Milad (centro) está em Portugal há dois anos e ontem concretizou um dos seus sonhos. (Nuno Brites / Global Imagens)
Milad (centro) está em Portugal há dois anos e ontem concretizou um dos seus sonhos. (Nuno Brites / Global Imagens)

Refugiado do Afeganistão, Milad esperou dois anos para poder jogar à bola em Portugal

Esta é a história de um menino afegão que desde pequeno sonhava ser “como o Cristiano Ronaldo”. Com a família, fugiu da guerra e veio para Portugal. Após dois anos a treinar num clube de Leiria à espera do estatuto de refugiado e do cartão da FPF, fez agora o primeiro jogo.
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Milad é um dos jogadores mais altos da equipa de iniciados da Academia Desportiva CCMI. Quem o vê deslizar no sintético do Soutocico, entre os adversários, não pode imaginar que é a primeira vez que entra em campo a sério, para jogar. É domingo, 14 de janeiro de 2024, e passaram menos de oito dias desde que o clube recebeu o cartão do jogador. Porém, passaram mais de dois anos desde que Milad Nayibi deixou o Afeganistão e se refugiou em Portugal, rumando a Leiria com a família. Foram mais de dois anos à espera da regularização do processo que lhe conferisse o estatuto de refugiado, permitindo enfim jogar futebol federado.

O clube recebeu o cartão há uma semana e quis guardar segredo para lhe fazer uma surpresa. “Não contámos nada no treino de segunda, nem no de quarta, nem no de sexta. Só no final é que preparámos tudo: estava lá a família, os serviços sociais que os acompanham, e anunciámos que o jogador convocado para o jogo de domingo era ele”, conta ao DN Renato Cruz, presidente da direção da ADCCMI.

Ao longo de toda a semana, o treinador, Emanuel Bragança, criara uma aura de suspense em torno do jogo de domingo, com o Grap-Pousos. “Fui-lhes dizendo que haveria um jogador convocado que eles não estavam à espera”, conta ao DN. Depois do treino, anunciou a boa nova: “É o Milad.” A equipa explodiu em festa, enquanto o rapaz se emocionava, tal como a família, entretanto chamada para assistir à surpresa. Dois anos depois de chegar a Portugal e de treinar rigorosamente todas as semanas, sem nunca falhar, Milad exibia o seu cartão da Federação Portuguesa de Futebol, enquanto iniciado.

Este domingo, cruzou o relvado com a confiança de sempre, ora a extremo esquerdo, ora a ponta de lança. Marcou um golo, assistiu outro, a equipa somou mais uma vitória. Quando entrou no bar do campo do Soutocico (onde o clube treina e joga), ao lado dos companheiros de equipa, era um rapaz feliz, do alto dos seus 13 anos. Apesar de ter vencido a barreira da língua, há ainda muitas dificuldades na aprendizagem, notadas na escola. “A minha melhor nota é a Educação Física. Tenho sempre 5.” Fã de Neymar, Pelé e (claro) Cristiano Ronaldo, diz que quer ser jogador de futebol de profissão. O treinador acredita que pode acontecer. “Ele tem talento. E perante a sua determinação, é bem possível. Acredito que pode vir a ser”, afirma Emanuel Bragança.

Vencer a barreira da língua

Milad apareceu pela primeira vez no treino da ADCCMI pela mão dos Serviços de Ação Social do município de Leiria, que trataram do acolhimento à família. O treinador recorda-se bem “do miúdo retraído, bastante tímido, que não dominava nada da língua. Essa viria a ser a nossa principal barreira, mas que ele acabou por ultrapassar com facilidade”. Dois anos depois, Milad fala português fluentemente. “O que mais aprecio é o foco, a forma de ser dele: não falta a um treino, não falta a um jogo”, mesmo que até agora nunca jogasse.

O treinador comunica com ele diariamente, para lá do contexto de treino. E quando esta semana soube da boa nova, sentiu “um grande orgulho e um sentimento de dever cumprido, apesar de eu não concordar com a forma como estes processos decorrem, porque na verdade estes miúdos só querem praticar desporto. E foi muito desgastante para todos ele não poder jogar”.

Emanuel Bragança nunca tinha lidado com uma situação como esta. Estava habituado a ter nas suas equipas jogadores de várias nacionalidades, “mas neste caso não era só a língua, era uma cultura diferente, e esse foi talvez o maior desafio”, sublinha, embora enfatize sempre “a forma como os colegas o acolheram, e até os pais destes”. Um deles “dá-lhe boleia praticamente para todos os treinos”, o que suscita gratidão por parte da família. E desta a ligação com o clube é feita através de uma das irmãs, Nilab, de 20 anos, a única que fala inglês e até já português. É ela quem conta ao DN como o irmão mais novo parece ter nascido “com a bola nos pés”. “Mal ele começou a andar, já jogava à bola. E desde pequenino queria ser como o Cristiano Ronaldo. Era por isso que conhecíamos Portugal.” A família morou em Cabul até agosto de 2021. O pai era proprietário de uma imobiliária e a vida corria de feição aos oito filhos. Nilab, uma das raparigas mais novas, tinha acabado de entrar para a universidade, para estudar literatura espanhola. A chegada dos talibãs ao poder mudou-lhe planos e sonhos. Embarcou com os pais e alguns irmãos para Portugal. “Aqui nunca nos sentimos refugiados”, afirma, ao lado da irmã Sara, de 18 anos. A família reuniu-se toda meses mais tarde por cá, à exceção das irmãs mais velhas, que já estavam nos Estados Unidos da América.

Desde 2021, Portugal acolheu mais de 750 refugiados afegãos. Milad é o único no clube de Leiria e o primeiro refugiado de guerra. Mas a Academia já teve “alguns processos difíceis com estrangeiros”, recorda Renato Cruz. Um desses, do Usbequistão, nunca se conseguiu inscrever. “Quando fez 18 anos, começou a colaborar connosco enquanto treinador adjunto, mas foi uma pena nunca jogar.

Em Leiria, o clube acredita que a história de Milad pode inspirar não só outros clubes como o próprio país a “mudar alguma coisa, para permitir que esses miúdos pratiquem desporto como merecem”.

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