Juízes todos queimadinhos
Já tínhamos visto juízes a citar textos atribuídos a divindades, como a Bíblia e o Alcorão, e a incluir nas decisões considerações insultuosas e cruéis sobre vítimas enquanto desculpabilizavam os condenados.
Já tínhamos reparado em sentenças e acórdãos nas quais magistrados decidem ignorar as leis de que não gostam - ou, por não fazerem parte da sua mundividência, não percebem -, fazem de conta de que não existem convenções internacionais vinculativas, exibem os seus preconceitos sem qualquer rebuço e decidem fazer graçolas de gosto duvidoso - sucede muito por exemplo nos processos de crimes sexuais.
Lemos-lhes todos os dias erros de ortografia e sintaxe, parágrafos inteiros copiados de uns para outros, argumentações sem a menor lógica, contradições insanáveis, demonstração de absoluta falta de experiência de vida ou total ignorância sobre as matérias em decisão; contabilizamos todos os anos processos que, sem justificação plausível, demoram décadas a decidir.
Também anotamos não raro tratos de polé dados a testemunhas, arguidos e advogados por parte de magistrados que veem na sala de audiência uma catarse grátis das suas irritações com a vida ou, simplesmente, um lugar no qual podem gozar de um exercício irrestrito de poder.
E tudo isto sem, na maioria dos casos, qualquer consequência para quem tem como função ditar que consequências se aplicam às faltas, erros e crimes dos outros.
O que ainda não tínhamos visto era, nas palavras de um requerimento enviado ao Tribunal da Relação de Lisboa, um acórdão que cita “artigos legais que não existem nem sequer alguma vez existiram”, e se louva em “jurisprudência que não existe”.
Em causa está, como foi noticiado este domingo pelo Correio da Manhã, uma decisão da terceira secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 23 de outubro, relatada pelo desembargador Alfredo Costa e co-assinada pelas desembargadoras Hermengarda do Valle-Frias e Margarida Ramos de Almeida.
No acórdão que desde logo, num despacho de recusa de acesso do CM, o relator quis manter reservado, classificando-o como “confidencial” (sem que se vislumbre algum motivo legal para tal classificação), os advogados de alguns dos arguidos no processo identificaram vários erros bastante assombrosos. Trata-se quer de referências equivocadas a artigos do Código Penal (indicando como dizendo respeito a um determinado crime um número de artigo trocado), quer transcrições incorretas de tipificações criminais, quer referências de acórdãos, por exemplo do Supremo Tribunal, que, garantem os causídicos depois de muito os procurarem, “não existem”. Acresce ainda o facto a decisão mandar alguns dos arguidos para julgamento por um crime de que não vinham nem podiam vir acusados, por só se aplicar a titulares de cargos políticos - o que não era o caso.
Face à extensão do desastre, os defensores consideram estar ante um “gigantesco e flagrante lapso, porventura de natureza informática e similar”, notando haver “parecenças várias, ao olho de um observador médio, com um texto gerado por inteligência artificial ou alguma outra ferramenta (ou intromissão, abuso, viciação, o que seja) de natureza informática ou digital”, e apenas verem como possibilidade explicativa “uma eventual geração automática, computorizada e artificial”. Pelo que, concluem, se está perante “um acórdão inexistente” - e portanto nulo.
Em reação, conhecida esta segunda-feira, o relator terá afirmado, segundo a presidente do Tribunal da Relação, que a possibilidade de ter usado alguma ferramenta de Inteligência Artificial (IA) para produzir o documento é “completamente descabida”. Alfredo Costa não terá porém adiantado qualquer justificação para os dislates detetados, alegando “uma impossibilidade de natureza pessoal” de um dos três magistrados envolvidos para justificar o facto de ainda não ter havido resposta aos requerimentos de nulidade do acórdão apresentados pelos advogados.
Segundo fez saber o Conselho Superior de Magistratura, que superintende a judicatura e é presidido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ainda não foi ali apresentada qualquer queixa relativa ao caso. Mas este órgão frisa que “os juízes gozam de independência e autonomia no exercício das suas funções jurisdicionais, incluindo na seleção das fontes que utilizam para se documentar e fundamentar as suas decisões” - as quais, sublinha, “são sindicáveis” (ou seja, recorríveis). Informa também que nunca deu instruções gerais sobre o uso de ferramentas de IA.
É uma opção que contrasta com o que se passa noutras jurisdições, atentas aos riscos da utilização irresponsável e irrestrita da AI. Em dezembro de 2023, o Tribunal Federal do Canadá, por exemplo, exarou um conjunto de normas dizendo respeito à utilização dessa ferramenta; foram criadas novas obrigações, incluindo a de que os signatários de peças submetidas aos tribunais incluam um certificado de que estão seguros da autenticidade de todas as citações legais listadas nas mesmas.
Têm, de resto, sido identificados, por exemplo nos EUA, recursos e petições “alucinados”, total ou parcialmente gerados por IA, com referências jurisprudenciais e legais falsas. E no Brasil foi em novembro de 2023 noticiado que um juiz federal ia ser investigado por ter alegadamente assinado uma sentença feita a partir do ChatGPT, na qual, para basear a decisão, era citada jurisprudência inexistente do Superior Tribunal de Justiça. O magistrado em causa ter-se-á escusado com excesso de trabalho, afirmando que usara o ChatGPT por “mero equívoco”.
Aparentemente, o perigo, identificado numa decisão de 2023 de um tribunal de Nova Iorque ( Mata v. Avianca Inc.), de a IA gerar decisões judiciais “deepfake”, com consequências aterradoras e de total descredibilização do sistema de justiça, não aflige os tribunais portugueses nem o CSM. Este estará, de acordo com noticiário recente, mais preocupado em facultar aos magistrados ocasiões de relaxamento para combater o stress e o burnout, incluindo massagens, programas de meditação e ioga grátis. Que, atendendo ao conteúdo do acórdão referido, vêm tarde: haverá magistrados já todos queimadinhos. Ou então não: conseguiram, via meditação, sintonizar outras dimensões de tempo e espaço, quiçá sistemas judiciais de outros planetas