Ana Torres é uma profissional de sucesso, responsável para a Europa Ocidental da área de doenças raras da Pfizer. E é, também, a presidente carismática da PWN, Professional Women's Network, uma organização internacional de mulheres profissionais com forte presença em Portugal. A organização ajuda as mulheres a ganhar as competências para terem crescimentos nas suas carreiras, luta pela igualdade salarial, tem um programa de mentoria e faz também algum lóbi político e social. E Ana Torres é uma feminista calma, que grita quando tem de o fazer, e baixa a voz quando percebe que assim vai chegar mais longe. Uma revolucionária disfarçada de reformista que tem feito muito pelas carreiras de muitas mulheres em Portugal. Hoje a PWN reúne muitas centenas de mulheres no seu encontro anual em Lisboa, o oitavo, dedicado ao gap salarial. .Como é que se vê o mundo das empresas do ponto de vista das mulheres? Todos temos uma visão diferente, mais do que de género, das nossas organizações e do que queremos para o mundo. Possivelmente, as mulheres são mais atentas à questão do detalhe e das pessoas e daí investirmos muito mais nessas áreas de desenvolvimento. Dividir o mundo apenas em função do género é muito limitador. A forma de atuar tem muito que ver com o nosso background [antecedentes] profissional, as vivências que tivemos, o histórico que trazemos da nossa própria vida. Tudo isso faz que encaremos o mundo e as organizações de forma diferente. Mas há temas aos quais as mulheres são mais sensíveis e se calhar prestam-lhes uma atenção que os homens não prestam. Talvez não estejam mais focados noutras áreas. A complementaridade é o segredo de tudo isto..A PWN trabalha sobretudo na formação para a liderança feminina nas organizações. Tem visto alterações, ao longo dos anos, por haver mais mulheres na liderança? O que nós temos verificado é que a questão da autoconfiança tem vindo a mudar, é mais uma questão comportamental do que de cargos ou de funções. Temos vindo a fazer um caminho - as mulheres têm vindo a fazer um caminho -, mas não podemos esquecer-nos de que algumas competências básicas como votar, sair do país, aconteceram todas há muito poucos anos. Se olharmos para a evolução vemos que ela é rápida, a frustração é sempre porque gostávamos de que fosse mais rápida, gostávamos de que depois deste trabalho efetuado os resultados fossem mais expressivos, fossem, neste momento, muito mais equiparados, ainda não aconteceu. Já aconteceram algumas medidas mais legislativas que ajudaram a acelerar e estão a ajudar a acelerar - a paridade dos boards [conselhos de administração], a questão salarial, etc. Em todos esses pontos, a ajuda da componente legislativa é muito grande, porque os grandes movimentos da humanidade acontecem mas, diria, a um passo mais lento..Essa é uma das questões que têm vindo a colocar-se, tanto deste ponto de vista como doutros. Nesta coisa das mulheres e das lideranças, muitas vezes parece que todo o peso é colocado individualmente em cada uma delas - tens de ser melhor, tens de andar mais para a frente, tens de te mostrar mais confiante; e, na verdade, o peso do contexto e do ambiente que a rodeia é, muitas vezes, muito mais importante do que tudo aquilo que ela possa fazer. Como é que vê esta questão? Temos duas componentes. Uma é claramente o facto de a mulher também tomar para si normalmente todas essas competências. Às vezes nem é necessário haver a pressão social, nós próprias temos sempre essa vontade de sermos perfeitas em várias áreas, corremos sempre atrás, queremos sempre ser melhores, muitas vezes não para competirmos com alguém, quase que para competirmos connosco próprias, para nos envolvermos, para crescermos, para nos sentirmos mais felizes. Por outro lado, em termos de sociedade, aí já há uma componente mais de a população ser chamada a intervir..E como é que isso se faz? Isso faz-se normalmente num chamamento mais coletivo, tem de haver um propósito que faça sentido para todos. Neste momento, o mundo e a civilização chamam por nós para intervirmos; cada vez mais, não podemos deixar as decisões na mão dos outros..Ainda agora vimos isso com a greve climática. Sim, sim, isso são pequenos exemplos, mas a sociedade civil tem de se movimentar, tem de ter uma palavra, tem de ser interventiva. Esta questão do género é apenas uma parte, de uma forma mais abrangente, nós todos temos de nos mobilizar mas, lá está, a questão do propósito é fundamental. Nós não nos movimentamos apenas porque é uma boa ideia, tem de fazer sentido para cada um de nós, e há temas como a questão climática, como a questão do género que são temas transversais. Todos nós nos sentimos quase compelidos a seguir esse caminho, porque é quase de justiça, não é? É quase de salvação da humanidade e, portanto, todos nós percebemos esse propósito..Ao mesmo tempo que há isso também há o contrário, que é esta espécie de reação àquilo que agora se chama marxismo cultural e ideologia de género, que não diz respeito só às mulheres, mas também à comunidade LGBT. Vê com mais força o movimento para a igualdade ou os movimentos que fazem reação àquele? Atualmente há uma diversidade enorme de movimentos, o que me parece importante..A Ana vive fora daqui grande parte do seu tempo e tem muita perceção do que se passa nos outros países também... Todos estes movimentos em simultâneo é que conseguem transformar o mundo. O que me preocupa é o facto de todos estes movimentos e essa contramaré que existe condicionarem o avanço, não da progressão destes movimentos, mas condicionarem a nossa liberdade. O facto de um grupo ter uma determinada opinião não pode ser limitativo para que outro tenha uma opinião diferente. O que se verifica hoje, em termos mais políticos, é que se houver uma voz mais forte só porque tem uma expressão na internet, a força dessa voz não lhe dá razão ou, pelo menos, essa razão não é melhor do que a outra. Isso é o que me preocupa mais, porque acho que todos os movimentos são bem-vindos, pois é com o contraditório que nós conseguimos evoluir, crescer e trazer novas ideias. Tudo aquilo que possa ser limitativo à minha liberdade de expressão, à minha liberdade de pensamento mais do que qualquer outra coisa, isso sim preocupa-me no que representa para deixar à nova geração a possibilidade de pensar tudo e tudo serem boas opções, sem serem penalizadas à partida..Há uma palavra que queima no meio disto tudo, que é o feminismo. Como é que se lida com ele? Há uma conotação do feminismo - que foi criado no início deste grande movimento - talvez pela forma extrema com que apareceu, pela forma, se calhar até às vezes, muito estridente e, cada vez mais, as mulheres não se identificam com esse tipo de feminismo. Claro que elas são feministas, claro que elas querem ver os direitos das mulheres precavidos, terem o seu espaço na sociedade e terem a sua voz, mas não querem ver dessa forma, uma forma mais obrigacionista, quase como "a minha verdade tem de ser imposta à dos outros". Temos de trabalhar nesse sentido, mas num sentido que seja natural para todos terem uma sociedade igualitária, diversa, em que todas as opiniões são válidas. É nesse sentido que, às vezes, a palavra feminista queima, porque a forma quase por vezes agressiva com que se trata estes temas ou que se encaram estas batalhas, nem todas nós nos revemos nesse modelo. Por isso é que, não limitando esse tipo de atitude, acho que há espaço para haver várias formas de feminismo neste momento no mundo..Como é que a Ana lida com isso no seu dia-a-dia? É-lhe muitas vezes atirado à cara ou não? Em relação ao facto de ser ou não ser feminista ou não seguir essa linha, julgo que é como em tudo - todos nós tentamos passar as nossas propostas como sendo a melhor proposta, não é? Obviamente que quem defende o feminismo nessa forma....Cada mulher sente a igualdade e a desigualdade de formas diferentes. É isso que se vê numa organização como esta? É verdade. Depende dos setores, depende da fase de desenvolvimento da sua própria carreira, depende por vezes também do pequeno grupo em que se insere - no ambiente de trabalho dentro de uma empresa há grupos que funcionam de uma forma diferente, é muito conhecida a frase "Eu saio não por causa da empresa, mas porque não me entendo com o meu chefe". Há grupos dentro das próprias organizações e o facto de ter um grupo que me ajuda a crescer, onde eu me sinto bem, para onde vou todos os dias com alegria trabalhar, é completamente diferente se for o contrário. Mas aqui, dado que temos mulheres mais empreendedoras, com empresas próprias, mulheres da indústria, mulheres da área da banca, vê-se que também as dificuldades são diferentes de área para área. Agora, todas elas acabam por referir aquilo que é comum, que é grande parte delas estarem no middle management [gestão média] e terem muita dificuldade em chegar ao board e, portanto, as competências que provavelmente são necessárias desenvolver, que são muito mais do que a componente técnica, acabam por ser a grande dificuldade para conseguirem ascender a esses cargos de liderança maiores..Diria que, por exemplo, na base da pirâmide, nos trabalhadores quando começam, quando são indiferenciados, também há problemas ou há menos ou mais? Aí é um pouco como à saída da faculdade. Normalmente essa contratação é baseada nas notas de saída da faculdade, tem muito que ver com as suas competências técnicas, e eu julgo que aí não há grande diferenciação. Há diferenciação porque hoje saem muito mais mulheres licenciadas para grande parte das áreas, portanto quando entram nas empresas também são em maior número; depois, as componentes de pressão da sociedade, da família, fazem que as opções ao longo da carreira sejam muito para além daquilo que são as competências técnicas. Depois temos o networking e todos esses pontos que têm realmente de ser encarados de forma diferente se queremos progredir na carreira..Em termos de políticas quais é que deveriam ser as prioridades, uma vez que do ponto de vista do salário já está na lei, do ponto de vista dos boards e etc. também já está na lei, o que é que falta fazer? Falta implementar algumas medidas que permitam que a vida familiar - o eu e a empresa - se consiga equilibrar. O facto de as empresas ou a função pública terem horários que não se compadecem com as nossas necessidades familiares ou mesmo do nosso próprio desenvolvimento individual, de tudo isto não coabitar, faz que algo fique para trás, quando não há necessidade de isso acontecer. Há momentos de equilíbrio, há momentos em que se investe mais numa área e menos noutra e depois o contrário; haver esta flexibilização em todas as áreas da sociedade portuguesa é fundamental, e não é só para a mulher, é também para o homem. Todos nós conseguiríamos produzir mais e conseguiríamos, se calhar, atingir um nível de felicidade maior se houvesse uma flexibilização de horário, se houvesse uma flexibilização de local de trabalho; se calhar, muitos de nós conseguiríamos trabalhar em casa, não necessitando de estar horas a fio no trânsito, o que implica também muito desgaste. Todos estes pequenos nadas todos juntos, que muitas das organizações hoje já implementam, são fundamentais para o equilíbrio..E aí Portugal está mais ou menos avançado do que outros países? Comparativamente a alguns países na Europa, eu diria que ainda temos muito por fazer, mas também há outros países na Europa que ainda têm muito mais para fazer do que Portugal..Por exemplo? Os países mais da Europa Central, por exemplo a Áustria, a Suíça, ainda são países muito conservadores em que há um papel muito claro, quase só atribuído à mulher, isto apesar de terem questões de natalidade graves como em grande parte da Europa. Os países nórdicos são muito mais progressistas, já encaram esta questão da igualdade de uma forma natural; a nova geração quando nasceu já replicou os seus role models [modelos comportamentais] que eram os seus pais e, portanto, já têm esta componente enraizada. O que verificamos é que nós, em Portugal, conseguimos identificar o que é que há para mudar e temos vindo a implementar essas medidas, felizmente com alguma rapidez. Portugal está a evoluir bastante depressa comparativamente aos outros países mas, obviamente, tudo isto é importante ser quantificado e faltam-nos muitos dados para quantificar tudo. Isto acaba por ser muito baseado em perceções. Em organizações como a nossa questionamos, mas precisamos de dados publicados e, daí, o nosso evento anual ter a questão agora do salary gap [diferença salarial], mas vamos apresentar números, pois é com números que nós conseguimos depois encontrar soluções. Sem ter essa base é sempre muito difícil e, às vezes, em Portugal não se publica muito de forma a podermos atuar..Em Portugal há problemas por exemplo de disclosure [revelação] de determinadas informações que levam a que as pessoas não falem sobre isso. A questão salarial, por exemplo. O salário é uma parte, mas depois há a questão variável e essa, sim, não é tão transparente como a parte salarial. Temos de trabalhar no sentido de vermos também uma componente mais global..Estivemos agora numa campanha eleitoral (vou fazer uma pergunta provocatória), porque é que existe um partido dos animais e não existe um partido das mulheres? [Risos] A questão da diversidade, neste caso da diversidade de género, é, felizmente, um tema comum a praticamente todos os partidos políticos. Possivelmente haverá uns mais sensíveis ao tema, uns que atuam mais de uma forma legislativa, outros que atuam mais de uma forma informal, mas eu julgo que hoje - quero acreditar - a questão da diversidade de género é um tema central das agendas políticas dos diversos partidos..Falou-se da carne de vaca nas faculdades, falou-se dos transportes públicos, falou-se de imensas coisas económicas muito mais elevadas e não se falou de coisas que interessam às pessoas para o seu dia-a-dia. Sim, se pensarmos bem no programa eleitoral, das cem medidas que são propostas por grande parte dos partidos, fala-se de duas em toda a campanha eleitoral e, possivelmente, de algumas que são mais contraditórias, o que as torna mais interessantes para a campanha. Este é um tema que já está assimilado e a questão aqui é a tomada de medidas, como é que um partido vai implementar algumas medidas..Como é que vê a abordagem da campanha do ponto de vista da igualdade? Existem duas líderes políticas, existem muitas mulheres na campanha, acha que o tratamento é igual? Eu julgo que o tratamento é igual. Depois, nos comentários políticos pós qualquer debate nota-se que há, de uma forma muito subliminar, comentários que se fazem à atitude, à forma como reagem pelo facto de serem mulheres ou pelo facto de serem homens. O serem mais sensíveis, mais emocionais... sem ser quase ostensivo, mas nota-se que em quem faz a crítica há sempre ali um unconscious bias [preconceito inconsciente] se foi uma mulher a dizê-lo ou se foi um homem, mas isso é tudo muito subliminar..Tendo em conta o que já disse, que do ponto de vista legal está perfeitamente expresso nas leis, do ponto de vista da própria racionalidade pública é quase impossível hoje alguém ser machista e não ser penalizado por isso de forma consciente, não estamos a passar um pouco para o inconsciente e para esse unconscious bias? Sim, sim. Nós temos esse unconscious bias quer queiramos quer não e ele tem de ser trabalhado. Primeiro, temos de identificá-lo dentro de nós para depois o trabalharmos, mas ele existe. A sociedade tem determinados estereótipos e continua a esperar da mulher muito mais do que do homem, principalmente em atividades mais familiares e caseiras e do homem mais numa perspetiva profissional, e isso não vai ser alterado por decreto-lei. Essa é a parte que vai demorar mais tempo, mas também é aquela que depois de enraizada vai perdurar por mais tempo. Talvez tenhamos de ter resiliência para esperar que esta mudança aconteça de uma forma genuína e estruturalmente básica para todos nós. Publicar uma lei e ver os resultados dessa lei nem sempre quer dizer que ela vai perdurar no tempo; todas aquelas que são alterações culturais, essas sim, vão perdurar pelas gerações..A escola tem um papel aí? A escola tem sempre um papel aí. O facto de não fazer destrinça entre a questão do género, atribuir a rapazes e a raparigas tarefas diferentes ou quase papéis diferentes mesmo em brincadeiras ou atividades dentro da sala de aula, logo aí vemos que pode haver (ou não) uma diferenciação e nós não queremos ver..Como é que a Ana chegou a estes temas? Como é que eu cheguei ao tema da diversidade? O tema da diversidade, pelo meu percurso profissional, nunca foi tema, nunca o senti. Ao juntar-me à PWN rapidamente percebi que havia realmente questões graves de desigualdade no nosso país que eu não conseguia aceitar que acontecessem ao meu lado, sou incapaz de ficar sossegada perante aquilo que considero ser uma injustiça social. Mulheres com um percurso brilhante, com a formação adequada, com as competências para assumir outras responsabilidades e sem obterem respostas sobre porque é que não chegavam lá. Quando me apercebi dessa situação, principalmente dentro do tecido empresarial português, achei que esta era uma boa causa para eu abraçar e para tentar fazer a diferença. Por muito pouca diferença que possa fazer, muito poucas diferenças vão fazer deste um país melhor..Qual é o seu próximo desafio? É verdade que há muita coisa que já mudou desde a sua entrada neste cargo, nomeadamente na lei. Já falámos da família, da questão de haver mais maleabilidade... Todos os anos, dentro da PWN, o board delineia sempre um tema que para nós é fulcral ser alterado e que pelo menos seja possível trazermos à sociedade para ser discutido. Por acaso trouxemos o Women on Boards e, é engraçado, sai a lei quando o tema estava na mesa. Neste ano decidimos que seria o gap salarial mais uma vez, sem alinhamento nenhum político... mas a verdade é que são temas tão óbvios que têm de ser mudados e que acabamos por encontrar saídas para eles, felizmente. Mas nada está resolvido, há muito ainda para fazer. Agora vamos juntar-nos novamente, no final do ano, e pensar em que é que fará sentido para 2020 a PWN investir. Quando encontramos um tema que é o nosso tema-chave para um determinado ano e que se enquadra dentro das nossas estratégias, todas as nossas atividades - os workshops, os programas de pequeno-almoço, as conversas do avesso, o evento anual - tendem a focar-se em temas que nós temos para mudar nesse ano. Neste ano organizámos várias atividades - como negociar o salário, como ter uma atitude proativa, etc. No fundo dar as tais soft skills [competências] às mulheres para que elas também tenham um papel a desempenhar, porque, por vezes, todas estas desigualdades acontecem por várias razões e algumas delas são também nossa própria responsabilidade. Portanto, se nós também melhorarmos nessas competências e tentarmos nós próprias fazer o nosso caminho, isso vai ajudar com certeza a mudar a sociedade..Mas não é uma revolucionária, é uma reformista? Acho que sou uma mistura das duas. Há momentos em que eu sou revolucionária, mas também tenho a certeza de que se for revolucionária a gritar não me vou fazer ouvir em todos os fóruns em que quero ser ouvida. Por vezes, quando se fazem grandes audiências é quando baixamos o tom de voz e somos mais bem ouvidas. É um pouco esse o meu lema..Ver mais informação sobre desigualdade salarial, aqui.