O universo não nos deve nada

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O Universo não nos deve nada, nem sequer a existência da ciência. Não está obrigado à consistência lógica nem à inteligibilidade, à lei moral, à matematização, à beleza ou a qualquer conceito, método ou regime humano da verdade. Que o mundo seja compreensível é de facto perfeitamente incompreensível (Einstein). Qualquer avanço científico significativo parece requer especulações proporcionalmente delirantes. Sabemo-lo com clareza pelo menos desde Feyerabend: não há método, não há resultados que provem o método. Não há nenhum salto puramente racional para inferir teorias de factos. Não há ‘períodos normais’ da ciência, para que possam ser pontuados por revoluções e catalisar mudanças de ‘paradigma’. Não pode haver um critério rígido de ‘falsificabilidade’ sem o esvaziamento do que conhecemos como ciência. Haverá porventura determinada tendência, quando consideramos séries específicas de teorias científicas, mas mesmo dela será difícil extrair, em última análise, uma definição teórica ou prática de ‘metodologia científica’. O impossível é a única direção plausível.

Não é por acaso que a nova rede social de Trump se chama Truth Social. Ninguém sabe o que significa realmente ‘dizer a verdade’, mas nada mais fácil do que defender a verdade de uma ideologia. A autoridade do oráculo e do profeta foi substituída pela do cientista, arauto da razão, novo mensageiro da verdade. E com quem fala do pedestal da Verdade não se discute ou argumenta, obedece-se! Que faremos no dia em que se provar cientificamente que o melhor sistema é o totalitarismo? Ao lado de jogadores de futebol e políticos, o cientista-especialista é a nova pop star e um dos influencers preferidos dos meios de comunicação de massa (veja-se a ascensão meteórica de virologistas durante a pandemia). Inconscientemente ou não, transformou-se subterraneamente a ciência em algo tão opressivo quanto os inimigos que ela própria combateu um dia. Compreendemos bem a estratégia: restritos à finitude da existência, às fronteiras dos nossos sistemas de pensamento e aos limites da nossa linguagem, resta então inverter o sentido das palavras para que ‘liberdade’ ou ‘verdade’ possam andar de mãos dadas com o poder, o interesse económico e financeiro e a pobreza de espírito.

Defender a ciência significa reconhecer em primeiro lugar, como Carlo Rovelli, que a maior descoberta científica do século XX é o facto de que a ciência se engana. Essa é de longe a sua maior força - não as experiências, nem a matemática, nem o método, e menos ainda os especialistas. Recordando as palavras de Max Born, escritas na década de 1960: “Nunca gostei de ser um especialista e sempre fui um diletante, mesmo nos assuntos considerados como meus. Não me encaixaria na ciência de hoje, feita por equipas de especialistas. O pano de fundo filosófico da ciência sempre me interessou mais que os seus resultados especiais”. Também Richard Dawkins distingue duas abordagens fundamentais: a primeira insiste na Poesia da Ciência, significando a tentativa de pensar o impensável nas suas mais vastas ramificações. A segunda abordagem é descrita como a da Frigideira Antiaderente (um subproduto da exploração espacial), que simboliza um foco exclusivo na utilidade prática da ciência. É esta última, evidentemente, que interessa sobretudo à indústria, aos políticos e aos especialistas. Mais de 90% dos cientistas que já existiram estão hoje vivos. Mas, como alerta Lee Smolin no livro O Romper das Cordas, conta-se pelos dedos o número de cientistas pagos a tempo inteiro para estudar a origem do Cosmos...

Prever não é explicar, e muito menos compreender. A mecânica quântica exemplifica melhor que qualquer outra teoria esta dicotomia: o seu poder preditivo atinge uma precisão inédita na história da ciência ao mesmo tempo que a interpretação do que realmente se passa fisicamente é alvo das maiores controvérsias. Os especialistas recorrem frequentemente ao célebre mote “Shut up and calculate”, ou seja, refugiam-se na previsão, deixando a explicação propriamente dita para segundo plano, como se fosse um campo menor de investigação, a relegar para filósofos. O especialista de hoje, sobretudo nas ciências físicas, é largamente ignorante da história e mais ainda da filosofia do seu próprio campo de investigação, como o comprovará qualquer rápida análise aos planos de estudos conducentes a graus académicos. O especialista anseia por prémios e reconhecimento público. Raríssimos são aqueles, como o russo Grigori Perelman, que ao ver-lhe atribuída a Medalha Fields (equivalente ao Nobel da matemática) de 2006, recusou dizendo: “Não estou interessado em dinheiro ou fama; Não quero ser exibido como um animal num jardim zoológico”.

Abundam também aqueles que pretendem defender a ciência das ‘pseudociências’, fiéis guardiões tipicamente crentes no dogma do ‘método científico’. A esses convém recordar que Galileu rejeitou a ideia de que a Lua pudesse ter influência nas marés, por considerar tal hipótese demasiado perto da Astrologia, ou ainda que o livro de Copérnico De Revolutionibus Orbium Caelestium foi proibido pela Igreja Católica em 1616 com o argumento de se tratar de ‘pseudociência’. De facto, a emancipação da ciência de outros campos epistemológicos foi tratada seriamente por Karl Popper ou Imre Lakatos, e é conhecida como o problema da demarcação. A separação entre ciência e ‘pseudociência’ é apenas o grau zero de uma difícil questão que pretende ainda decidir quando é que uma teoria científica é melhor que outra. Lakatos apresenta três ‘escolas’: 1) positivismo militante (Popper, Carnap), que julga existir um critério de demarcação capaz de classificar teorias como boas e más; 2) anarquismo epistemológico (Feyerabend), que recusa qualquer demarcação e critério, e; 3) autoritarismo elitista (T. Khun), que admite demarcação, mas não a existência de critério, sendo a demarcação decidida por uma elite de especialistas. Este terceiro caso é o standard atual para organizações científicas institucionalizadas (por exemplo a Royal Society).

Mesmo assumindo que a ciência foi um instrumento libertador no século XVII, nada há na sua essência que garanta que o seja hoje. Sobretudo, jamais deve ser confundida com democracia. O maior erro de Einstein não foi, como ele afirmou perante as pistas de que o universo estaria em expansão, a ‘constante cosmológica’ (introduzida pensando num universo estacionário), constante que atualmente se revela importante no estudo da misteriosa Energia Negra. O seu maior erro foi ter enviado uma carta a Roosevelt a pedir o desenvolvimento da bomba atómica...

É hoje imperativo recusar categoricamente que seja exclusivamente a ciência a definir o real, muito menos a “ciência” económica. Nada “obedece” a uma lei, nem um peixe nem um átomo. Em linha com David Hume, podemos conceder às leis a descrição da regularidade dos padrões da natureza, não a governação, autoridade ou legislação sobre esses padrões. A realidade fez nascer uma galáxia, na qual floresceu um planeta, berço futuro de uma espécie capaz de desenvolver a ciência. Não foi a ciência que criou a realidade. A ciência não tem de existir para existir o mundo. Hoje, a ciência habita na liberdade do pensamento (Feyerabend). Há ainda muito a caminhar rumo à liberdade livre.

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