O estado da Justiça - um leal e frontal desafio
Creio ser muito positivo que o chamado Manifesto dos 50 - o qual, convictamente, subscrevi - haja finalmente colocado na ordem do dia a imperiosa necessidade de se debaterem os problemas da Justiça e de se buscarem correctas soluções para os mesmos.
Todavia, se o direito dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos legítimos direitos e interesses e os princípios essenciais de um processo justo e equitativo são traves-mestras do Estado de Direito, a verdade é que a Justiça, normalmente sob a invocação da “separação de poderes” ou da necessidade de salvaguardar a independência dos juízes ou a autonomia dos procuradores do MP, não se tem deixado questionar, nem tem prestado contas aos cidadãos da sua própria actividade.
Por outro lado, se os problemas da Justiça vão muito para além dos da Justiça Criminal, o certo é que, sem menosprezar aqueles (como o custo da Justiça e o da quase completa paralisia dos tribunais que apreciam a legalidade dos actos do Estado e das Administrações Públicas, incluindo a Tributária), é na Justiça Penal que se têm concentrado alguns dos mais graves atentados ao Estado de Direito, bem como o reforço de poderes - e respectivos abusos… - cada vez mais incontrolados, com consequências absolutamente irreparáveis quer para os cidadãos atingidos por tais abusos, quer para a credibilidade e para a legitimação democrática da própria Justiça.
Com efeito, na Justiça Penal, em vez de uma Justiça justa, exemplarmente cumpridora das regras e eficiente, o que encontramos são prazos processuais que quase nunca são cumpridos, é a utilização das escutas telefónicas, às vezes durante anos a fio, não como diligência excepcional, mas como principal, senão único meio, de investigação, são “averiguações preventivas” sem controlo de um juiz e para obter informação pessoal ou socialmente sensível, mas sem qualquer relevância criminal. Mas, sobretudo e acima de tudo, temos uma Justiça Penal onde ninguém se acha responsável por coisa nenhuma e onde passou a vingar a sistemática, e sempre impune, destruição do princípio constitucional da presunção de inocência através de um “mecanismo” que há muito deixou de ser feito de concretas e casuísticas violações do segredo de justiça para passar a ser um autêntico “sistema de vasos comunicantes”, de ganho recíproco, propiciando, para o lado da acusação, vantagens tácticas e estratégicas (leia-se, públicas condenações antecipadas) e, para o lado da “imprensa amiga”, sensacionalistas “notícias” de 1.ª página e, logo, elevadas audiências garantidas.
Julgo, por isso, ser desde logo imprescindível reafirmar dois princípios básicos, que são defendidos também no Manifesto, e com os quais os seus críticos deveriam ser confrontados para, dizerem com total clareza se com eles concordam, ou não, e porquê:
1.º Em Democracia, nem pode haver poderes, quaisquer que eles sejam, incontroláveis e/ou incontrolados, nem podem existir seres moral ou juridicamente superiores aos seus semelhantes, ungidos por qualquer espécie de toque divino que os arvore em “reguladores ético-sociais”.
2.º Em Democracia, os fins não justificam os meios (sob pena de acabarmos a aceitar e justificar os meios mais ilegítimos, como escutas ilegais e até a própria tortura e sob o risco de os que perseguem os violadores da lei se transformarem em iguais ou piores que estes).
Quanto a propostas concretas, eis algumas que há muito defendo e coloco ao debate que agora se abriu:
1) Diminuição acentuada (para, pelo menos, 50% do valor actual) e generalizada das custas judiciais, revisão do actual regime do Apoio Judiciário (que apenas concede a isenção aos indigentes) e gratuitidade de alguns tipos de processos (como impugnações de despedimentos, acidentes de trabalho, assédio moral e discriminação, acções de despejo, de Família e Menores).
2) Dotação imediata dos meios pessoais, materiais e logísticos indispensáveis para os Tribunais Administrativos e Fiscais cumprirem o objectivo de reduzir o tempo de pendência dos processos na 1.ª Instância para um máximo fixado, designadamente de 24 meses.
3) Reflexão aprofundada sobre a desnecessidade quer de duas diferentes jurisdições (a dos Tribunais Judiciais e a dos Tribunais Administrativos e Fiscais), quer de dois distintos Conselhos Superiores (CSM e CSTAF).
4) Criação do chamado “recurso de amparo” para o Tribunal Constitucional, deixando este de ser um tribunal de mera apreciação de normas (com o que indefere mais de 95% dos recursos), para passar a apreciar também situações de inconstitucionalidade, e diminuição para, pelo menos, metade das respectivas custas.
5) Designação de um não-magistrado, pessoa de reconhecida idoneidade e competência, para director do Centro de Estudos Judiciários, e criação de uma comissão independente para avaliar quer os conteúdos ali ministrados, quer a forma e critérios de seleção dos docentes.
6) Alteração da constituição do Conselho Superior do Ministério Público (pois que actualmente, dos seus 19 membros, 12 são da corporação) em ordem a retirar essa maioria a tais membros.
7) Transparência total do processo de designação do procurador-geral da República, com conhecimento público das propostas apresentadas e respectivo fundamento, e audição pública do nomeado no Parlamento (em sessão pública do Plenário, ou, pelo menos, em sessão aberta da 1.ª Comissão).
8) Prestação regular de contas por parte do procurador-geral da República da actuação do Ministério Público, desde logo, com a apresentação e discussão do respectivo relatório anual de actividade perante a Assembleia da República.
9) Instituição do regime de fiscalização jurisdicional (pelo juiz de instrução) de todos os actos do Ministério Público, desde logo na fase de inquérito.
10) Conhecimento exacto de quem é o titular e, logo, o responsável por cada processo, sobretudo no caso de equipas e de colaborações do Ministério Público.
11) Sujeição de todas as medidas de coacção mais graves e de todos os actos processuais mais violentos e/ou intrusivos, pretendidos pelo magistrado titular do inquérito, não só à prévia concordância e co-responsabilização do superior hierárquico imediatamente superior, como também à prévia decisão do juiz de instrução criminal.
12) Imposição de consequências processuais peremptórias (extintivas) para o incumprimento dos prazos de conclusão dos inquéritos (salvo casos devidamente justificados pelo juiz de instrução).
13) Atribuição a um organismo especial, dirigido por cidadão de reconhecida idoneidade, da competência para investigar os casos de violações de segredo de justiça, pelo menos em processos-crime.
Aqui fica, pois, um modesto contributo e também um leal desafio para que todos os que querem efectivamente debater o estado da Justiça em Portugal e as medidas que, face a ele, devem ser adoptadas venham pronunciar-se sobre estas propostas com o mesmo espírito de frontalidade e de seriedade intelectual com que elas são aqui apresentadas.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.