António Damásio: “Há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento”
Rui Oliveira / Global Imagens

António Damásio: “Há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento”

Neurobiólogo, docente, autor, António Damásio é o convidado do ciclo “Futuros da Educação”, iniciativa da Cátedra UNESCO em Portugal, com o apoio da UNESCO Brasil. Convocado ao debate, o cientista envereda pelo tema da “consciência de si”, mas também da procura de uma educação mais emocional.
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Esta é uma conversa que decorre apartada no espaço, entre dois pontos a distarem nove mil quilómetros, e no tempo, com oito fusos horários a separá-la. O neurobiologista António Damásio, professor de Neurociência na Universidade do Sul da Califórnia, autor de obras de referência como O Erro de Descartes, O Livro da Consciência e, mais recentemente, A Estranha Ordem das Coisas, atende ao nosso pedido. As perguntas partem de Lisboa numa entrevista endereçada a Los Angeles. O propósito é antecipar os temas hoje a debate em mais um momento do ciclo “Futuros da Educação”, iniciativa promovida pela Cátedra UNESCO, com organização de António Sampaio da Nóvoa, doutor em Educação e em História. O tema que reunirá uma plateia no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, a partir das 15h00 (com transmissão online em direto), detém-se na questão The new science of consciousness. O investigador, vencedor do Prémio Príncipe das Astúrias de Investigação Científica e Técnica e até recentemente membro do Conselho de Estado, deixa uma nota: “Não sou especialista em educação, sou cidadão do mundo ocidental, sou neurobiologista e um cidadão informado.” É nesta condição que convocamos António Damásio a refletir sobre questões do nosso tempo: Inteligência Artificial, futuros e o presente da educação, crianças e a sua exposição às redes sociais e a aparentemente subtil, mas tão fundamental, diferença entre consciência e consciousness. 

Afirmou há uns anos em entrevista que “se não houver educação maciça, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”. Associou a carência de educação ao crescimento de movimentos anti-imigração, à ascensão de partidos neonazis de nacionalismo xenófobo. Face ao panorama atual, somos levados a crer que os sistemas educativos estão a falhar?
Em parte, a resposta é um sim. Os sistemas educativos não estão a responder aos desafios que enfrentamos atualmente. A situação inclui uma transformação profunda do dia a dia que se relaciona com diversos fatores, como a aceleração do ritmo de vida, a perda de influência de sistemas religiosos que, tradicionalmente, têm funcionado como moderadoras da agressividade e da violência, a transformação do entretenimento que, no presente, é muito mais violento do que no passado. O fator que possivelmente é o mais importante prende-se com a transformação imposta pelas redes sociais.

Refere as redes sociais. Deparamo-nos atualmente com crianças e jovens absortos horas a fio nas redes sociais. De certa forma, estas redes entram na mente das crianças, monopolizam-lhes a atenção, formam-lhes juízos. É aí que encontra os perigos a que se refere?
Um dos fatores que contribui para o aumento da violência prende-se com a desregulação que resulta das redes sociais. Hoje, há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento. Há o confronto constante com a ação, por vezes violenta, como substituta da reflexão e da calma. Temos uma imagem permanente de violência e de ação, com a exibição de conflitos e incompatibilidades, em vez de propostas de soluções. Atualmente, há a exaustão frente ao conflito e a vulgarização do mesmo. É muito difícil as pessoas terem tempo para pensar soluções alternativas quando tudo aquilo que lhes é oferecido é violência e confronto.

Face ao exposto, de que tipo de educação precisamos? Ou, se preferir, que modelo de escola precisamos?
Aquilo que antevejo em termos de futuro é uma educação que tenha um bom princípio do ponto de vista da realidade. Há uma realidade que nos rodeia e há outra que pode ser analisada do ponto de vista científico. É possível, através da física e da biologia, ter uma ideia muito concreta e real do que nos rodeia e do que somos. Um aspeto essencial da educação de hoje, e também no futuro, é termos uma ideia tão aproximada do real quanto possível, daquilo que é a componente física que nos rodeia e daquilo que somos do ponto de vista biológico e do ponto de vista humano nas interações com outros seres humanos. Claro que há o risco de uma educação fundada nesses elementos ser demasiado científica e, por isso, parecer menos humana. A única forma que vejo de compensar esta realidade é com aquilo que, de uma forma muito genérica, se descreve como artes e humanidades. Ser educado sem o respeito pela realidade da música, das artes visuais, a realidade da literatura, impõe um empobrecimento extraordinário. Há o risco destas atividades serem olhadas como algo do passado. Mas não o são. Trata-se do nosso real. Um ser humano com gravidade e profundidade tem de apreciar o que são os outros seres humanos, os seus problemas e aquilo de que são capazes de conceber em matéria de invenção, de descoberta, de criação de objetos de arte, seja uma escultura, uma pintura ou uma peça musical. É essa reunião de elementos que, julgo, terá sido sempre o ideal educativo. Os ideais greco-romanos de educação podem ser perfeitamente adaptados ao momento atual, sem desmerecer nessa adaptação tudo aquilo que a técnica moderna nos oferece.

Em diferentes momentos alertou para o desfasamento entre o desenvolvimento da dimensão cognitiva, associada à razão, das crianças e jovens, em detrimento da dimensão emocional. Que consequências traz este desfasamento? 
Há que saber respeitar as respostas emocionais, o que se relaciona com tudo aquilo que nos pode vir da literatura, do teatro, do cinema, da reflexão filosófica. Julgo que são muito importantes do ponto de vista educacional e que é também evidente, na vida atual, que lhes tem sido retirado valor através dos sistemas públicos de entretenimento. Dar valor às respostas emocionais é, provavelmente, a melhor maneira de as pessoas perceberem que não é só a razão, não são só os conhecimentos que as vão ajudar, mas também o respeito pelas respostas de caráter afetivo.

O entretenimento também nos traz respostas afetivas...
Claro que há que fazer uma distinção entre as respostas afetivas que também fazem parte do entretenimento e as respostas afetivas que são reais e importantes. Como referi, não vejo outra maneira de resolver o problema que não passe por valorizar as artes, humanidades e ciências. Há exemplos nas ciências humanas, como a filosofia em geral, nas artes, como a pintura, a música e a literatura que dão sinais fortes de como nos podemos reerguer. Uma forma de elevação que não seja aquela que se vive na internet, nas redes sociais, no momento presente, que é muito deslocada daquilo que é a vida real. Um princípio que se aplica, com certeza, ao país, tal como se aplica neste momento, possivelmente, a todo o mundo, não apenas ao mundo ocidental. Tudo funciona desta forma desligada e desequilibrada.

Tem estado a falar das redes sociais. Gostaria de o ouvir a propósito da Inteligência Artificial. Estaremos a sobrestimar a Inteligência Artificial? 
O problema da Inteligência Artificial (IA) reveste-se de aspetos curiosos porque, de facto, neste momento há uma IA que vem da nossa inteligência natural. A IA é inventada por seres humanos, mas neste momento está a assumir características muito particulares que se prendem em especial com o extraordinário êxito de certos modelos, os denominados large language models, que surgiram recentemente e que têm vindo a desenvolver-se ao longo dos últimos anos. Transformaram-se em coisas muito populares, através de sistemas como o ChatGPT, e que permitem, de uma forma muito poderosa, inventar histórias, responder a perguntas variadas e gerar imagens. Funcionam tanto verbalmente como do ponto de vista imagético e visual. Em si mesmo, carregam um problema, o de dar a impressão de que os sistemas artificiais são capazes de fazer todas estas coisas de uma forma única, nunca utilizada por seres humanos. Isso é falso.

Porquê?
O que acontece é que estes sistemas são, no fundo, baseados em sistemas humanos porque a informação e a descoberta da forma como se podem fazer estas operações que parecem abstratas é, no fundo, resolvida através de uma massiva análise de produtos humanos. Para construir estas respostas, a máquina recorre a milhares de milhões de textos inseridos na internet que são analisados de uma forma exaustiva e que a determinado ponto constroem frases simpaticamente compostas e que fazem sentido. A ideia de que aquilo que ali está é puramente artificial é falsa. É sim artificial na descoberta dos sistemas, mas a informação fundamental veio de seres humanos.

Sim, mas são sistemas com a capacidade de aprendizagem e que dão neste momento os primeiros passos. 
Há o problema do caminho futuro destes sistemas. Quais são os riscos, mas também as vantagens. No caso das vantagens, se forem bem controlados podem aumentar o poder prático da inteligência humana, o que não me parece que seja desfavorável, embora os problemas que estão ligados ao uso dessa inteligência no que respeita ao desemprego sejam extraordinários. As pessoas mal começaram a abordar esses problemas. Há outro risco: à medida que a autonomia destes sistemas cresce, há a possibilidade destes, chegados a um certo ponto, terem uma autonomia completa. Aí, em vez de estarem sob o controlo humano, benévolo e benevolente, estarão sob um controlo autónomo e farão o que entenderem. As opiniões estão muito divididas sobre se isso é um problema real ou um problema que traduz um cenário improvável.

Onde de situa a sua opinião?
Julgo que o cenário tem de ser pensado e acautelado e de que há essa possibilidade. Há, evidentemente, a possibilidade de agentes menos benévolos e bem-intencionados utilizarem estes sistemas para a espionagem ou para o roubo.

Na palestra que vai proferir deter-se-á na questão da consciência versus consciousness, aquilo que na língua portuguesa podemos definir como a consciência da nossa existência interna e externa. São palavras que, per si, se revelam traiçoeiras.
Sim, é uma palavra perigosa na língua portuguesa. O problema é que na língua portuguesa dizemos “consciência” e estamos a referir-nos não só ao inglês consciousness como também a conscience. Porque são, de facto, coisas diferentes. Conscience prende-se com aspetos puramente morais, relacionados com o comportamento humano, com valores corretos ou incorretos, com a verdade e a mentira. Já a consciência no sentido que nos traz a língua inglesa de consciousness, prende-se com o facto de sermos capazes de reconhecer aquilo que é a nossa própria identidade, o nosso self, e que isso nos faculta a entrada em todo o mundo mental e real que nos rodeia. A consciência, nesse sentido, o de consciousness, é essencial para sermos seres humanos com o sentido daquilo que está à sua volta e com a possibilidade de valorizar as coisas. Não se pode ter consciência no sentido moral sem se ter consciência do sentido do reconhecimento de nós mesmos. Na palestra vou afirmar que tudo aquilo que há a dizer sobre educação e a forma de como estamos no mundo, só faz sentido depois de sabermos que aqui estamos e que esta passagem se deve à consciousness

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