Enfermeiros querem receitar medicamentos e ordens dizem que tema não pode ser tabu
Podem os enfermeiros prescrever fármacos? Em Portugal não, o tema ainda é tabu, mas já há países, nomeadamente a vizinha Espanha, em que tal é possível em determinadas áreas. “E tem sido um sucesso”, diz ao DN quem batalha por esta competência. Há outros países em que esta prática é assumida desde há muito, como Suécia e Dinamarca, ou Reino Unido e Irlanda, Canadá e Estados Unidos da América, Austrália e Nova Zelândia ou África do Sul e Botsuana.
Manuel Lopes, enfermeiro de formação base, professor catedrático e diretor do curso de doutoramento em Ciências e Tecnologia da Saúde e do Bem-Estar, administrado em associação nas universidades Nova, em Lisboa, e de Évora, onde se trabalha a “transprofissionalidade”, diz mesmo que “o futuro vai ter de ser por este caminho”. “Não há volta a dar. Faz todo o sentido do ponto de vista da evolução da formação nos últimos trinta anos e dos cuidados ao doente. Cria uma relação muito próxima entre o prescritor e o consumidor, poupa dinheiro ao Estado e só tem vantagens para o doente do ponto de vista da eficácia farmacológica. Os estudos que existem demonstram enorme eficácia”, justifica.
As organizações internacionais que representam os enfermeiros, como a Federação Europeia das Associações de Enfermagem, há muito que vêm a defender a regulamentação desta competência, mas em Portugal “o tema ainda é tabu”, assume o bastonário da classe, Luís Filipe Barreira, que definiu o tema como uma das prioridades do seu mandato para o colocar na agenda política.
O bastonário dos Farmacêuticos, Helder Mota Filipe, que representa outra classe que poderia também assumir “intervenções farmacológicas” (prefere não lhe chamar “prescrição”, porque “levaria a uma discussão de conceitos”), concorda que “o tema é tabu, mas tem de deixar de o ser”, argumentando com o progresso.“Tudo evolui e cada vez mais temos de usar as competências de cada profissional e não funcionar com base nas intervenções específicas só porque há um título profissional”.
Do lado dos médicos, o bastonário Carlos Cortes defende que a prescrição farmacológica não é nesta altura um problema prioritário para discussão. “A prescrição está definida por lei e foi reforçada agora nos estatutos das ordens profissionais. Não é matéria que nos preocupe agora”, comenta ao DN. “A Ordem dos Médicos está concentrada nos problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não propriamente na discussão de questões de outros profissionais. O que temos de fazer nesta altura é refletir muito e concentrar-nos nas soluções que são importantes para o país, que é salvar o SNS, com melhores condições para os doentes e para os profissionais”.
Prescrição por enfermeiros em certas áreas está na lei, mas não tem regulamentação
Para o representante dos Enfermeiros o tema tem de começar a ser debatido. “Neste momento, estamos a fazer um levantamento dos países com projetos e onde esta prática está mais expandida, para os analisarmos e apresentarmos uma proposta concreta ao Ministério da Saúde”, avança ao DN. Luís Filipe Barreira confessa que o tema até já foi levado várias vezes às reuniões com a tutela, “mas sempre de forma informal, embora já tenhamos apresentado uma proposta concreta para a área da Saúde Materna e Obstétrica, com a criação dos Centros de Parto Normal, onde os enfermeiros especialistas desempenham estas competências, no dia-a-dia, mas que não estão regulamentadas”.
O bastonário acredita que um dia a competência da prescrição de medicamentos também será partilhada com a enfermagem, até porque os primeiros primeiros países que avançaram para a regulamentação tinham um sistema muito idêntico ao português, “uma forte liderança e uma organização de enfermagem bem articulada”. No nosso caso, destaca que esse encargo ficaria com “os enfermeiros especialistas, que têm uma formação excelente e competência para assumir o direito de prescrever”. Olhando para a estrutura dos cuidados no nosso país, “é o que faz todo o sentido em relação à prescrição farmacológica e à prescrição de ajudas técnicas”.
Aliás, fundamenta, “a prescrição por enfermeiros há muito tempo que está prevista no Direito Europeu, precisamente no âmbito das competências dos enfermeiros especialistas em Saúde Materna e Obstétrica, desde 2005, e foi transposta para o regime jurídico português, em 2009, consagrando a questão que os enfermeiros podem prescrever ou aconselhar exames considerados necessários ao diagnóstico precoce de uma gravidez de risco. Só que tal não é praticado, porque a lei não foi regulamentada”. Ou seja, “o próprio ministério nunca mostrou interesse em avançar e implementar a regulamentação”.
Quando questionado sobre se é por falta de vontade política ou porque tal é visto como uma transferência de competências da classe médica, Luís Filipe Barreira responde: “São as duas, mas o que pretendemos não é uma transferência de competências entre profissões, e sim a concretização, por regulamentação, de competências que os enfermeiros estão preparados para assumir”.
Quando abordamos também o facto de o conceito de prescrição estar associado a um diagnóstico e ao ato médico, o bastonário especifica: “Hoje em dia os enfermeiros assumem as situações de gestão da doença crónica de um idoso nos cuidados domiciliários, por exemplo. Assumem também consultas de enfermagem em diversas áreas, como a da Estomaterapia [acompanhamento de doentes no pré e pós-operatório], e seria mais vantajoso, até para o doente, que pudesse prescrever e concretizar o tratamento até ao fim, não necessitando da consulta de um outro profissional para ter uma receita com comparticipação, quer seja para a aquisição de sacos apósitos, pomadas ou até para uma garrafa de oxigénio”.
E continua: “Outro exemplo, é o tratamento das feridas. Tudo o que está relacionado com o tratamento das feridas não deixa de ser fármaco. É um tratamento autónomo a cargo da enfermagem, mas se algo falta o enfermeiro não pode prescrever tendo que encaminhar do doente para outro profissional”.
Resposta aos problemas da Saúde tem de ter dimensão “transprofissional”
O professor catedrático Manuel Lopes defende que Portugal não poderá ignorar por muito mais tempo esta questão, porque “mais do que nunca, qualquer problema de saúde, seja ele de que natureza for, é um problema complexo. E como é evidente não há respostas simples para problemas complexos. Portanto, qualquer pessoa que nos tente vender a ideia de que os problemas na saúde no nosso país se resolvem com mais médicos, está a ter uma visão simplista e não resolve em nada os problemas do SNS”.
Manuel Lopes, que em tempos foi mentor e coordenador da Reforma para os Cuidados Continuados, sublinha mesmo que “qualquer resposta terá de ter, obrigatoriamente, uma dimensão que chamo de interprofissionalidade e de transprofissionalidade, onde se inscreve, do ponto de vista conceptual, a questão da prescrição pela enfermagem ou por outra classe profissional da saúde”.
Na sua perspetiva, “os profissionais da saúde, de uma forma geral, e os enfermeiros muito particularmente, desenvolveram ao longo dos últimos 30 anos níveis de formação impensáveis, o que quer dizer que, neste momento, têm competências que não estão a ser aproveitadas pelo serviço público nem pelo serviço privado, o que também gera frustração, desinteresse e até o abandono do país. Depois vemos outros países, como o Reino Unido, virem buscá-los e aproveitá-los na totalidade”, comenta.
“E isto porquê?”, questiona o próprio. “Porque perceberam que há um conjunto de competências que claramente têm de ser repensadas, não em nome do princípio economicista ou das classes, mas em nome das respostas eficazes dos serviços e a bem do doente”.
No que toca a competências, defende ainda não reduzir “tal dimensão só à prescrição farmacológica”, já que considera haver “um conjunto vasto de competências onde podemos discutir os cuidados, nomeadamente no contexto dos processos de gestão da doença crónica”.
Ou seja, “um enfermeiro que seja gestor da doença crónica de um doente, ou de uma família, sabe melhor do que ninguém quais são as oscilações do dia-a-dia que o medicamento A ou B podem provocar no doente, podendo desde logo fazer ajustes na medicação em função da evolução da situação. Por exemplo, é isso que acontece no Reino Unido com os enfermeiros comunitários que são prescritores e é um sucesso. De acordo com um conjunto de parâmetros farmacológicos, estes enfermeiros ajustam a prescrição em função das necessidades do doente, evitando que este tenha de se deslocar para obter uma receita e evitando mais uma consulta e a ocupação de tempo de um outro profissional”, explica.
Por isso, o diretor do curso de doutoramento de Ciências e Tecnologia da Saúde e Bem Estar - que é frequentado por médicos, enfermeiros, nutricionistas, farmacêuticos, fisiatras, integrando 45 alunos - diz que esta dimensão “traz um conjunto enorme de benefícios para todos os intervenientes”. Até porque, quanto maior é a distância entre o prescritor e o consumidor, maior é o risco de a medicação não ser seguida: “Se houver um esforço para regular a prescrição a quem presta o cuidado mais próximo, está provado que a probabilidade de a medicação ser seguida é muito maior”.
Manuel Lopes reforça que “o tema só é tabu nos países da Europa do Sul”. “E mais pelas difíceis relações interprofissionais do que por outra razão, porque sinceramente não vejo desvantagens”, acrescenta, questionando: “Qual a razão para não existir um sistema protocolado em que o enfermeiro pode olhar para a medicação ou para exames de diagnóstico e tomar decisões sobre um doente que acompanha? Caso tenha dúvidas consultará outro profissional, como é evidente. Mas a decisão estaria parametrizada”.
Este é o caminho que países como a Suécia, o Reino Unido ou a Espanha já estão a seguir e Manuel Lopes acredita que é onde nos irá levar o avanço dos cuidados em saúde. “Os cuidados vão ter de englobar todos os profissionais, além dos médicos. É o futuro. E cada vez mais as outras profissões vão ter de lutar pela sua autonomia de intervenção, não falo só de enfermeiros, mas também de farmacêuticos ou dos fisioterapeutas. Se não o fizermos será um erro crasso, estaremos a cometer uma iniquidade enorme, porque o que o doente tem de encontrar nos serviços de saúde é a resposta certa no momento certo às suas necessidades”.
Prescrição é excessivo, farmacêuticos preferem falar em intervenção
O bastonário dos farmacêuticos, Helder Mota Filipe, defende ao DN que falar-se em “prescrição é excessivo”, porque, na sua opinião, “esta é a sequência de um diagnóstico de médico, por isso prefiro falar de intervenção”. E a verdade é que os “farmacêuticos já têm alguma capacidade de intervenção num conjunto de situações farmacológicas, nomeadamente na listagem de medicamentos que não estão sujeitos a receita médica. A dispensa é da responsabilidade do farmacêutico que está obrigado a seguir um protocolo, mas não chamaria a isto prescrição, porque é uma comunicação entre o médico e o farmacêutico”.
Helder Mota Filipe dá como exemplo “a dispensa de medicamentos sem receita médica, no qual considera que não é pedido ao farmacêutico que assuma o papel de prescritor, mas, na verdade, o farmacêutico também só dispensa o medicamento ao doente mediante protocolos terapêuticos” - ou seja seguindo regras de tratamento.
Mas este papel pode ser reforçado ou alargado, precisamente porque “em saúde, as intervenções são cada vez mais protocoladas”. "Cada um não faz como quer, mas faz de acordo com a melhor prática. O que acontece muitas vezes é que o profissional não pode levar até ao fim esta intervenção por razões regulamentares, que obrigam à intervenção de outro profissional, neste caso dos médicos”. Ora isto, defende, "não é bom para o sistema nem para o doente".
O bastonário considera que Portugal “precisa, de forma criteriosa, revisitar estas práticas e verificar em que situações é que um profissional da saúde não necessita de outro profissional para poder levar um protocolo de tratamento até ao fim”, sublinhando que neste caso concreto não está só a falar de farmacêuticos. “O que é preciso é garantir ao doente a melhor prática, aquela que traduz melhores resultados. É preciso que nos foquemos mais no doente e nos ganhos para o sistema e menos nos profissionais”.
A prescrição ou a intervenção farmacológica por parte de outros profissionais que não médicos começa a ser falada em Portugal, ainda “a medo” e com “preconceito”, porque quer se queira quer não “é preciso uma mudança das mentalidades”, mas de uma vez por todas “o tema tem de deixar de ser tabu, porque a medicina e os cuidados também evoluem e cada vez mais as competências de cada classe profissional têm de ser partilhadas”.
“Temos de discutir em cada momento quem tem a competência adequada para exercer determinado tipo de intervenção em vez de continuarmos a dividi-las por classe profissional. A bem do doente é preciso que esta discussão se faça de uma forma desapaixonada e tecnicamente séria”, defende o farmacêutico.