Um acórdão nada preconceituoso
“O preconceito, seja ele qual for, é, em qualquer caso, prejudicial, designadamente como motor e critério de ações, apreciações e decisões.”
Esta frase, plena de bom senso, faz parte do acórdão que condenou Cláudia Simões e Carlos Canha, respectivamente, uma cozinheira negra que na noite de 19 de janeiro de 2020 entrou para um autocarro da Vimeca com a filha de 8 anos sem se dar conta de que esta não trazia consigo o passe (gratuito pela sua idade) e recusou comprar bilhete, e um agente da PSP branco que a deteve na sequência dessa recusa. Ambos foram condenados pelo crime de ofensa à integridade física qualificada - ela sobre ele, ele sobre dois homens, negros como Cláudia, de seus nomes Quintino Gomes e Ricardo Botelho, em relação aos quais foi também condenado por sequestro agravado e ao pagamento, ao primeiro, de uma indemnização de 3500 euros por danos morais.
Escrevi sobre essa decisão no próprio dia em que foi conhecida e amplamente noticiada - 1 de julho - antes de ter acesso à mesma, assinada pelos juízes Catarina Pires, Carlos Camacho e Tânia Vidal, do Tribunal Criminal de Sintra. Regressada de férias, volto ao assunto, porque a principal dúvida que exprimi no meu texto ficou esclarecida agora que a li.
A dúvida prendia-se com o facto de os três magistrados certificarem que aquele polícia não só tivera motivos para deter a cozinheira (porque esta recusara identificar-se) como usara apenas da força necessária para o fazer, não a agredindo, como ela e a acusação do Ministério Público (MP) sustentavam, enquanto era transportada para a esquadra num veículo da PSP, mas condenarem-no por ter, na mesma ocasião, mandado deter e conduzir à esquadra, sem qualquer motivo, aqueles dois homens, que o tribunal caracteriza como meras testemunhas dos acontecimentos, e aí os agredir a soco e pontapé. Convenhamos que parece bizarro um tribunal deliberar que o mesmo agente foi capaz, em relação a Quintino e Ricardo, de uma tal conduta criminosa, de tal abuso de poder, desprezo pela lei e pelos seus deveres enquanto polícia, enquanto com Cláudia, que confessadamente resistiu à detenção e o mordeu, a sua conduta fora sempre proporcional e irrepreensível.
Ora está bem explicado no acórdão: “Os verificados comportamentos do arguido Carlos Canha evidenciaram e evidenciam serem próprios de alguém que em regra age e decide bem, de forma ponderada, corajosa e controlada, mas que naquele dia, inaceitavelmente, depois de desse modo ter agido para com Cláudia Simões, acabou por agir de modo impulsivo relativamente a Quintino Gomes e Ricardo Botelho (…), de cabeça perdida (…). Já na esquadra, descomprimindo do ataque de que se viu vítima por ser polícia, ao ver Quintino Gomes e associando-o, também inaceitavelmente, àquele evento, impulsivamente, deu-lhe um soco (…). O mesmo tipo de atuação foi levado a cabo pelo arguido Carlos Canha contra Ricardo Botelho (…)”.
Esta caracterização de Canha como alguém credível, responsável, “bom”, abrange até as razões pelas quais, no entender dos magistrados, mentiu ao tribunal sobre a sua atuação face a Quintino e Ricardo: “Naquela data, quando descomprimiu, acabou por ser impulsivo e fazer o que sabe que nunca podia ter feito, e atualmente, por não conseguir suportá-lo, não consegue assumi-lo e por isso o nega”. Nem o facto de o polícia ter sustentado que os dois homens o tinham agredido com “murros e pontapés nas costas (…) enquanto tentava deter Cláudia Simões” e "estavam a instigar as pessoas” para que “estas investissem para a libertar" demove o tribunal de considerar que está arrependido: “Logo soube, como sabe, que não existe arrependimento que apague o mal que a estes dois fez”.
O olhar empático sobre Canha contrasta com aquele que os magistrados reservam para Cláudia Simões. A esta, as mentiras que lhe imputam, no que respeita às agressões de que disse ter sido vítima por parte de Canha e à ameaça que consideram provado ter dirigido ao motorista do autocarro (“devia levar uma surra”), funcionam como definição de caráter, resultando, “pela global extensão da sua conduta, [de] não ter interiorizado, designadamente ao nível das emoções, da moral e da ética, a responsabilidade pelos atos que sempre soube (…) ter levado a cabo”.
Assim, para o tribunal, todos os comportamentos da cozinheira são “próprios de alguém autocentrado, impulsivo e unicamente atento aos interesses seus e dos que lhe são mais próximos”; alguém que “deliberada, artificiosa e violentamente tinha obstado a que um agente da PSP devidamente a identificasse”, e “que violenta e falsamente tinha obstado e persistia em obstar a que tal agente da PSP a detivesse”; que agiu “fazendo-se de desentendida”, “com a esperteza própria de quem quer livrar-se da situação”, querendo fazer-se “passar por vítima”; “cujo modo de ser impetuoso resultou transparentemente verificado também ao longo da audiência de julgamento”. O apodo de “violenta e falsa” é várias vezes repetido a propósito de Cláudia Simões, desmentida em tudo o que disse - o tribunal nem sequer admite que ela estava a falar ao telefone durante a viagem de autocarro, apesar de várias testemunhas o afirmarem, ou que pediu a um filho que levasse o passe da miúda à paragem de autocarro - e severamente responsabilizada quer pela falta do passe da sua filha quer pelo choro e sofrimento da criança (que assistiu à sua detenção). O acórdão acusa-a também de criar um “alarde baseado em falsas assunções de atuação policial com pretensa motivação racista” e da intenção de, retratando-se como vítima, “obter uma choruda indemnização” (pedia uma indemnização de 200 mil euros aos polícias envolvidos e ao Estado). Nem a possibilidade de que estava aflita e a temer pela vida quando foi “dominada” pelo agente o tribunal considera, embora reconheça aflição no polícia face à resistência dela e ao ajuntamento de pessoas que assistia à situação - um ajuntamento que os juízes denominam de “turba vociferante".
Aliás não é só Cláudia Simões a ser retratada pelos juízes do Tribunal de Sintra como apresentando uma versão falseada dos acontecimentos: praticamente todas as testemunhas que contrariam a versão do motorista e do polícia no que respeita à atuação deste sobre ela são acusadas de “perspetiva enviesada, parcial, sugestionada, orquestrada”. Expressões repetidas no acórdão em relação a várias pessoas, incluindo uma comerciante que ligou para o 112, enquanto a detenção ocorria, a denunciar o que via como “um agente a tratar mal uma senhora”, “isto não é normal, isto é violência”, “olhe para isto, ele vai matar esta senhora”.
Diz o tribunal que a apreciação dessa testemunha - a quem, curiosamente, a pessoa que atende do 112 procura convencer, como resulta da transcrição da comunicação, de que Cláudia Simões merece o que lhe está acontecer - resulta de uma “atitude preconceituosa”, que “atribui ao que vê um significado distinto da realidade, porque incompleto e perturbado pela confusão de pessoas que se manifestava sobre o que via ou percecionava”. O acórdão explica até que não houve, como a testemunha crê, “excesso de força” porque “o polícia - Carlos Canha -, que era alto, forte, robusto e treinado, só a muito custo e ao fim de vários minutos conseguiu controlar Cláudia Simões e só com a colaboração de outro colega acabou por conseguir algemá-la”.
Já no que respeita aos testemunhos de agentes policiais, nomeadamente os dois que vinham acusados de abuso de poder (por, de acordo com a acusação do MP, terem assistido às agressões de Canha a Cláudia Simões durante a viagem de carro até à esquadra e nada terem feito), o entendimento do tribunal é de que foram “sentidos”, “seguros”, “isentos” - em suma, credíveis. Isto apesar de, em contestação da acusação que sobre eles recaía, terem afirmado que “Cláudia Simões livre e conscientemente auto-infligiu-se ferimentos”.
Particularmente curiosa é a preocupação dos três magistrados em não só refutar a motivação racista da ação de Carlos Canha como também admoestar “o conjunto de pessoas que se associaram a Cláudia Simões com o fito de combater o racismo”. Um fito “mal servido”, diz o acórdão, porque o viveram e expuseram “de forma ignorante” e “panfletária”.
Não é todos os dias que vemos tribunais a fazer comentário político. Talvez tal preocupação tenha levado estes três magistrados a esquecerem-se de explicar por que motivo a não exibição de um passe gratuito de uma criança e o relato da frase “precisava de uma surra” (que, sublinhe-se, ninguém, a não ser o motorista, parece ter ouvido, e em relação à qual aquele não apresentou queixa) pode justificar a exigência de identificação por parte de um agente policial. Era tanto mais curial que o tribunal procedesse a esse esclarecimento quando a acusação do Ministério Público era enfática na negação de que tenha existido motivo para tal exigência, reputando-a até de ilegítima. Mas as 149 páginas do acórdão não chegaram.