"A lei ainda diz que há uma divisão entre o rural e o urbano. É uma tontice"
Na terceira edição em poucos meses, o livro vem já com as badanas cheias de elogios, de José Tolentino de Mendonça a Capicua, de António Guerreiro a Miguel Esteves Cardoso. Um livro que tem o cão da Serra da estrela a ilustrar o Dia da Raça e conta a história dos camelos que transportavam a loiça da Vista Alegre de Ílhavo para o Porto. É mais uma obra do menino Alvarinho, o tal que lia e escrevia as cartas de e para os emigrados. "Ora torne a pôr". Geógrafo, doutorado em Geografia Humana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, professor no Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da mesma universidade, Álvaro Domingues nasceu em Melgaço em 1959.
Publicou recentemente Volta a Portugal, uma volta que percorre o país inteiro, incluindo as ilhas, com um olhar muito próprio: irónico, terno, preocupado. Qual destas seria a palavra certa para si?
Eu gostei especialmente da do meio
Terno?
Terno, sim. É uma mistura de curiosidade e ternura, no sentido em que o que mais há sobre a não compreensão do que se passa é chacota, é dizer que isto é caótico ou incompreensível. Esse tipo de questões.
O "isto só em Portugal"?
Sim, as rotundas, essas coisas todas. Eu penso desde há muito tempo, e suponho que não sou só eu, que os discursos e representações sobre Portugal e a chamada portugalidade são extremamente simplificados e genéricos. Sobretudo, não dão conta das velocidades das transformações e da própria transformação da sociedade e do território, e da diversidade que ele contem. O famoso livro do Orlando Ribeiro, Portugal , o Mediterrâneo e o Atlântico, quando fala no tempo longo da geografia física, das questões do clima, fala desses contrastes. Ao nível do clima, porque estamos numa zona de transição climática, e algures no Guadiana está o clima mais árido da Europa, e algures no Gerês está um pico de precipitação que não existe em mais lado nenhum da Europa. Por aqui passaram berberes, vikings, celtas, romanos, tutti quanti. Por sua vez, os daqui foram para todo o lado, como as más raparigas. Foram desde o seculo XVI para a África, para as Índias, para o Brasil. No século XVIII emigrava-se maciçamente para o Brasil, no século XIX também.
E alguns voltaram?
Muito poucos. Os que voltaram produziram mitologias fortes que a alta intelectualidade crucificava - o Eça, por exemplo, em relação aos brasileiros - e depois da Segunda Guerra Mundial foi a debandada geral. Há geograficamente um território diverso e uma cultura, uma população que é extremamente instável. Às vezes parece uma centrifugadora. Ainda há menos de seis anos se emigrava a uma média de 100 mil por ano. Com tudo o que isso implica dos cruzamentos e das referências culturais. Isto é tudo menos uma coisa igual e estável.
Homogénea?
Exato. Não é homogénea e não é estável.
Falou de uma identidade. É o quê?
Eu vivo muito mal com essa palavra.
Agora nem temos bilhete de identidade, temos cartão de cidadão.
Cartão de cidadão, ora bem, isso deve ser um prenúncio. Eu vejo a coisa de uma maneira simples. A conversa sobre a identidade vem do século XIX, da ideia do estado-nação. O estado-nação tinha de ter uma identidade, um território, uma língua, uma moeda, uma narrativa histórica, uns heróis, umas mitologias, etc. As coisas tinham de ser minimamente estáveis e tinham de perdurar no tempo para se dizer "estes traços identitários são assim e assado, nós damos conta deles facilmente e eles estão razoavelmente partilhados na sociedade". E então esse mínimo de estabilidade e de consenso, digamos, e de partilha, podia alimentar essas coisas.
Mas antes não havia a questão da identidade?
Não.
Aprendemos uma história com os lusitanos...
... a cartilha toda. A raça. Na Volta a Portugal, a foto que ilustra o Dia da Raça é um cão da Serra da Estrela. Isso é que é raça. Foi preciso a antropologia instituir-se como ciência para dizer que isso da raça não tinha o mínimo de fundamento. A raça era uma coisa que vinha do Darwin. Pegaram no Darwin, que estuda a evolução das espécies, aplicaram aos humanos e disseram que há raças, sobretudo para provar que havia raças superiores e raças inferiores. Que os negros tinham nascido escravos, vá-se lá saber, por imposição divina. E histórias muito tenebrosas como o Hitler. Ele usava inclusivamente expressões como o darwinismo, a ideia de espaço vital. A raça superior tinha de ter um espaço vital e as outras tinham de ceder. Israel está um bocado assim. Eu acho que o SNI, o Serviço Nacional de Informação, e a "política do espírito" do António Ferro pegam em todos os ingredientes da construção romântica do estado-nação e transformam isso numa propaganda tóxica para vender para o exterior.
E para o interior?
Para o interior também, sim, uma imagem de que "são pobres mas são felizes, andam descalcinhos mas cantam e respeitam a autoridade e Deus".
Isso impregnava tudo, desde logo os livros da escola primária.
E os mapas. O mapa de Portugal do Atlas do Amorim Girão em que para cada região há uma aguarela que remete para um mundo camponês esteticizado. Lá na minha zona a minhota está arreada de ouro a puxar uma junta de vacas, ali vai ela para o campo cheia de adereços. No Algarve - ainda não tinha sido inventada a praia - era a lenda das amendoeiras. As coisas eram-nos contadas assim. O aparelho era tão incrível e tão presente na sociedade que ia desde a produção dos filmes, dos livros, da imprensa, das exposições nacionais ou universais ou o que quer que fosse. Foram décadas.
Uma campanha muito bem montada?
E depois a saudade e o fado.
Hoje ainda temos reflexos disso?
Temos o reflexo dos três efes, Fado, Fátima e Futebol. Nunca foram tão universalizados. Fátima no ano passado foi uma coisa impressionante, esteve cá o Papa, e este ano repetiu a enchente.
Este ano veio o Andrea Bocelli.
Tem sempre visitantes ilustres. O futebol, Ronaldo, estes psicodramas domésticos. E o fado, que é património da humanidade, tal como o chocalho, esta moda de patrimonializar tudo. Os três efes. E outro efe: o Festival da Canção. Eu fiquei, nem sei como dizer: outra vez? Com aquele visual todo, horas e horas de televisão sobre nada, parecia aquelas campanhas ideológicas do antigo regime que também usava o festival para ao mesmo tempo falar do orgulho português e de como era tão maltratado lá fora. Havia sempre um lá fora. Lá fora era o outro. E o quinto efe que é o facebook, que consegue pôr os efes todos em relação, o abecedário inteiro. E então nós oscilamos, quando se fala de identidade, entre referentes genéricos, que são como os antibióticos de largo espetro, mas são muito simples, não são espessos, são fininhos. Como Fátima, o pastel de nata, o pastel de bacalhau, que os portugueses têm um feitio, não são muito organizados mas têm um espírito inventivo.
Desenrascados?
Desenrascados, inventam-se essas coisas. Quando falamos com cada um dos portugueses, um de cada vez, estejam eles cá ou nos Estados Unidos ou na Gronelândia, porque eles estão em todo o lado.
Isso é um princípio universal: em qualquer parte do mundo encontramos um português.
Somos agentes da globalização desde a primeira hora. O José Mattoso, quando explica os primeiros tempos da fundação e da primeira dinastia, dá uma ideia de um cruzamento incrível de gente, desde logo porque o Afonso para conquistar Lisboa teve de distribuir terras para gente que vinha lá da Inglaterra e do norte para as cruzadas. A ideia é sempre da mistura. Curiosamente, quando se inventa mitologias da portugalidade é o contrário.
É a pureza da raça?
É de fixar a linhagem pura, não misturada, porque isso era uma condição sine qua non da construção identitária das nacionalidades no século XIX.
Ia dizer "quando se fala com cada uma das pessoas em particular" e interrompi-o.
Sobre as suas imagens, as suas memórias, não há um fundo comum que apareça. O Onésimo Teotónio de Almeida, que escreve especialmente sobre isto e é um português americano, tem a tese de que tudo muda quando se está fora e se tem um laço afetivo positivo com Portugal. Então o discurso sobre a identidade é muito mais vivo, está muito mais presente, porque o emigrante acaba por ser um estrangeiro nos dois lugares. É estrangeiro no lugar onde está e quando vem à sua origem é considerado também estrangeiro, porque tem um linguarejar diferente, veste-se diferentemente.
Se fosse um intelectual do tempo das Luzes era um estrangeirado?
Claro. Ainda temos fresco até em autores aconselháveis, por exemplo a Viagem a Portugal do Saramago, que repete aquelas coisas horrendas das casas dos emigrantes, que são quartos de banho virados ao contrário e coisas do género. Acho isso incrível.
Além de ser geógrafo, é fotógrafo.
Dizem que sim.
Não vejo aqui a sua máquina fotográfica mas deve estar aí.
Está escondida.
Disse que tem um olhar irónico, às vezes sem comentário, terno porque transborda essa ternura, e preocupado. A preocupação esta lá?
A preocupação é que nós somos do mundo, vivemos em tempos de globalização. Pode-nos calhar agora mesmo estarmos a discutir uma coisa que supostamente é nossa e logo à tarde vem um assunto qualquer que se passou do outro lado do mundo e que nos diz respeito. Apesar da diluição da ideia do estado-nação, apesar de não controlarmos minimamente a maior parte dos processos sociais, porque estão neste vórtice contínuo que é a globalização, preocupamo-nos connosco. Quando designamos um coletivo, chamemos-lhe Portugal ou o que quer que seja, quem somos o que aqui estamos? Quando dizemos nós, o que é que convocamos à nossa volta?
O que acha?
O que me preocupa é... não sei, gostava que as coisas corressem melhor. Em termos do acesso à escola, do emprego, do mínimo de segurança, de não se ser exploradíssimo no mercado de trabalho. Persistem essas coisas, apesar de nos últimos 40 anos o país ter feito um caminho impressionante de progresso, mas também aumentaram, e de que maneira, os contrastes. É preciso ver que dois terços do país estão a desligar do sistema.
Em que sentido?
Está a perder população, envelhecido, rarefeito, o investimento não aparece. Isto tem um tempo longo - as sucessivas vagas de emigração foram tornando o país mais rarefeito. A velha agricultura pré-moderna, familiar, de autossubsistência, uma agricultura pobre, foi-se desconstruindo porque não tinha viabilidade. Depois da instauração da democracia Portugal adere à União Europeia e constrói um estado social, modernizando o território e a sociedade, desde o Sistema Nacional de Saúde ao ensino obrigatório, à rede local municipal de equipamentos, as bibliotecas, os teatros, tudo. Fez-se aquilo que o keynesianismo dizia: quando ninguém puxa pela carroça, o estado puxa, e cria as condições de bem-estar, de desenvolvimento, de modernização infraestrutural e depois o investimento virá. Não veio. É quase incompreensível como é que um esforço de investimento público tão grande acelera ainda mais o esvaziamento - não é que haja uma relação causa-efeito, quero dizer que se passa ao mesmo tempo. Nas ciências sociais, esse esvaziamento chama-se a desruralização, porque vem de um passado rural tradicional que era a sua base económica, embora fosse muito pobre, muito escassa.
Não era idílica, como a imagem que nos era dada?
De forma nenhuma, essa ideia do camponês da Arcádia ou a minhota a dançar.
Com as arrecadas?
Com as arrecadas. Até parece que o trabalho não existia, ou então que não era penoso. Havia situações no Alentejo, no Ribatejo, no Douro, em que a estrutura social não podia ser mais polarizada. Havia os donos da terra e havia os escravos. Aí as condições ainda eram mais duras do que noutros lugares. E muito romance que alimenta a nostalgia da perda de um mundo que não existiu. Isso está no meu livro A Vida no Campo. Esta situação de debandada geral, que não tem retorno, é um assunto novo, nunca nos tinha acontecido tal coisa. Tínhamos uma ideia um bocado malthusiana de que se houvesse gente era porque a coisa estava a correr bem. Mas era muita gente e muito pobre. Isto e outras coisas provocam mudanças rápidas, disruptivas, com futuros muito incógnitos, muito incertos. Provoca um certo clima de atordoamento, de não se saber muito bem, ou de invisibilidade, de opacidade, de não se saber o que se está a passar. A minha preocupação, porque tenho as doenças profissionais dos professores e dos investigadores, é dar a ver essas situações, mas sem escárnio ou mal-dizer. Simplesmente: isto é isto, isto é isto.
É possível intervir neste estado de coisas?
É muito difícil. É sempre possível intervir, mas Portugal tem uma longa tradição, desde o primeiro rei, de concentração do poder e isso não se resolveu. Antes pelo contrário, continua concentrado como nunca. Quando há a enésima discussão sobre a regionalização logo aparecem não sei quantos temas à volta e mais uns fantasmas e aquilo morre logo a seguir. Depois criou-se a ideia falsa de que fortalecer o municipalismo era uma maneira de alargar o espaço de decisão ao nível local.
E não é?
Há uma estatística que diz assim: do Orçamento do Estado aquilo que vai para os municípios não chega a dois dígitos. Não é preciso dizer mais nada. Há uma grande confusão porque as tutelas centrais das direções gerais, dos ministérios, não largam o osso a determinadas coisas. Eu posso ter uma linha de caminho-de-ferro, não sei quantas tralhas do estado que estão sem função, e aquilo está ali a desfazer-se porque o Ministério das Finanças, que será o dono, nem sequer sabe que aquilo existe. É um estado ao mesmo tempo muito centralista e burocratizado, que vê as coisas de cima para baixo de uma forma abstrata, e depois a legislação quando sai, desde legislação urbanística até outra qualquer, é genérica para o país todo. Eu venho das questões do urbanismo e do planeamento e em determinada altura deixei de praticar porque aquilo não tinha pés nem cabeça.
Porque ao generalizar não consegue ser local?
Faz o pior das coisas, ao ter a ilusão de que está a olhar para as coisas "claramente e racionalmente", essas palavras que herdámos do pensamento tecnocientífico, mas elas não são assim. Na primeira geração dos planos regionais de ordenamento, por exemplo, acompanhei o caso do Algarve. Gostava muito do Algarve porque sai do mundo pré-moderno para o pós-moderno de uma forma abrupta. Sai da agricultura pobre do Algarve, do pomar de sequeiro - havia algumas áreas mais ricas, como a zona de Vilamoura, no litoral, mas essas estavam por conta de quem tinha aqueles enormes latifúndios.
A agricultura ia até ao mar?
Mas a agricultura era sobretudo a do Barrocal, a meia encosta e com problemas por causa da secura. O pomar mediterrânico é uma combinação de árvores - a oliveira, a amendoeira, a alfarrobeira e a figueira. Eram a base da produção para alimentar homens e bestas. Durante a época mais húmida fazia-se hortas por baixo ou cereais mas, se vinha um verão prolongadíssimo e seco, era complicado. E havia a pesca. O antigo regime tinha problemas enormes com o turismo, que era uma área do SNI, porque significava "como é que os de fora nos veem?". E se eles vêm cá e nos veem ao vivo e a cores e descalços?
E houve alguns que vieram e fotografaram.
Ainda bem. Já toda a bacia mediterrânica estava hiper-construída, cheia de hotéis, na altura os resorts tinham outro nome, e no Algarve não se passava nada. Primeiro é a Praia da Rocha, com o ensaio de um certo capitalismo popular. Lembro-me de os meus vizinhos que estavam em França a serem aliciados para comprarem apartamentos na Praia da Rocha e do escândalo da Torralta. Isso é muito recente. De repente o Algarve entra na máquina alucinante do turismo de veraneio, que é hoje o seu motor económico, e não há aqui qualquer tipo de transição. É impressionante. Bastava olhar para a legenda do plano e para a maneira como classificava as coisas. A lei ainda diz que há uma divisão nítida entre o rural e o urbano. Isso é uma tontice.
Não há?
Claro que não. Um dos problemas muito sérios que temos nas ciências sociais, na geografia especialmente, é que os conceitos não se atualizaram, não evoluíram à mesma velocidade que as coisas mudaram. Já há muito tempo que a cidade deu lugar à urbanização, e a ideia que toda a gente tem é que as cidades têm um nome, são umas bolas no mapa, percebe-se onde começam e acabam, estão organizadas, têm um limite. Ora bem: isso é uma cidade-estado do tempo da Renascença italiana. Enquanto nós pensamos que a cidade é um lugar, a urbanização é um processo.
E não é estável?
De forma nenhuma. A ideia de cidade durante séculos esteve muito dependente da falta de suportes tecnológicos que permitissem vencer a distância. Havia aglomeração e diversidade dentro dessa aglomeração, e os custos e as incomodidades dos movimentos tinham que ser feitos ali, porque mais dois quilómetros e era o desastre. Desde o século XIX entrámos em modo acelerado em matéria tecnológica e são cada vez mais os sistemas técnicos que vencem distâncias e encurtam tempos. É escusado ir aos mais radicais, como o digital e as telecomunicações.
Podemos ir às autoestradas?
Exato. Dou-me conta disto quando pergunto "onde é que tu moras?" e a pessoa responde "a não sei quantos minutos do nó de", não importa onde. Fazemos uma pergunta em espaço e respondem-nos em tempo. Venha o Einstein para nos dizer da relatividade, da relação tempo/espaço e da forma como estas megapróteses tecnológicas distorcem. A autoestrada comprime o espaço e acelera o tempo, e produz uma espacialidade, uma geografia completamente distinta.
Podemos falar do túnel do Marão, que alterou tudo ali.
Completamente. Veio tarde... ou também não sei se veio tarde. Achávamos que facilitar as comunicações, fossem as telecomunicações fossem as outras, ajudava - usava-se muito a palavra - a desencravar áreas que estariam com problemas de acessibilidade. Esse assunto só é importante se nessas áreas se passarem coisas, porque se não se passarem, o ter boa ou má, quando se emigrou maciçamente...
Pode ser a maneira mais rápida de fugir?
Eu vejo pela minha experiência de miúdo e da juventude.
Sempre em Melgaço?
Sim, eu fui o único da minha escola que não emigrou. É por isso que eu não tenho amigos da escola. Agora que tive que fazer um facebook por causa do livro, uma das coisas mais bonitas que me aconteceram foi encontrar gente.
Que está em todo o mundo?
Que está em todo o mundo. Tive um tio, já faleceu, coitado, em Vancouver. Um dos meus vizinhos trabalhava na Nova Caledónia, encostada à Austrália. Eu era miúdo, os meus pais tinham uma mercearia, e fazia coleção de selos. Quando o carteiro chegava eu tinha que saber tudo. A maior parte das pessoas não sabia ler nem escrever e o Alvarinho lia a escrevia.
Era um serviço público?
Era, na loja. Ainda me lembro de uma senhora a quem a minha mãe chamava a "Torne a pôr". Dizia "Ó Alvarinho ora escreva: isto e aquilo e aqueloutro, vê se mandas". Aquelas coisas dos dinheiros, da família. "Ora leia". E eu: vê se mandas isto e aquilo e aqueloutro. "Pronto, já pôs, torne a pôr". E eu perguntava: mas torno a pôr porquê? "Ele não ouve, é muito teimoso, é preciso dizer-lhe as coisas não sei quantas vezes". Aquilo era assim. Isso dava-me uma posição privilegiada, sem eu ter ferramentas teóricas, obviamente. O que seria um miúdo de dez ou doze anos, sei lá quantos tinha, para perceber o que estava ali em causa?
Era uma central de informações?
Na taberna, por exemplo, quando se vinha muito raramente, porque não havia low-cost nem essas coisas, e não se vinha no verão, vinha-se no Natal, assisti a discussões do género: "Como é a segurança social em França e como é nos Estados Unidos?" Discussões assim. O português nem sequer tinha palavras para as coisas que eram ditas. O dizer-se vacanças e não férias - a féria era o que se ganhava num dia de trabalho - e para encontrar uma palavra ajustada dizia-se vacanças. Lembro-me da cara estupefacta de um dos que não saíram, a olhar para outro: "Mas o que é que tu estás a dizer? Que te pagam para não trabalhar?" Ainda não tinha acontecido o 25 de Abril. Isto para dizer que aquela ideia das terras remotas: o interior é Madrid, isso é que é no interior. Aquilo era muito cosmopolita. As pessoas passaram por um processo de rutura entre o mundo da pré-modernidade e da cultura camponesa e de repente estavam em Paris ou Nova York ou na Nova Caledónia.
E nem tinham palavras, como disse agora.
Mal sabiam escrever português. E rapidamente falavam. Os portugueses, porque têm uma língua esquisita, adaptam-se com muita facilidade aos falares.
Utilizou a expressão "os portugueses". Ser português é o quê?
Os que falam português.
Há os que falam português e não vivem em Portugal nem nasceram aqui. Isto é muito mais complexo.
Há uma maneira de resolver isso: certas coisas não se deve perguntar o que são, deve-se perguntar para que servem. Ou então, como diz o Bruno Latour [antropólogo e sociólogo francês], qualquer coisa, seja o que for, é aquilo de que se fala quando se fala dessa coisa. Não sabemos o que é um português, muito bem. Façamos uma cartografia dos assuntos de que se fala quando se fala dessa palavra e teremos uma maneira de perceber a questão.
No fundo é o que faz nos seus livros, arranjar uma cartografia com imagens e textos de outros autores, e cerzir tudo com os seus textos.
Neste último há menos.
Não sei se a sua intervenção é menor, porque a escolha de trechos é uma intervenção de autor.
É incrível, isso. Eu pensei que era muito fácil. Tinha uma boa experiência de textos de que gostava muito e dizia assim: hei de te arranjar uma fotografia. Achava que, tal como naquele funcionou, aquilo ia funcionar muito bem. Foi um trabalho de quase dois anos e às vezes numa angústia incrível.
Como faz? Anda pelo país com objetivos determinados?
Não necessariamente. Às vezes vou com objetivos determinados. Por exemplo, fui à Amareleja fotografar a central fotovoltaica, porque é uma das maiores do mundo. Tinha visto uma imagem fabulosa de um rebanho a entrar por uma espécie de cidade eletrónica, porque são eles que fazem a manutenção da erva, não a deixam crescer. No ano passado, fui ver as papoilas do ópio, na zona do Perímetro de Rega do Alqueva.
As papoilas do ópio?
Sim, há uma produção de ópio grande, cada vez maior. Duas farmacêuticas, uma australiana e outra inglesa, estão a testar no Alentejo a produção de papoila para produzir medicamentos. Não é para produzir ópio mas são as mesmas. A mudança é tão grande! Depois de séculos, desde os romanos, de sequeiro e de trigo ou de montado, vêm agriculturas extremamente sofisticadas, inseridas no mercado mundial, e mobilizando desde a biotecnologia e os transgénicos até... eu vi pela primeira vez um drone a monitorizar um olival. Nem fazia ideia de como aquilo era, depois percebi que era muito simples. O drone fazia aquilo, zum zum zum, usava o espectro todo, desde o infravermelho. De um lado para o outro até cobrir o espaço todo.
Uma espécie de TAC?
Exatamente. Depois aquilo descarrega a informação toda e produz cores falsas, com uma precisão incrível, e essas cores falsas têm significados. Por exemplo, que ali o solo está mais seco, que acolá a massa vegetal das oliveiras está rarefeita, que ali aparece uma cor esquisita que pode ser o início de uma praga. O trabalho do agrónomo é associar a imagem falsa a determinados indicadores, e agora já se controlam imensos. Em 200 ou 300 hectares de olival, com esta precisão, é possível saber exatamente qual é a árvore e onde está.
A evolução não se faz devagarinho, faz-se aos saltos?
Sim.
E isso acontece nos campos como nas cidades e essa dicotomia campo/cidade...
...deixou de ser explicativa e passou a ser fonte de confusão. Eu não gosto de dizer a cidade mas sim a condição urbana. Temos de perceber o que é essa condição humana, em Nova Deli, em Nova York ou não sei onde. A própria sociologia urbana está um bocado em crise porque quando o esquema era dicotómico, havia o rural e havia o urbano, era como os desenhos animados do Tico e do Teco. O que não era o Tico era o Teco. A desruralização foi profunda, a produção agrícola - que não é tradicional, é super-sofisticada - será três por cento do produto Interno Bruto. O resto são 97 por cento. A base económica da ruralidade era a produção agrícola., depois havia outro pilar, a cultura - uma cultura camponesa, tradicionalista, ligada a valores da religiosidade, da família, dos antepassados, da comunidade. E o terceiro pilar era a paisagem, porque a agricultura precisa de vastíssimos espaços para se produzir, não é como os automóveis. Os agricultores eram os jardineiros da paisagem e rural era uma palavra totalizante. A gente via um burro - rural; uma senhora de preto - rural; um trator - rural; um coelho - rural. Nunca mais acaba. A palavra tornou-se caótica. O que se passa genericamente em Trás-os-Montes, não lhe posso chamar rural porque essa palavra não me diz nada. Genericamente, é uma economia assistida, algumas das pessoas que lá estão tiveram 30 ou 40 anos de emigração algures, portanto sociologicamente são urbanas, para todos os efeitos. O que sustem essa economia são as suas poupanças, as remessas, as reformas, como se a sociedade tivesse descolado do território. E eu vou chamar rural a isso? Ou vou chamar rural ao Algarve, que está disseminado das mais diversas formas de alojamento e de infraestruturas turísticas? Rural de quê?
No livro fala de camelos que foram importados para transportar a produção de loiça da Vista Alegre. Isto foi quando? 1950?
Foi nos finais do século XIX. Encontrei essa história no livro do centenário da Vista Alegre e achei-a formidável. Tal como para o espaço temos essas codificações que depois vamos a ver e são muito frágeis e muito pouco corretas, nós vemos o tempo também como uma espécie de sucessão de camadas onde cabem coisas que nós achamos. Por exemplo nesse caso, acharíamos que não entrariam camelos. É uma questão que é contada de uma maneira muito técnica. Antes de haver a linha do comboio, na segunda metade do século XIX, a loiça ia em carros puxados por animais. Eram coisas muito frágeis e iam para o Porto para serem exportadas. Por muito cuidado que houvesse em embalá-la, partia-se imensa coisa. O comboio nem pensar, é pior que o elefante e a loiça. Podíamos dizer um comboio numa loja de porcelana é pior do que um elefante. Um dos gestores da Vista Alegre teve essa ideia fantástica. Era um senhor viajado, percebia o camelo e a suavidade do camelo no transporte, e era suficientemente da geografia física para saber que entre Ílhavo e o Porto há um enormíssimo areal contínuo.
Lá ia a loiça a balançar mas sem se partir?
Esse gestor da Vista Alegre comprou uma cáfila de camelos em Marrocos e trouxe também os especialistas, porque em termos de psicologia dos camelos não pescávamos nada. E depois havia histórias engraçadíssimas pelo meio e uma delas era o pessoal que estava na missa quando vinham os camelos saía tudo.
Saía tudo alvoroçado?
E o padre ficava muito chateado porque o sagrado tinha sido preterido para o espetáculo do camelo.