"..Trump retirou os Estados Unidos de uma série de acordos internacionais concluídos por Obama e rompeu com a Organização Mundial de Saúde no auge da pandemia. Ora, o ainda presidente americano está longe de ser um inovador na matéria - a guerra às instâncias multilaterais que escapam ao controlo de Washington, tem uma longa tradição na Casa Branca..Não poupou sequer os aliados. A famosa tirada de agosto de 2018 em que Trump chamou "inimigos" aos europeus em matéria de comércio chocou muita gente no Velho Continente. Mas, em rigor, os documentos estratégicos americanos dos anos 1990 tratam os europeus como "adversários" se entrarem de algum modo em conflito com os interesses americanos.O ainda inquilino da Casa Branca ameaçou juízes e advogados no Tribunal Penal Internacional de Haia com sanções caso avancem com investigações sobre alegados crimes de guerra da CIA e forças especiais americanas no Afeganistão. Mas a hostilidade absoluta em relação ao TPI vem dos bons tempos de Bill Clinton - e depois de a sua Administração ter utilizado tribunais penais ad hoc como arma de gestão política dos conflitos..De uma guerra comercial de taxas às pressões sobre outros países para bloquear a rede 5G da Huawei Trump desenvolver uma política de confronto com a China. Opôs-se ainda aos direitos reclamados por Pequim no Mar do Sul da China e alardeou o seu apoio político e um vasto programa de venda de armamento a Taiwan..Biden considera a China um desafio sério e propõe-se trabalhar mais proximamente com os aliados para manter Pequim sob pressão em matérias como práticas comerciais "abusivas" e "roubos" de tecnologia, mas até agora os seus conselheiros recusaram-se a dizer se abandonariam as taxas impostas por Trump às importações americanas da China. Na área do Pacífico Biden propõe-se manter a política de contenção da China, aumentar a presença naval americana na Ásia-Pacífico e aprofundar laços com os aliados na área..Propõe-se porém colaborar com a China em áreas com as mudanças climáticas e o arsenal nuclear da Coreia do Norte, e promete usar uma retórica menos belicosa. Mas terá dificuldade em alterar o clima de confronto e tensão agravado pela Administração Trump..A política de Trump em relação à Coreia do Norte ficou marcada pelo tête-à-tête sem precedentes com o líder norte-coreano Kim Jong-un - uma tentativa espectacular, mas sem consequências de diplomacia pessoal. Biden propõe-se empurrar a China e a Rússia para pressionarem Pyongyang e fazer regressar o regime de Kim à mesa de negociações. Mas a verdade é que nem Trump nem Biden parecem ter uma estratégia clara para obrigar Pyongyang a recuar no programa nuclear norte-coreano..Os conselheiros de Trump acreditavam que mais quatro anos de sanções implacáveis e de "máxima pressão" obrigariam Teerão a negociar um acordo "melhor" e que incluísse o programa iraniano de mísseis balísticos e a política regional iraniana..Biden disse que uma das suas primeiras iniciativas em política externa seria regressar ao JCPOA, se Teerão se comprometer a "respeitar estritamente" o acordo negociado por Obama. Mas Biden propõe-se ao mesmo tempo, negociar, reforçar e alargar esses limites - o que não andará afinal muito longe dos propósitos de Trump na matéria..Ora, obrigar Teerão a voltar aos limites do acordo, e sobretudo a aceitar novas condições, e mesmo recuperar o apoio internacional depois da desconfiança deixada pela experiência Trump exigirá negociações difíceis..Donald Trump prometeu pôr termo àquilo a que chama "endless wars" ("guerras sem fim") no Médio Oriente e defendeu a retirada das forças americanas do Afeganistão. Joe Biden parece decidido a apostar na mesma linha, mas insiste que só será possível uma retirada total do Afeganistão e do Iraque quando as condições forem as "certas", sem especificar que condições são essas exatamente..De resto, Trump agita os novos acordos de agosto entre Israel e dois dos seus vizinhos árabes (Bahrein e Emirados Árabes Unidos) como um dos seus troféus na região - uma iniciativa que Biden elogiou e de que se considera de alguma forma credor. O presidente cessante decidiu mudar a embaixada americana para Jerusalém em 2018, e rompeu com um velho consenso bipartidário dizendo que não estava interessado num Estado palestiniano separado..Biden é também um forte apoiante de Israel, mas é de esperar que a sua Administração modere o apoio a Benjamin Netanyahu, pressione Israel em matéria de colonatos e anexações, tentando de alguma forma regressar ao papel de árbitro entre israelitas e palestinianos..Mas o facto é que se parece decidido a manter a embaixada americana em Jerusalém, reconhece que a solução de dois Estados é agora mais difícil de defender..Trump falava de início de uma cooperação mais estreita com a Rússia mas, em parte sob imposição do Congresso, acabou por alargar as sanções, aumentar a ajuda militar à Ucrânia e retirar os EUA de importantes acordos de controlo de armamentos com Moscovo..Biden promete um forte endurecimento da atitude face a Moscovo. Defende a manutenção e mesmo agravamento das sanções impostas por Obama em 2014 na sequência da ocupação russa da Crimeia. Propõe-se ainda aumentar a assistência militar à Ucrânia (coisa que já defendia como vice-presidente de Obama) de forma a garantir que a "Rússia pague um preço mais pesado"..Biden, não exclui mesmo a possibilidade de uma operação de "regime change" (mudança de regime) na Rússia através do apoio as grupos de oposição a Putin - uma linha defendida abertamente por Hillary Clinton, e que justificou a hostilidade de Moscovo em relação aos democratas nas presidenciais americanas de 2016..Até agora Putin foi dos poucos líderes mundiais que não cumprimentou Biden pela sua vitória eleitoral. A atitude da futura Administração face a alguns dossiers particularmente sensíveis darão logo indicações importantes sobre a política do novo presidente face à Rússia, em particular a Bielorrússia, o pipeline NordStream 2 e o caso do envenenamento de Navalny..Biden terá ainda outra oportunidade de testar primeiros contactos com Moscovo noutro dossier fundamental. O presidente eleito diz que Washington deve prosseguir novos arranjos de controlo de armamentos com Moscovo, a começar pela extensão do tratado New START, e uma vez na Casa Branca, terá poucos dias antes de o acordo expirar..A passagem de Trump pela Casa Branca ficará marcada pelas suas declarações interpretadas como uma desvalorização da Aliança Atlântica. Biden fez do reforço da NATO uma peça central da sua plataforma de política externa..Ao mesmo tempo, nada indica que será abandonada a pressão sobre os aliados para aumentarem as suas despesas militares - uma política em que Trump se distinguiu, mas que é prática comum das sucessivas administrações americanas..Enquanto isso, é de esperar que Biden, tal como Trump, pressione a NATO para desafiar Pequim e que prossiga a política de forte investimento na NATO de modo a instalar mais tropas no Leste da Europa para "deter a agressão russa"..Na Defesa e Política militar Trump deixa uma política de grandes aumentos das despesas militares, novos grandes programas armamentistas, inclusive em matéria nuclear e um novo ramo militar focado no espaço. A nova National Defense Strategy, revista em 2018, coloca particular foco no confronto com a China e a Rússia..Biden prometeu reduzir o orçamento militar e cortar alguns dos programas de novas armas, limitando o seu uso a uma retaliação em caso de ataque nuclear contra os EUA. Resta saber que margem de manobra sobra na matéria para o próximo inquilino da Casa Branca. Tanto mais que mais de um terço da equipa que está a preparar a transição no Departamento da Defesa estão ligados a think tanks ou empresas da área da indústria bélica, segundo apurou Sarah Lazare, do In These Times.Quanto a intervenções militares no Estrangeiro, Biden várias vezes advogou objetivos mais estreitos no uso da força. Biden evitará envolver os EUA em conflitos que exijam o emprego de grandes contingentes, preferindo em seu lugar usar Forças Especiais ou ataques aéreos e apoiar os parceiros contra inimigos comuns..Joe Biden é uma figura controversa quanto ao seu registo em matéria de política externa. Como vice-presidente de Barack Obama, desempenhou um papel importante nas controversas políticas dos EUA quanto ao Iraque, ao Irão, Egipto, Síria e Líbia. Apontam-lhe o apoio à invasão do Iraque em 2003, mas também a prudência e contenção no caso do derrube de Muammar Kadhafi na Líbia em 2011..Segundo muitos analistas americanos a escolha da futura equipa nas áreas da política externa e da Defesa está a ser feita com base num núcleo duro de colaboradores próximos há muito de Joe Biden. Um dos mais destacados é Antony Blinken antigo Conselheiro de Segurança Nacional de Biden e depois de Obama - e a quem parece prometido um dos principais cargos da Administração, como secretário de Estado ou Conselheiro de Segurança Nacional..Outro nome em destaque é Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional de Biden em 2013-14 e depois alto conselheiro de Hillary Clinton na campanha de 2016. Michèle Flournoy, subsecretária da Defesa na Administração Obama e parecia votada a ser secretaria da Defesa de Hillary Clinton, é considerada um dos grandes candidatos a secretária da Defesa..Trata-se no fundamental de um pequeno círculo interno de apoiantes fiéis - todos veteranos das administrações Clinton e Obama, com registos polémicos em matéria de política externa, e que no fundo reproduzem uma certa linha do Partido Democrático, com uma visão do papel da América no mundo que remonta a Bill Clinton e ao pós-guerra fria..O registo em política externa e algumas tomadas de posição de membros da equipa Biden parecem de algum modo reforçar essa perspetiva. Jake Sullivan, um dos grandes conselheiros da campanha de Biden, escreveu ano passado no The Atlantic que os Estados Unidos devem recuperar o "excecionalismo americano", regressando a uma política externa de liderança global com "uma crença renovada no poder dos valores americanos no mundo"..Muitos dos outros conselheiros de Biden parecem apostar também em fazer regressar a América ao consenso intervencionista pré-Trump. Num editorial do Washington Post, escrito em conjunto com o neo-conservador Robert Kagan, Antony Blinken evoca os espectros do fascismo e do comunismo em caso de uma política externa americana menos expansiva. Argumentam que qualquer recuo americano ameaça fazer regressar a ordem internacional ao abismo dos anos 1930. Oferecem assim a receita para intervenção constante, o que deixa a impressão de que a Administração Biden poderá constituir "uma restauração do neoconservadorismo em traje de falcão liberal" - nota Jordan Henry no National Interest..A promessa da campanha de Biden de restaurar a "liderança americana" é emblemática de um establishment de Washington ainda tomado pela nostalgia de um mítico "American Century" em que a hegemonia dos EUA parecia absoluta e a sua bondade sem limites" - acrescenta o mesmo analista..Há mesmo quem olhe nessa perspetiva com outros olhos para a presidência Trump, como uma oportunidade. "Permitiu-lhes questionar velhas - e falsas - assunções sobre a atitude do nosso país face ao mundo. Ao levarem-nos para o passado da política externa americana, o sr. Biden está a fazer o oposto" - observa Emma Ashford, do Cato Institute..As opções da futura Administração Biden em matéria de política externa estão a provocar debate e uma forte mobilização da ala mais à esquerda do Partido Democrata. Vozes na esquerda progressista, e na direita populista criticam já o que antecipam como um establishment de política externa desacreditado a tomar de novo as rédeas do Governo, aparentemente indiferente a três décadas de hubris e aventuras infelizes nos Balcãs ou no Médio Oriente - observou Tim Shorrock na revista Nation.."America First" - clamou Trump durante quatro anos. Biden evoca o "leadership" americano. Duas abordagens opostas da presença da América no mundo, mas que não deixam de se cruzar em metas convergentes..Biden promete uma "revolução" na política externa americana, mas no seu projeto juntam-se a pontos de rutura e mudança nítidos traços de continuidade - em relação a Donald Trump mas também a anteriores administrações americanas. E muitos analistas questionam já a viabilidade do seu projeto de juntar de novo os aliados em torno de um grande consenso liderado pela América..As promessas de Joe Biden de um novo consenso com os aliados colocam em última análise em jogo a ideia de um "Ocidente", um grupo de democracias aparentadas que acreditaram "ter vencido a guerra fria há três décadas" - observou Julian Borger, no The Guardian..Trump mudou o papel da América no mundo, Biden propõe-se "restabelecê-lo". A questão está no alcance exato desse objetivo. É que a crise da "liderança americana" vem de muito antes de Trump, mesmo se os últimos quatro anos a exacerbaram. O problema é saber se há hoje condições para recuperar a hegemonia que transformava automaticamente em "consenso" dos aliados e em submissa anuência de um mundo sem adversários à altura o ponto de vista de Washington nos bons anos do "unipolar moment".
Uma verdadeira "revolução" na política externa americana. O presidente eleito Joe Biden propõe-se restabelecer a "liderança americana" no mundo revertendo o unilateralismo da Administração Trump e apostando de novo na diplomacia, em alianças internacionais de provas dadas e nas instituições globais..Trump retirou a América das agências da ONU nas áreas da saúde e dos direitos humanos, abandonou importantes acordos no clima ou no controlo de armamentos, ao mesmo tempo que procurava renegociar acordos comerciais dos EUA, entrando em confronto com aliados, e lançando uma guerra de taxas com a China..Biden propõe-se reparar o mais possível os danos nos seus primeiros 100 dias no cargo revertendo um número de ordens executivas assinadas pelo seu antecessor, e que suspenderam acordos e alianças internacionais que Trump considerava desvantajosas para a América..Numa palavra, onde Trump tentou impor os interesses americanos através de ações unilaterais e renegociar completamente os acordos internacionais para os ajustar aos interesses da América, o futuro inquilino da Casa Branca propõe-se recuperar o papel da América mobilizando os aliados em torno da "liderança americana".."A agenda de política externa de Biden colocará de novo os Estados Unidos à cabeça da mesa, numa posição para trabalhar com os seus aliados e parceiros pra mobilizar uma ação coletiva em ameaças globais" - escreveu Biden num artigo da Foreign Affairs da Primavera deste ano..A primeira grande iniciativa de Biden será convocar uma "Cimeira Global da Democracia" para congregar as democracias e com elas forjar uma agenda comum..A "revolução" começa logo na questão climática, um dos domínios em que Biden pretende marcar uma diferença radical em relação à política de Trump de negação das alterações climáticas e de defesa dos combustíveis fósseis. Joe Biden prometeu no primeiro dia da sua presidência regressar ao Acordo de Paris, declarou as alterações climáticas "a maior ameaça à nossa segurança" e traçou um plano nacional para reduzir as emissões poluentes, apostar e investir em energias limpas. Os críticos observam ainda assim que, enquanto senador, Biden não deixou de apoiar fontes de energia controversas como o gás de xisto e o chamado "carvão limpo"..Trump retirou os Estados Unidos de uma série de acordos internacionais concluídos por Obama e rompeu com a Organização Mundial de Saúde no auge da pandemia. Ora, o ainda presidente americano está longe de ser um inovador na matéria - a guerra às instâncias multilaterais que escapam ao controlo de Washington, tem uma longa tradição na Casa Branca..Não poupou sequer os aliados. A famosa tirada de agosto de 2018 em que Trump chamou "inimigos" aos europeus em matéria de comércio chocou muita gente no Velho Continente. Mas, em rigor, os documentos estratégicos americanos dos anos 1990 tratam os europeus como "adversários" se entrarem de algum modo em conflito com os interesses americanos.O ainda inquilino da Casa Branca ameaçou juízes e advogados no Tribunal Penal Internacional de Haia com sanções caso avancem com investigações sobre alegados crimes de guerra da CIA e forças especiais americanas no Afeganistão. Mas a hostilidade absoluta em relação ao TPI vem dos bons tempos de Bill Clinton - e depois de a sua Administração ter utilizado tribunais penais ad hoc como arma de gestão política dos conflitos..De uma guerra comercial de taxas às pressões sobre outros países para bloquear a rede 5G da Huawei Trump desenvolver uma política de confronto com a China. Opôs-se ainda aos direitos reclamados por Pequim no Mar do Sul da China e alardeou o seu apoio político e um vasto programa de venda de armamento a Taiwan..Biden considera a China um desafio sério e propõe-se trabalhar mais proximamente com os aliados para manter Pequim sob pressão em matérias como práticas comerciais "abusivas" e "roubos" de tecnologia, mas até agora os seus conselheiros recusaram-se a dizer se abandonariam as taxas impostas por Trump às importações americanas da China. Na área do Pacífico Biden propõe-se manter a política de contenção da China, aumentar a presença naval americana na Ásia-Pacífico e aprofundar laços com os aliados na área..Propõe-se porém colaborar com a China em áreas com as mudanças climáticas e o arsenal nuclear da Coreia do Norte, e promete usar uma retórica menos belicosa. Mas terá dificuldade em alterar o clima de confronto e tensão agravado pela Administração Trump..A política de Trump em relação à Coreia do Norte ficou marcada pelo tête-à-tête sem precedentes com o líder norte-coreano Kim Jong-un - uma tentativa espectacular, mas sem consequências de diplomacia pessoal. Biden propõe-se empurrar a China e a Rússia para pressionarem Pyongyang e fazer regressar o regime de Kim à mesa de negociações. Mas a verdade é que nem Trump nem Biden parecem ter uma estratégia clara para obrigar Pyongyang a recuar no programa nuclear norte-coreano..Os conselheiros de Trump acreditavam que mais quatro anos de sanções implacáveis e de "máxima pressão" obrigariam Teerão a negociar um acordo "melhor" e que incluísse o programa iraniano de mísseis balísticos e a política regional iraniana..Biden disse que uma das suas primeiras iniciativas em política externa seria regressar ao JCPOA, se Teerão se comprometer a "respeitar estritamente" o acordo negociado por Obama. Mas Biden propõe-se ao mesmo tempo, negociar, reforçar e alargar esses limites - o que não andará afinal muito longe dos propósitos de Trump na matéria..Ora, obrigar Teerão a voltar aos limites do acordo, e sobretudo a aceitar novas condições, e mesmo recuperar o apoio internacional depois da desconfiança deixada pela experiência Trump exigirá negociações difíceis..Donald Trump prometeu pôr termo àquilo a que chama "endless wars" ("guerras sem fim") no Médio Oriente e defendeu a retirada das forças americanas do Afeganistão. Joe Biden parece decidido a apostar na mesma linha, mas insiste que só será possível uma retirada total do Afeganistão e do Iraque quando as condições forem as "certas", sem especificar que condições são essas exatamente..De resto, Trump agita os novos acordos de agosto entre Israel e dois dos seus vizinhos árabes (Bahrein e Emirados Árabes Unidos) como um dos seus troféus na região - uma iniciativa que Biden elogiou e de que se considera de alguma forma credor. O presidente cessante decidiu mudar a embaixada americana para Jerusalém em 2018, e rompeu com um velho consenso bipartidário dizendo que não estava interessado num Estado palestiniano separado..Biden é também um forte apoiante de Israel, mas é de esperar que a sua Administração modere o apoio a Benjamin Netanyahu, pressione Israel em matéria de colonatos e anexações, tentando de alguma forma regressar ao papel de árbitro entre israelitas e palestinianos..Mas o facto é que se parece decidido a manter a embaixada americana em Jerusalém, reconhece que a solução de dois Estados é agora mais difícil de defender..Trump falava de início de uma cooperação mais estreita com a Rússia mas, em parte sob imposição do Congresso, acabou por alargar as sanções, aumentar a ajuda militar à Ucrânia e retirar os EUA de importantes acordos de controlo de armamentos com Moscovo..Biden promete um forte endurecimento da atitude face a Moscovo. Defende a manutenção e mesmo agravamento das sanções impostas por Obama em 2014 na sequência da ocupação russa da Crimeia. Propõe-se ainda aumentar a assistência militar à Ucrânia (coisa que já defendia como vice-presidente de Obama) de forma a garantir que a "Rússia pague um preço mais pesado"..Biden, não exclui mesmo a possibilidade de uma operação de "regime change" (mudança de regime) na Rússia através do apoio as grupos de oposição a Putin - uma linha defendida abertamente por Hillary Clinton, e que justificou a hostilidade de Moscovo em relação aos democratas nas presidenciais americanas de 2016..Até agora Putin foi dos poucos líderes mundiais que não cumprimentou Biden pela sua vitória eleitoral. A atitude da futura Administração face a alguns dossiers particularmente sensíveis darão logo indicações importantes sobre a política do novo presidente face à Rússia, em particular a Bielorrússia, o pipeline NordStream 2 e o caso do envenenamento de Navalny..Biden terá ainda outra oportunidade de testar primeiros contactos com Moscovo noutro dossier fundamental. O presidente eleito diz que Washington deve prosseguir novos arranjos de controlo de armamentos com Moscovo, a começar pela extensão do tratado New START, e uma vez na Casa Branca, terá poucos dias antes de o acordo expirar..A passagem de Trump pela Casa Branca ficará marcada pelas suas declarações interpretadas como uma desvalorização da Aliança Atlântica. Biden fez do reforço da NATO uma peça central da sua plataforma de política externa..Ao mesmo tempo, nada indica que será abandonada a pressão sobre os aliados para aumentarem as suas despesas militares - uma política em que Trump se distinguiu, mas que é prática comum das sucessivas administrações americanas..Enquanto isso, é de esperar que Biden, tal como Trump, pressione a NATO para desafiar Pequim e que prossiga a política de forte investimento na NATO de modo a instalar mais tropas no Leste da Europa para "deter a agressão russa"..Na Defesa e Política militar Trump deixa uma política de grandes aumentos das despesas militares, novos grandes programas armamentistas, inclusive em matéria nuclear e um novo ramo militar focado no espaço. A nova National Defense Strategy, revista em 2018, coloca particular foco no confronto com a China e a Rússia..Biden prometeu reduzir o orçamento militar e cortar alguns dos programas de novas armas, limitando o seu uso a uma retaliação em caso de ataque nuclear contra os EUA. Resta saber que margem de manobra sobra na matéria para o próximo inquilino da Casa Branca. Tanto mais que mais de um terço da equipa que está a preparar a transição no Departamento da Defesa estão ligados a think tanks ou empresas da área da indústria bélica, segundo apurou Sarah Lazare, do In These Times.Quanto a intervenções militares no Estrangeiro, Biden várias vezes advogou objetivos mais estreitos no uso da força. Biden evitará envolver os EUA em conflitos que exijam o emprego de grandes contingentes, preferindo em seu lugar usar Forças Especiais ou ataques aéreos e apoiar os parceiros contra inimigos comuns..Joe Biden é uma figura controversa quanto ao seu registo em matéria de política externa. Como vice-presidente de Barack Obama, desempenhou um papel importante nas controversas políticas dos EUA quanto ao Iraque, ao Irão, Egipto, Síria e Líbia. Apontam-lhe o apoio à invasão do Iraque em 2003, mas também a prudência e contenção no caso do derrube de Muammar Kadhafi na Líbia em 2011..Segundo muitos analistas americanos a escolha da futura equipa nas áreas da política externa e da Defesa está a ser feita com base num núcleo duro de colaboradores próximos há muito de Joe Biden. Um dos mais destacados é Antony Blinken antigo Conselheiro de Segurança Nacional de Biden e depois de Obama - e a quem parece prometido um dos principais cargos da Administração, como secretário de Estado ou Conselheiro de Segurança Nacional..Outro nome em destaque é Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional de Biden em 2013-14 e depois alto conselheiro de Hillary Clinton na campanha de 2016. Michèle Flournoy, subsecretária da Defesa na Administração Obama e parecia votada a ser secretaria da Defesa de Hillary Clinton, é considerada um dos grandes candidatos a secretária da Defesa..Trata-se no fundamental de um pequeno círculo interno de apoiantes fiéis - todos veteranos das administrações Clinton e Obama, com registos polémicos em matéria de política externa, e que no fundo reproduzem uma certa linha do Partido Democrático, com uma visão do papel da América no mundo que remonta a Bill Clinton e ao pós-guerra fria..O registo em política externa e algumas tomadas de posição de membros da equipa Biden parecem de algum modo reforçar essa perspetiva. Jake Sullivan, um dos grandes conselheiros da campanha de Biden, escreveu ano passado no The Atlantic que os Estados Unidos devem recuperar o "excecionalismo americano", regressando a uma política externa de liderança global com "uma crença renovada no poder dos valores americanos no mundo"..Muitos dos outros conselheiros de Biden parecem apostar também em fazer regressar a América ao consenso intervencionista pré-Trump. Num editorial do Washington Post, escrito em conjunto com o neo-conservador Robert Kagan, Antony Blinken evoca os espectros do fascismo e do comunismo em caso de uma política externa americana menos expansiva. Argumentam que qualquer recuo americano ameaça fazer regressar a ordem internacional ao abismo dos anos 1930. Oferecem assim a receita para intervenção constante, o que deixa a impressão de que a Administração Biden poderá constituir "uma restauração do neoconservadorismo em traje de falcão liberal" - nota Jordan Henry no National Interest..A promessa da campanha de Biden de restaurar a "liderança americana" é emblemática de um establishment de Washington ainda tomado pela nostalgia de um mítico "American Century" em que a hegemonia dos EUA parecia absoluta e a sua bondade sem limites" - acrescenta o mesmo analista..Há mesmo quem olhe nessa perspetiva com outros olhos para a presidência Trump, como uma oportunidade. "Permitiu-lhes questionar velhas - e falsas - assunções sobre a atitude do nosso país face ao mundo. Ao levarem-nos para o passado da política externa americana, o sr. Biden está a fazer o oposto" - observa Emma Ashford, do Cato Institute..As opções da futura Administração Biden em matéria de política externa estão a provocar debate e uma forte mobilização da ala mais à esquerda do Partido Democrata. Vozes na esquerda progressista, e na direita populista criticam já o que antecipam como um establishment de política externa desacreditado a tomar de novo as rédeas do Governo, aparentemente indiferente a três décadas de hubris e aventuras infelizes nos Balcãs ou no Médio Oriente - observou Tim Shorrock na revista Nation.."America First" - clamou Trump durante quatro anos. Biden evoca o "leadership" americano. Duas abordagens opostas da presença da América no mundo, mas que não deixam de se cruzar em metas convergentes..Biden promete uma "revolução" na política externa americana, mas no seu projeto juntam-se a pontos de rutura e mudança nítidos traços de continuidade - em relação a Donald Trump mas também a anteriores administrações americanas. E muitos analistas questionam já a viabilidade do seu projeto de juntar de novo os aliados em torno de um grande consenso liderado pela América..As promessas de Joe Biden de um novo consenso com os aliados colocam em última análise em jogo a ideia de um "Ocidente", um grupo de democracias aparentadas que acreditaram "ter vencido a guerra fria há três décadas" - observou Julian Borger, no The Guardian..Trump mudou o papel da América no mundo, Biden propõe-se "restabelecê-lo". A questão está no alcance exato desse objetivo. É que a crise da "liderança americana" vem de muito antes de Trump, mesmo se os últimos quatro anos a exacerbaram. O problema é saber se há hoje condições para recuperar a hegemonia que transformava automaticamente em "consenso" dos aliados e em submissa anuência de um mundo sem adversários à altura o ponto de vista de Washington nos bons anos do "unipolar moment".