"Excesso de trabalho nas enfermarias e nas Urgências”, no caso dos internos da especialidade de Medicina Interna, e “muitas horas de trabalho nas enfermarias, muitas vezes sem tempo para comer”, no caso dos alunos do 6.º ano que estão a estagiar, são queixas recorrentes por parte de quem escolheu esta área no Hospital de Santa Maria. Os relatos de algumas situações chegaram ao DN por quem trabalha na instituição, mas o delegado sindical da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Gustavo Jesus, no que respeita aos internos, diz que a realidade “é conhecida nos serviços, pelas chefias e pelas várias administrações que por ali têm passado”..No entanto, argumenta: “Focarmos esta questão só nos Serviços de Medicina Interna do Hospital Santa Maria é estarmos a desfocar-nos do problema e do que é importante”, porque “esta realidade é sistémica no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Existe em muitos outros serviços e em muitos outros hospitais” e “tem de ser resolvida”..Para as fontes do DN, a situação “é grave e está a colocar em causa a formação dos futuros especialistas e médicos”. E o relato que fazem é que “os alunos do 6.º ano, por exemplo, estão a ser escravizados. Estão lá das 8:00 às 19:00, muitas vezes, sem conseguirem comer, e outras ficando desamparados nas enfermarias”, reforçando: “Nunca imaginámos que a falta de médicos estivesse a ter tantas repercussões nos internos e nos alunos, porque isto não é formação.”.Ao DN, o conselho de administração da Unidade Local de Saúde de Santa Maria (ULSSM) diz “não ter queixas e nem exposições de internos ou de alunos do 6.º Ano da FMUL”, referindo até que “há reuniões semanais entre o conselho de administração (CA) da ULSSM e a direção da FMUL, nunca foi reportada nenhuma situação como a que refere”. .Há hospitais em que mais de 80% das vagas ficam por preencher.Confrontado com a questão de Medicina Interna em Santa Maria, o bastonário dos médicos afirma estar “seriamente preocupado com o que se está a passar na especialidade a nível geral, porque não é só a Obstetrícia que está com problemas nos recursos humanos. A Medicina Interna é uma especialidade transversal a todas as outras especialidades médicas e se continuar esta trajetória, cada vez menos internos a escolherem-na, perdemos a capacidade de formar e de captar internistas e é o colapso dos hospitais e do SNS”..Sem querer comentar o caso específico de Santa Maria, por não ter conhecimento do que se passa, Carlos Cortes explica que o problema da Medicina Interna é muito mais abrangente. “Já não é a escolha da maior parte dos internos, como acontecia antigamente. Nos últimos anos, têm sobrado muitas vagas no concurso para a especialidade. Há hospitais em que a percentagem de vagas por preencher atinge os 80% ou mais, o que começa a ser muito complicado.”.No caso do Hospital Santa Maria, e de acordo com o mapa de vagas para a especialidade em 2024, foram lançadas 16 vagas e só três foram preenchidas. “O que quer dizer que houve 81,5% de vagas sobrantes, mas Santa Maria não é caso único. Há outros hospitais na mesma situação e a Ordem tem vindo a fazer esse levantamento. É preciso uma revitalização da especialidade”, argumenta Carlos Cortes. .A preocupação com esta especialidade agrava-se à medida que o tempo passa, precisamente porque “são os internistas que estão a assegurar funções em muitas áreas hospitalares, tanto podem estar nas enfermarias de Medicina Interna, nas Urgências, onde é uma especialidade basilar, como nas Unidades de Cuidados Intermédios ou Intensivos, como nas comissões de controlo de infeção”, reforça..Ou seja, “o problema é que todas as falhas de recursos nos hospitais são preenchidas por médicos de Medina Interna e é mais fácil obrigar os médicos internos a tapar os buracos dos recursos humanos do que revalorizar a especialidade ou contratar”, sublinha Carlos Cortes..Por outro lado, recorda o bastonário, “no momento atual, e com a escassez de médicos, uma boa parte dos especialistas ocupa o seu tempo com as Urgências, mas há tarefas que ali desenvolvem e que não deviam, porque nada têm a ver com a sua especialidade. Não estou a defender que sejam retirados da Urgência, mas, sim, que não deviam estar sujeitos à pressão que têm agora.”.O delegado sindical da Fnam no Hospital Santa Maria, também ele médico de Medicina Interna, agora a trabalhar nos Cuidados Intensivos, insiste na ideia de que “o problema da Medicina Interna é organizacional. É um problema sistémico devido à escassez de recursos humanos”..Mas não só. Esta situação também se deve ao facto de no “SNS existir uma cultura baseada em horas extraordinárias. Como digo, não é só em Santa Maria, mas em muitos outros hospitais”. E, hoje, reforça, “a geração que está a fazer o internato está cada vez mais consciente do que quer, e nas suas escolhas pesa muito o facto de poderem trabalhar num ambiente em que a cultura é de permitir conciliar a vida laboral e a vida pessoal ou não”. .“Médicos querem trabalhar com qualidade e receber condignamente”.Gustavo Jesus explica que Santa Maria tem “uma cultura baseada em horas extraordinárias sucessivas em favor da instituição, em vez de privilegiar horários que conciliem a vida profissional e a pessoal”, reconhecendo que “os internos estão a ser sistematicamente utilizados para dar resposta ao que o hospital não consegue dar de oura forma”..Mas, ao mesmo tempo, destaca que “os formadores, médicos especialistas, também estão exaustos. Trabalham no mesmo processo. Em vez de fazerem as 40 horas semanais fazem 70, 80 ou 100 horas. E obviamente que a situação é um ciclo vicioso que culmina numa formação mais precária”..Aliás, o médico defende até que não são as medidas já tomadas pela tutela que virão resolver esta cultura e a situação que se vive nos hospitais do SNS. “Medidas que apostem cada vez mais nas horas extras e cada vez menos na valorização-base, na formação, na investigação ou no tempo de descanso vão ser cada vez menos atrativas para uma geração que quer conciliar a carreira com a vida familiar”..Para Gustavo Jesus as vagas para o internato de Medicina Interna em Santa Maria e noutros hospitais ficam por preencher precisamente porque “quem está em situação de escolher uma vaga para internato está ciente da prática em cada hospital, sabendo de antemão que se for para um determinado serviço poderá conciliar a sua vida profissional com a pessoal, e que se for para outro, não”. “Nos últimos três anos, mais de mais de metade das vagas em Santa Maria ficaram em aberto. Entre escolher Medicina Interna em Santa Maria ou não escolher qualquer especialidade, há centenas que optam por não escolher nenhuma especialidade”..Como especialista em Medicina Interna e como orientador de internos, Gustavo Jesus alerta para a questão e pede soluções à tutela e a quem gere hospitais, sublinhando: “A Medicina Interna é uma especialidade central num hospital e quanto menos pessoas a escolherem menos profissionais teremos em formação. E os que já lá estão ficarão cada vez mais sobrecarregados”..Só que depois, há ainda outra situação. “Os internos acabam a especialidade e as próprias unidades têm dificuldades em retê-los”, reforçando que “os médicos não querem fazer 80 ou 90 horas por semana, querem trabalhar com qualidade e ganhar condignamente.”.Ordem cria grupo para analisar dificuldades na Medicina Interna.A Ordem dos Médicos criou um grupo de trabalho, que reúne elementos do Colégio da Especialidade e da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna que “estão a fazer um levantamento das dificuldades nesta especialidade em todos os hospitais do país e a tentar encontrar soluções para as resolver”, refere Carlos Cortes..“Do ponto de vista da Ordem, a Medicina Interna tem de adquirir uma posição ainda mais central naquilo que é a gestão de doentes dentro hospitais em qualquer reforma profunda no SNS. Daí a importância da formação e da sua qualidade”, argumenta ainda..Para o representante dos médicos “a crise na Medicina Interna não é um problema exclusivo desta ou daquela unidade. É transversal no país e tem sido desvalorizada, e isso pode ter um impacto muito negativo na especialidade e no SNS”..O grupo de trabalho da Ordem já produziu um documento que “está a ser discutido internamente e com os médicos de Medicina Interna para, depois, ser apresentado à ministra da Saúde”, a quem estas preocupações já foram transmitidas "logo na nossa primeira reunião". .Hospital diz que não tem queixas nem exposições sobre estas situações.Ao DN, o CA da ULSSM garante que as situações relatadas “não correspondem à verdade”, dizendo que “solicitámos informação à direção o Serviço de Medicina Interna, à Direção do Internato Médico (DIM) e à direção do Serviço de Recursos Humanos (SRH) e nada existe nesse sentido.. Ou seja, não temos queixas, nem exposições e nem propostas de Internos ou Alunos do 6.º Ano da FMUL, sendo que neste caso a informação deve ser solicitada a esta instituição. Aditamos no entanto que há reuniões semanais entre o Conselho de Administração (CA) da ULSSM e a Direção da FMUL, nunca tendo sido reportado nenhuma situação como a que refere”..Sobre o facto de os internos se queixarem que têm de “tapar buracos" nas escalas dos especialistas, levando-os à exaustão e à falta de tempo para estudar, o hospital diz: “Não corresponde à verdade”, desde logo porque “um Interno não substituiu um especialista”, reforçando que “o CA tem mantido reuniões periódicas com a DIM e com a Comissão de Internos com vista à melhor adequação de tempos de trabalho vs. tempo para estudo ou descanso, tendo inclusive muitos horários de Internos sido aprovados para o período 8H00-14H00 e não existindo registo de nenhum indeferimento a nenhum dos atuais 52 Internos do Serviço”..A administração destaca que “todos os especialistas fazem urgência interna e externa, mesmo com mais de 50 ou 55 anos (estes voluntariamente), dando um bom exemplo de dedicação e disponibilidade à prestação de cuidados e atenção ao doente e que em 2023 só um especialista e um Interno entregaram escusa de fazer mais de 150 horas de horas extraordinárias”..Questionado sobre como classifica a situação de excesso de horas de trabalho, o CA responde que “tem noção que um hospital universitário, como Santa Maria e Pulido Valente, têm responsabilidades incontornavelmente maiores que outros, desde logo pela atividade diária de 24 horas durante sete dias”, mas também por ser um hospital de “fim de linha e por ter doentes com patologias complexas”..Por outro lado, específica ainda que “Medicina Interna tem 1/3 da lotação dos Internamentos da área de cuidados hospitalares da ULSSM, com taxas de ocupação superiores a 80%, o que adita uma atividade intensa diariamente”, considerando assim que “a formação de um jovem médico é a melhor que podia ter no SNS, só igualável num dos outros quatro grandes hospitais universitários. Reiteramos que estamos atentos a todos os Internos à nossa responsabilidade, neste período tão importante da sua formação como Médicos e também temos recebido visitas do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos sem reparos desta sobre o que ora nos é questionado”..Em relação à elevada percentagem de vagas que têm ficado por preencher no internato de Medicina Interna, o CA justifica com o concurso a decorrer, “abrimos 11 vagas e temos 9 candidatos, que irão em breve assinar contrato” - no concurso para 2024 mais de 80% das vagas ficaram vazias. E argumenta que foi feito um “reforço desde o inicio do ano no serviço com quatro novos médicos, até finais de agosto teremos 13 novos especialistas”..O hospital explica que “o Serviço de Medicina Interna tem à data 66 especialistas e estimamos contratar, de acordo com o estipulado na estratégia de capital humano (médico), mais 10 especialistas nos próximos sete meses, o que permitirá a resposta adequada à previsão de atividade 2024/2025”..A Administração diz que um dos seus objetivos é continuar a formação de excelência dos médicos que ali são formados, e sobre as queixas dos alunos do 6.º ano diz que “os planos de formação têm autonomia e são construídos e geridos pelas direções envolvidas, sendo que, repetimos, não temos nenhuma queixa, exposição ou proposta sobre este assunto”.