Violante Saramago Matos: “Não digo que o Presidente está a gozar. Mas imita bem”
Lembra-se de onde estava a 7 de novembro de 2023?
Estava em casa e fui apanhada neste turbilhão.
Qual foi a sua primeira reação?
Pensei: “O que se passa?” E muito rapidamente tive a perceção de que havia coisas que não se encaixavam. Eram notícias estranhas. Não era um: “Há um processo, vai correr, vamos ver o que acontece”. Houve, desde o início, uma sensação de desconforto.
A decisão de escrever este livro teve a ver com aquilo a que chamou “o direito de saber se a democracia já foi definitivamente para o lixo”?
Um bocado isso. Fui ao Brasil e estava no avião, mas claro que hoje, com a internet, vamos lendo as notícias. E vinha a pensar no que o meu pai diria se fosse vivo. De repente, pensei: “Não sei o que ele diria ou o que faria, mas eu vou escrever.” Cada vez mais, à medida que o tempo ia passando, me era desconfortável a forma como as declarações eram feitas e o que era praticado. Era muito pouco coeso e sólido para me permitir percecionar que era um processo a correr bem dentro dos limites do Estado de Direito.
Essa viagem de avião foi em que dia?
Mais ou menos a 20 [de novembro], não sei exatamente.
Já depois de muitos desenvolvimentos.
Sim, depois de uma série de declarações, da procuradora-geral e do Presidente da República, depois do Conselho de Estado e depois do anúncio de que iria aceitar a demissão do primeiro-ministro, mas que ia ser mais tarde.
Escolheu, para epígrafe de 70 Dias à Margem da Democracia, uma passagem do Ensaio sobre a Cegueira (“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”). Pode dizer-se que fez um ensaio sobre o parágrafo [acrescentado pela procuradora-geral no comunicado inicial, com a referência a um inquérito ao primeiro-ministro no Supremo Tribunal de Justiça]?
Não sei se fiz um ensaio sobre o parágrafo, mas esta epígrafe do Ensaio sobre a Cegueira é, para mim, muito lúcida e muito abrangente. É evidente que penso muito no meu pai, naquilo que deixou escrito e naquilo que disse. Nesta situação, houve uma série de coisas que me surgiram muito clarinhas na cabeça. E uma delas foi esta. Não queria fazer aqui alguma avaliação jurídica sobre uma matéria para a qual não tenho nenhuma competência, mas como cidadã, como mulher que pensa, e já viu muita coisa, achei que era preciso olhar, ver e reparar. Não vou dizer que não foram inocentes, mas precisam de nos convencer que foram coincidências e não foi tudo preparado. É preciso que nos convençam que, de facto, não houve uma montagem que levou ao que levou. Havia, constitucionalmente, outros caminhos que não quiseram seguir. Têm de convencer um país inteiro que vê cair um Governo, e vê dissolver uma Assembleia da República de maioria absoluta, de que tudo isto está certo do ponto de vista ético, do ponto de vista constitucional e do ponto de vista da política.
Quando fala de montagem, refere-se ao Presidente da República e à procuradora-geral ou a mais pessoas?
Os grandes agentes de todo este processo foram exatamente o Presidente da República e a procuradora-geral. E a verdade é que o Presidente da República dissolve uma Assembleia quando nada na Constituição o impele a fazê-lo. Assembleia e Governo, no nosso ordenamento constitucional, são dois órgãos distintos que não dependem um do outro. Juro que fui ler outra vez uma série de artigos da Constituição, e nada obriga a que, perante a demissão do primeiro-ministro, automaticamente a Assembleia seja dissolvida.
António Costa caiu numa armadilha logo na posse do último Governo, quando o Presidente defendeu no seu discurso que a maioria absoluta dependia da permanência do primeiro-ministro em funções?
O discurso na tomada de posse indiciava que poderíamos ver-nos, um dia, numa situação deste tipo. O Presidente da República sabe muito melhor do que eu, porque sou bióloga e ele é constitucionalista, que na Constituição não há uma letra que diga que o primeiro-ministro é eleito. Até pode não pertencer a nenhuma lista de candidatos. Um partido ganha as eleições e propõe um primeiro-ministro. Portanto, não é o facto de o primeiro-ministro se demitir que implica, legal, institucional e constitucionalmente, qualquer dissolução de uma Assembleia com maioria absoluta.
Acredita que a procuradora-geral da República vai ser recordada como uma pessoa que derrubou um primeiro-ministro?
Acredito. A uma procuradora-geral da República, que é a décima figura do Estado, exige-se um comportamento à altura de ser a décima figura do Estado. A procuradora não é uma deusa, mas não tem de ser um cristal nebuloso. Ela tem uma função que está atribuída pela Constituição. Cabe, dentro das funções que a Constituição lhe atribui, o comportamento que teve? Eu acho que não. Até porque não faz mal a ninguém reconhecer um erro. Ao contrário do que se possa imaginar, reconhecer um erro dá crédito a quem diz que errou. Aqui houve sempre uma imagem da arrogância e de sobranceria. Porquê? Por que é que é preciso fazer estas declarações desta forma? Porque tem de ser assim? Não se compreende. Nem sequer se compreende a ida a Belém, logo no dia 7, ou o comunicado sair quando estava com o Presidente da República. Tudo isto não encaixa.
É aquilo a que chama eufemisticamente coincidências.
Aprendi, na ciência, que quando aparecem ou que quando, aparentemente, há coincidências temos de ir à procura dos porquês. Se calhar é defeito do meu curso. Se há uma coincidência vamos perceber que condições se reuniram para que dois fenómenos aparecessem coincidentemente.
Para si está totalmente demonstrado que o pedido de demissão do primeiro-ministro nada tem a ver com a descoberta do dinheiro guardado pelo seu chefe de gabinete na residência oficial?
Não é para mim. A própria imprensa reporta que o aparecimento do dinheiro é posterior ao pedido de demissão do primeiro-ministro. Tive um cuidado muito grande com a linha temporal, que está toda documentada. A quantidade de informação era tão grande que era preciso clarificar. Daqui a 10 anos já ninguém se lembra, pelo que está escrito onde fui buscar a informação. A apresentação do pedido de demissão do primeiro-ministro é efetivamente anterior à descoberta, ou à comunicação da existência dos 75 mil euros, o que o próprio António Costa veio depois reforçar numa entrevista. E decorrente daquele parágrafo final do comunicado, como o ex-primeiro-ministro disse várias vezes também.
Descreve o passeio a pé de Marcelo Rebelo de Sousa, seguido por jornalistas pela zona de Belém, no final do dia 7, em que chega a fazer referências aos Távoras, e diz ser inaceitável e quase maquiavélica a forma como agiu. Os portugueses elegeram e reelegeram uma figura perversa para Chefe de Estado?
Lastimo dizer, mas não sei. Nunca esperei ver o Presidente da República fazer uma encenação como a que foi feita no dia 7. O papel do Presidente da República, ainda para mais numa crise, que já tinha começado, mas que se adivinhava ir ser muito mais violenta, e de consequências incríveis, não é lançar gasolina para cima de uma fogueira que já arde. É estar quieto. É estar calado. E gerir as coisas de uma forma que o país entenda.
Era um bom dia para recato?
Era, de facto, um bom dia para estar quieto.
Ao longo do livro critica várias vezes a forma como nos habituámos a uma certa descontração na forma como Marcelo Rebelo de Sousa comunica com os portugueses…
Uma declaração como a da dissolução da Assembleia pode ser feita no Banco Alimentar Contra a Fome, com a gente a ver os voluntários a arrumarem latas nos pacotes? É assim que se trata a formalidade, é assim que se trata o Estado de Direito? E depois vai à Ginjinha do Barreiro e, quando lhe perguntam o candidato favorito dele à liderança do PS, diz que era o Dr. António Costa. Estamos a brincar? Não sei se ele está a brincar, mas isto não é normal no Estado de Direito. Ou ele está a brincar com a gente, ou faz de propósito, ou não se lembra. Não sei o que se passa. Sinceramente, não sei.
Escreve que, ao fazer a comunicação do dia em que seria efetiva a demissão, sabendo que estaria a seguir com António Costa no lançamento de uma edição do Portugal Amordaçado, de Mário Soares, houve uma intenção de fazer uma humilhação pública ao primeiro-ministro. Acha que Costa o sentiu assim?
Não sei, porque não falei com António Costa, nem falei com o Presidente da República. Eu senti-me humilhada e senti que aquilo foi uma coisa absolutamente… Não se faz uma declaração dessas sabendo que à noite se vai estar com a pessoa que se acaba de demitir. Não se faz. Isto não é por acaso. Não pode ser por acaso. Eu não vou, evidentemente, dizer que o Presidente da República está maluco. Agora, não compreendo como é que isto pode ser inocente. Então, estou a trabalhar com uma pessoa, vamos estar à noite numa cerimónia pública e três horas antes digo que vou demiti-la e depois sento-me à noite com ela, como se nada tivesse acontecido?
Quase como se fosse um teste ao poder de encaixe dessa pessoa?
Mas estou a falar de um governante. Isto não é uma briga de vizinhos ou uma briga familiar. Isto é um país, caramba. Precisamos de olhar para isto como um país. Foram muitos anos a tentar combater uma ditadura que custou a vida a muita gente, que custou a cadeia a muitos mais, que custou sofrimento a um povo inteiro, para andarmos agora com coisas destas. Se o Presidente da República faz declarações destas na Ginjinha ou no Banco Alimentar, é o Estado de Direito que está em causa. É o país, é a nação.
Marcelo degradou a democracia?
Nestes comportamentos, sim. Acho que são degradantes para a democracia. E para o respeito e para a ética. Eu posso fazer uma declaração à porta da Ginjinha, não tem qualquer importância. Posso ir ver o Beco dos Távoras, que a televisão não vai atrás de mim. Eu não sou Presidente da República e não estou com o país numa polvorosa deste tamanho. Não fui eu que dissolvi a Assembleia da República.
Acredita que o Presidente da República teria optado pela dissolução mesmo que no Conselho de Estado, em vez de uma divisão, houvesse unanimidade contra a decisão?
Se quer que lhe diga, pelo andar da carruagem, como se costuma dizer numa linguagem mais vulgar, não sei. Agora, confesso que não estava a divisão que aconteceu. Estive sempre convencida de que o Conselho de Estado iria aprovar a dissolução da Assembleia da República. E acho que ele também. Se o Conselho de Estado estivesse por um voto, bastaria um voto. Mas, também me habituei a analisar as coisas como acontecem. E o que aconteceu foi que, realmente, cada parte foi para seu lado, rigorosamente, e ele teve de assumir aquilo que, do meu ponto de vista, queria fazer.
Como explica que não tenha havido maior reação dos partidos, sobretudo dos que estão à esquerda do PS?
Porque todos queriam aumentar o número de lugares no Parlamento.
Foi uma questão de puro taticismo?
É uma coisa que me revolta muito. E revolta-me desde o primeiro momento em que percebi que os partidos iam estar calados, não iam reagir, e não perceberam, com exceção do presidente da Assembleia da República, a agressão institucional que estava a ser feita. Não há nenhuma razão que justifique a dissolução da Assembleia da República. Nenhuma.
Compara o que sucedeu na Operação Influencer com outras intercessões no passado entre política, investigação criminal e justiça, nomeadamente a Casa Pia e o processo contra José Sócrates. Refere-se sobretudo às fugas de informação?
Não sou jurista, nem ando lá perto, mas há uma coisa que não consigo entender: por que temos no nosso ordenamento jurídico a figura do segredo de justiça, se é para violar todos os dias e quando convém? É melhor fazer como alguns países, que o aboliram do seu ordenamento jurídico. Dá jeito sair umas coisinhas a conta-gotas. Isto não é uma gestão jurídica, é uma gestão política. Só que implica julgamentos públicos. A justiça num Estado de Direito não pode ser isto. Ainda hoje me lembro do que me chocou ver a SIC transmitir em direto a prisão do antigo primeiro-ministro [José Sócrates] no aeroporto de Lisboa. Como foi possível? Como é que um processo se arrasta tantos anos? As pessoas ficam com este libelo em cima da cabeça durante este tempo todo. O segredo de justiça serve para assegurar a possibilidade da investigação, mas também para assegurar o bom nome das pessoas, que não deve ser posto em causa.
Parou de escrever a 20 de janeiro, deixando a nota de que o livro teria “um necessário período de amadurecimento e distanciação” antes de ser publicado. Na prática, em que é que esse intervalo se traduz?
Traduz-se de uma forma muito simples. Quando escrevi estava mesmo irritada, estava furiosa, e tive de o deixar repousar, ouvir marido, filhos e mais duas ou três pessoas, e depois voltar a ler com mais calma e tranquilidade. Não porque tenha alterado nada de substantivo, mas porque...
Mudou a adjetivação?
Sim, a adjetivação. A irritação teve tempo para esfriar um pouco. E o livro é mais objetivo.
Já depois daquilo que descreve, outra investigação do Ministério Público levou à detenção do presidente da Câmara do Funchal e a eleições antecipadas na Madeira. Esse caso, que incidiu em sociais-democratas, é comparável à Operação Influencer?
Não, não é comparável. Em primeiro lugar, porque o que aconteceu na Madeira são processos diferentes. O processo do presidente do Governo [Regional, Miguel Albuquerque] não tem nada a ver com os outros processos e a atitude dele também não teve nada a ver com a de António Costa. E a sociedade da Madeira é muito fechada. É uma sociedade em que toda a gente é primo, em que toda a gente se conhece e em que toda a gente fala. E a verdade é que há coisas que a gente não consegue explicar. Lembro-me de haver variadíssimas empresas da construção civil aqui há uns anos, mas foram saindo. Porquê? Porque os concursos eram sempre atribuídos aos mesmos. Vamos ver como os casos vão decorrer. Estranho que o presidente do Governo não tenha tido já a ética de dizer: “Sim senhor, eu vou-me embora e quero ser ouvido.”
Na prática, também na Madeira há acusações de que houve um Governo derrubado por uma operação do Ministério Público.
Claro que há. Mas passar a ideia de que o facto de um juiz não ter determinado a manutenção da prisão preventiva encerra o processo? Não é assim. O processo vai seguir. Aliás, se calhar, o processo vai começar. A decisão do juiz teve a ver com o autarca do Funchal [Pedro Calado, que renunciou ao mandato] e os empreiteiros. Não tem a ver com o presidente do Governo.
Termina 70 Dias à Margem da Democracia com a certeza de que seria previsível uma imensa instabilidade. Dito isto, seria capaz de imaginar que, com o novo quadro parlamentar, se assistiria a projetos de lei do PS serem aprovados graças aos votos do Chega, com o Governo da Aliança Democrática a falar em conluio entre os dois partidos?
O Governo da AD devia estar calado. Começava, por exemplo, por formar uma lista [de ministros] que a gente percebesse que não foi feita à última hora. É o Presidente da República quem diz e não eu, porque não fui eu que a recebi. Faria muito melhor em não dar o triste espetáculo que foi a eleição do presidente da Assembleia da República. Não estamos a falar da eleição de um gestor de condomínio. Estamos a falar da segunda figura de Estado. Aqueles chumbos sucessivos foram uma coisa inaudita e inimaginável. O Governo da AD, em vez de estar muito preocupado com o facto de, oportunisticamente, o partido de extrema-direita aprovar projetos do PS, devia estar, sobretudo, preocupado em saber como vai governar o país. É que ainda não vi nada. Vi mudar o símbolo, o que é uma coisa absolutamente caricata. Se a coisa prioritária e emblemática é mudar o símbolo, tenho a sensação de que estamos num retrocesso civilizacional preocupante.
Considera possível que o Presidente e até a procuradora-geral já estejam arrependidos?
Belém é lá adiante e a Procuradoria é mesmo aqui ao lado. Se eles quiserem responder, vão lá perguntar. Não sei se estão, mas acho que, se realmente estivessem sinceramente arrependidos, já teriam dado algum sinal.
E que sinal poderia ser esse?
Por exemplo, termos definitivamente encaminhado o processo de António Costa. Seis meses depois, alguém sabe alguma coisa? A começar pelo próprio, provavelmente. Havia problemas? Claro que havia, mas quero ver os problemas que vão começar. Quer dizer, já começaram. Se o Presidente da República e a procuradora querem resolver este assunto, em primeiro lugar, deem corda aos pés para fazer a Justiça funcionar. Não se pode criar esta situação e manter o ex-primeiro-ministro...
Em lume brando?
E depois ainda dizer: “O meu preferido era o António Costa”. Não estou a dizer que o Presidente da República está a gozar. Mas imita bem.
Escreveu que, em 50 anos, foi a primeira vez que atropelos legais e constitucionais, bem como derivas e interesses pessoais, abriram condições para um caminho que pode pôr em causa o regime democrático. Desde que escreveu estas linhas houve algum motivo para ficar menos preocupada?
Pelo contrário.