Conhecimento e Liberdade
Na sequência do terramoto sentido em Lisboa há uns dias, um canal noticioso convidou o cientista Carlos Fiolhais e uma espécie de especialista cósmico para comentarem o tema. O segundo apresentou umas cartas de geometria astral ou lunar ou o que raio seja, para explicar os terramotos com base no alinhamento dos planetas. Com a sua habitual intolerância à pseudociência, o Carlos Fiolhais replicou, sem receio de ficar mal na televisão, que aquilo não passava de uma série de disparates.
Claro que há quem diga que não existem certezas absolutas, que a Ciência é transitória, que tudo é relativo, mas é tempo de alguém não ter medo de resistir aos avanços de uma nova Idade das Trevas que pretende fazer regressar o pensamento sobre a realidade a épocas pré-científicas, principal, mas não-exclusivamente, com duas origens: os pensamentos religiosos fundamentalistas e as modas dos tempos que passam, em nome de uma pretensa “modernidade” que tem mais de pensamento mágico do que qualquer base empírica verificável.
Lá por fora, com epicentro nos EUA, há uma deriva fortíssima para substituir conteúdos científicos por proclamações religiosas. No Oklahoma, num trabalho de casa, no âmbito de uma “pesquisa” sobre o início do mundo, colocaram-se questões como “Deus é real?” e “Satanás é real?” no que até poderia ser um debate filosófico, se não fizesse parte de uma estratégia de voltar a colocar a Bíblia no centro do processo educativo. Diz-se que é como fonte de História, mas vai-se mais além. No Texas, uma reforma curricular vai no mesmo sentido: a Bíblia como fonte primordial da nossa visão da realidade. Mesmo se isso entra em choque com outras visões religiosas.
Por cá, tem sido comum uma não muito subtil tentativa de fragmentação e atomização do Conhecimento com base na Ciência, afirmando-se a necessidade de promover abordagens que promovam a transdisciplinaridade. Critica-se o currículo por ser extenso e desarticulado, mas são criadas novas disciplinas, reservando tempo para matérias que deveriam fazer parte de aprendizagens do quotidiano extraescolar.
A História é anacrónica, porque o empreendedorismo é que está a dar. A Filosofia está reduzida a dois anos esqueléticos, mas financiam-se academias ubuntus. A Matemática deve ser “divertida”, como se fosse uma atividade de lazer e talvez seja melhor ensinar a petizada a andar de bicicleta, porque lá em casa ninguém tem tempo ou paciência para o fazer. Línguas estrangeiras? Vamos lá usar microtextos com as estrelas pop do momento, que a Gramática é muito aborrecida.
Diz-se que é isto a “inclusão” dos saberes e interesses dos alunos, que a escola deve “seguir os tempos”, quando a função essencial da Educação deve ser algo mais profundo do que aproveitar os salpicos das ondas de passagem. A Educação moderna e contemporânea (quase) sempre visou a combinação da transmissão dos conhecimentos acumulados pela Humanidade com o desenvolvimento da capacidade de desenvolver novos caminhos para o conhecimento (nos níveis mais avançados). Isso tem vindo a ser abandonado em nome de visões críticas do Conhecimento como se fosse algo com origem em tenebrosas teorias da conspiração, sejam as que a direita religiosa pretensamente denuncia como “guerras culturais”, sejam as que a esquerda wokista considera serem paradigmas de matriz racista, sexista e intolerante.
Um dos resultados é que em prime-time se coloca um cientista e uma variante de astrólogo a debaterem um assunto como se as suas visões tivessem o mesmo capital explicativo. E quem vê e ouve que escolha o que mais lhe agrada, em nome de uma “liberdade” enganadora.
Astronomia e Astrologia não são equivalentes.
Geologia e Tarot cósmico também não.
A Educação é uma escola para a Liberdade que só funciona se antes de “pensamento crítico” se tiverem as ferramentas e conhecimentos indispensáveis para o exercer. Não é livre quem escolhe o que lhe parece mais “interessante” ou “divertido”. Porque não é livre quem não sabe distinguir o verdadeiro do falso.