Como a CIA ajuda secretamente a Ucrânia a combater Putin
Tyler Hicks/The New York Times

Como a CIA ajuda secretamente a Ucrânia a combater Putin

Atualmente, no início do terceiro ano de um conflito que custou centenas de milhares de vidas, a parceria de partilha de informação entre os Estados Unidos e a Ucrânia é fundamental para que a Ucrânia se consiga defender.
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Localizada numa floresta densa, a base militar ucraniana aparenta estar abandonada e destruída, o seu posto de comando é uma carcaça calcinada, vítima de um ataque de mísseis russos no início da guerra.

Mas isso é à superfície.

Não muito longe, uma passagem discreta desce até chegar a um bunker subterrâneo onde equipas de soldados ucranianos rastreiam satélites de espionagem da Rússia e intercetam conversas entre comandantes russos. Num ecrã, uma linha vermelha seguia a rota de um drone explosivo que atravessava as defesas aéreas russas desde um ponto no centro da Ucrânia até ao alvo na cidade russa de Rostov.

O bunker subterrâneo, construído para substituir o posto de comando destruído nos meses após a invasão russa, é um centro de operações secreto do exército da Ucrânia.

Há mais um segredo: a base é quase inteiramente financiada, e parcialmente equipada, pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA). 

“Cento e dez por cento” afirmou o general Serhii Dvoretskiy, um dos principais comandantes do serviço de informações, durante uma entrevista na base.

Atualmente, no início do terceiro ano de uma guerra que custou centenas de milhares de vidas, a parceria de partilha de informação entre os Estados Unidos e a Ucrânia é fundamental para que a Ucrânia se consiga defender. A CIA e outros serviços de informações dos Estados Unidos providenciam informações sobre mísseis direcionados, rastreiam as movimentações das tropas russas e ajudam no apoio das redes de espionagem.

A parceria não é uma criação da guerra, e a Ucrânia não é o único beneficiário.

Enraizou-se há uma década, ganhando forma pelos passos irregulares de três presidentes norte-americanos muito distintos, impulsionada por indivíduos proeminentes que correram vários riscos ousados. Transformou a Ucrânia, cujos serviços de informações se julgavam estar há muito tempo completamente comprometidos pela Rússia, num dos principais parceiros de informação de Washington contra o Kremlin.

O posto de interceção da floresta ucraniana integra uma rede de bases de espionagem apoiada pela CIA construída nos últimos oito anos, que inclui 12 localizações secretas ao longo da fronteira russa. Antes da guerra, os ucranianos demonstraram o seu valor aos norte-americanos ao reunir interceções que ajudaram a provar o envolvimento da Rússia no abate de um avião a jato comercial, o voo MH17 da Malaysia Airlines, em 2014. Os ucranianos também auxiliaram os norte-americanos na perseguição dos agentes russos que interferiram na eleição presidencial de 2016 nos Estados Unidos.

Em 2016, a CIA começou a treinar uma força de comando ucraniana de elite, conhecida como Unidade 2245, que capturava drones e equipamentos de comunicação russos, para que os técnicos da CIA pudessem reverter a engenharia e decifrar os sistemas de encriptação de Moscovo. (Um dos oficiais da unidade era Kyrylo Budanov, o atual general que lidera os serviços militares de informações da Ucrânia.)

A CIA também auxiliou o treino de uma nova geração de espiões ucranianos que operavam dentro da Rússia, por toda a Europa, em Cuba e noutros locais onde se verificasse uma presença russa significativa.

A relação estava tão enraizada, que os agentes da CIA permaneceram numa localização remota no oeste da Ucrânia quando a administração Biden evacuou os funcionários dos Estados Unidos nas semanas que antecederam a invasão russa, em fevereiro de 2022. Durante a invasão, os agentes transmitiram informações cruciais, incluindo os locais que a Rússia estaria a planear atacar e os sistemas de armas que usariam.

“Sem eles, não teríamos conseguido resistir aos russos, nem vencê-los”, disse Ivan Bakanov, então chefe dos serviços de informações domésticos, o Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU).

Durante uma década, os detalhes desta parceria de partilha de informações, sendo que a maioria está a ser divulgada pela primeira vez pelo The New York Times, têm sido um segredo cuidadosamente guardado.

Em mais de 200 entrevistas, agentes atuais e anteriores na Ucrânia, nos Estados Unidos e na Europa descreveram uma parceria que esteve prestes a falhar devido a desconfiança mútua, antes de se expandir progressivamente, transformando a Ucrânia num centro de recolha de informações que intercetava mais comunicações russas do que o posto da CIA em Kiev, na Ucrânia, conseguia inicialmente gerir. Vários oficiais ofereceram declarações sob condição de anonimato para discutir informações e assuntos diplomáticos sensíveis.

Atualmente, estas redes de informações são especialmente importantes, uma vez que a Rússia adotou uma atitude ofensiva, e a Ucrânia está mais dependente da sabotagem e dos ataques de mísseis de longo-alcance que requerem a presença de espiões para lá das linhas inimigas. Correm cada vez mais riscos: se os republicanos no Congresso dos Estados Unidos cessarem o financiamento militar de Kiev, a CIA poderá ter de recuar.

Numa tentativa de tranquilizar os líderes ucranianos, William Burns, diretor da CIA, visitou secretamente a Ucrânia há dias, sendo a sua décima visita desde a invasão.

Desde os primeiros momentos, um adversário em comum - o presidente Vladimir Putin da Rússia - uniu a CIA e os seus parceiros ucranianos. Obcecado pela “perda” da Ucrânia para o Ocidente, Putin interferia regularmente no sistema político ucraniano, escolhendo a dedo líderes que acreditava serem capazes de manter a Ucrânia na órbita da Rússia. Contudo, o tiro saía pela culatra, empurrando manifestantes para as ruas.

Há muito que Putin acusa os serviços de informações ocidentais de manipular Kiev e de semear opiniões contra a Rússia na Ucrânia.

Em finais de 2021, segundo um agente veterano europeu, Putin estaria a considerar lançar a sua primeira invasão de grande escala quando se encontrou com o chefe de um dos principais serviços secretos da Rússia, que relatou que a CIA, juntamente com o MI6 da Grã-Bretanha, estava a controlar a Ucrânia e a transformá-la numa testa de ponte (posição avançada) para operações contra Moscovo.

Contudo, a investigação do The New York Times averiguou que Putin e os seus conselheiros interpretaram mal uma dinâmica crítica. A CIA não forçou a sua entrada na Ucrânia. Os agentes norte-americanos hesitavam em envolver-se por completo, com receio de que os agentes ucranianos não fossem de confiança e preocupados com possíveis provocações ao Kremlin.

Todavia, um grupo limitado de agentes de informações ucranianos procuraram relacionar-se assiduamente com a CIA e, aos poucos, tornaram-se vitais para os norte-americanos. Em 2015, o general Valeriy Kondratiuk, então chefe dos serviços de informações militares da Ucrânia, reuniu-se com o chefe de posto adjunto da CIA e entregou um molho de documentos confidenciais sem aviso prévio.

Esse primeiro lote continha segredos acerca da frota norte da marinha russa, incluindo informações detalhadas sobre os modelos mais atuais dos submarinos nucleares da Rússia. Dentro de pouco tempo, equipas de agentes da CIA saíam frequentemente do seu gabinete com mochilas cheias de documentos. “Compreendemos que precisávamos de criar condições de confiança”, afirmou Kondratiuk.

Com o aprofundamento da parceria a partir de 2016, os ucranianos impacientaram-se com a cautela de Washington, que consideravam desnecessária, e começaram a simular assassinatos e outras operações letais, violando os termos com os quais a Casa Branca pensava que os ucranianos teriam concordado. Furiosos, os agentes em Washington ameaçaram interromper o apoio, mas nunca o fizeram.

“As relações apenas se fortaleciam porque ambos os lados reconheciam o seu valor, e a Embaixada dos Estados Unidos em Kiev - o nosso posto lá, a operação fora da Ucrânia - tornou-se na melhor fonte de informações, sinais e tudo o resto, sobre a Rússia”, afirmou um antigo agente veterano dos Estados Unidos. “Não lhe queríamos pôr fim.”

Esta é a história oculta sobre como tudo aconteceu.

Um início cauteloso

A parceria da CIA na Ucrânia remonta até duas chamadas telefónicas realizadas na noite de 24 de fevereiro de 2014, oito anos antes do dia em que a Rússia lançou a sua invasão completa.

Milhões de ucranianos tinham acabado de derrubar o governo pró-Kremlin e o presidente, Viktor Yanukovich, tinha fugido para a Rússia com os seus chefes de espionagem. Entre o tumulto, um frágil governo pró-Ocidente subiu rapidamente ao poder.

O novo chefe de espionagem do governo, Valentyn Nalyvaichenko, chegou à sede dos serviços de informações domésticos e deparou-se com uma pilha de documentos fumegantes no pátio. No interior, muitos dos computadores tinham sido apagados e infetados com software russo malicioso. “Estava vazio. Sem luzes. Sem liderança. Não estava lá ninguém”, disse Nalyvaichenko em entrevista.

Entrou num gabinete e contactou o chefe de posto da CIA e o chefe local do MI6. Era quase meia-noite, mas fez com que se deslocassem ao edifício, pediu ajuda para reconstruir a agência de raiz, e propôs uma parceria a três. “Foi assim que tudo começou”, contou Nalyvaichenko.

Rapidamente, a situação tornou-se mais perigosa. Putin apoderou-se da Crimeia. Os seus agentes fomentaram rebeliões separatistas que se transformariam numa guerra a leste. A Ucrânia preparava-se para a guerra, e Nalyvaichenko pediu à CIA imagens aéreas e outras informações que ajudassem na defesa do seu território.

Com o aumento da violência, um avião sem marca do governo dos Estados Unidos que transportava John Brennan, o então diretor da CIA, aterrou em Kiev. Brennan disse a Nalyvaichenko que a CIA tinha interesse em formar uma relação, mas apenas a um ritmo com que estivesse confortável, segundo agentes norte-americanos e ucranianos.

Para a CIA, a questão seria quanto tempo durariam Nalyvaichenko e o governo pró-Ocidente. A CIA já se tinha queimado na Ucrânia.

Após o desmantelamento da União Soviética em 1991, a Ucrânia tornou-se independente e dividiu-se entre forças políticas opostas: os que queriam permanecer perto de Moscovo e os que se queriam aliar ao Ocidente. Durante um período anterior como chefe de espionagem, Nalyvaichenko implementou uma parceria semelhante com a CIA, que se dissolveu quando o país se voltou para a Rússia.

Brennan explicou que, para desbloquear a assistência da CIA, os ucranianos tinham de demonstrar que eram capazes de fornecer informações significativas aos norte-americanos. Precisavam ainda de expulsar os espiões russos; os serviços secretos domésticos, a SBU, estava repleta deles. (Prova disso é o facto de os russos terem rapidamente tomado conhecimento da visita secreta de Brennan. Os meios de propaganda do Kremlin publicaram uma imagem alterada do diretor da CIA a utilizar uma peruca e maquilhagem de palhaço.)

Brennan regressou a Washington, onde conselheiros do então presidente Barack Obama estavam seriamente preocupados com a provocação a Moscovo. A Casa Branca implementou regras confidenciais que enfureceram os ucranianos e que alguns integrantes da CIA viam como algemas. As regras proibiam os serviços de informações de oferecer qualquer apoio à Ucrânia que pudesse ser “razoavelmente considerado” como o causador de consequências letais.

Resultou num delicado ato de equilíbrio. A CIA devia fortalecer os serviços de informações ucranianos sem provocar os russos. Os limites nunca foram exatamente claros, impondo uma tensão persistente na parceria.

Em Kiev, Nalyvaichenko escolheu um adjunto de longa data, Kondratiuk, para assumir o cargo de chefe de contraespionagem, e criaram uma nova unidade paramilitar que foi destacada para trás das linhas inimigas com o fim de conduzir operações e recolher informações que a CIA ou o MI6 não partilhassem.

Conhecida como a Quinta Direção, esta unidade era integrada por agentes nascidos após a conquista da independência da Ucrânia. “Não tinham qualquer ligação à Rússia”, disse Kondratiuk. “Nem sequer sabiam o que era a União Soviética.”

Nesse verão, o voo MH17 da Malaysia Airlines, que voava de Amsterdão para Kuala Lumpur, na Malásia, explodiu no ar e despenhou-se no leste da Ucrânia, matando cerca de 300 passageiros e membros da tripulação. Poucas horas depois do acidente, a Quinta Direção apresentou interceções telefónicas e outras informações que atribuíam a culpa a separatistas apoiados pela Rússia.

Destroços do MH-17
Mauricio Lima/The New York Times

A CIA ficou impressionada e assumiu o seu primeiro compromisso significativo ao fornecer equipamento de comunicação seguro e treino especializado aos membros da Quinta Direção e a outras duas unidades de elite.

“Os ucranianos queriam peixe e, por motivos políticos, não lhes podíamos entregar esse peixe”, disse um antigo agente, referindo-se a informações que poderiam ajudar no combate contra os russos. “No entanto, podíamos ensiná-los a pescar e oferecer equipamento de pesca com mosca de bom grado.”

Um Pai Natal secreto

No verão de 2015, o presidente ucraniano, Petro Poroshenko, abalou os serviços domésticos e instalou um aliado para substituir Nalyvaichenko, o parceiro de confiança da CIA. No entanto, a alteração criou uma oportunidade noutro lado.

Na reorganização, Kondratiuk foi nomeado como chefe dos serviços militares de informações do país, conhecidos como HUR, onde tinha começado a carreira anos antes. Era um exemplo inicial de como as relações pessoais eram capazes de aprofundar o envolvimento da CIA na Ucrânia, ainda mais do que as alterações políticas.

Ao contrário dos serviços domésticos, a HUR tinha autoridade para recolher informações fora do país, incluindo na Rússia. No entanto, os norte-americanos não reconheciam valor no desenvolvimento da agência, pois esta não gerava informações significativas sobre a Rússia - e porque era vista como um baluarte de simpatizantes russos.

Para tentar conquistar confiança, Kondratiuk marcou uma reunião com o homólogo norte-americano da Defense Intelligence Agency (DIA) e entregou um molho de documentos confidenciais russos. Não obstante, os agentes veteranos da DIA tinham as suas suspeitas e desencorajaram a fomentação de relações.

O general precisava de encontrar um parceiro mais recetivo.

Meses antes, enquanto ainda trabalhava para os serviços domésticos, Kondratiuk visitou a sede da CIA em Langley, Virgínia. Nessas reuniões, conheceu um agente da CIA com uma atitude positiva e uma barba grossa que tinha sido indicado como o próximo chefe de posto em Kiev.

Depois de um longo dia de reuniões, a CIA levou Kondratiuk a um jogo de hóquei dos  Washington Capitals, onde se sentou num camarote de luxo com o futuro chefe de posto e vaiou fortemente Alex Ovechkin, estrela russa da equipa.

O chefe de posto ainda não tinha chegado quando Kondratiuk entregou à CIA os documentos confidenciais sobre a marinha russa. “Há mais de onde estes vieram”, prometeu, e os documentos foram enviados para analistas em Langley. 

Os analistas concluíram que os documentos eram autênticos, e, após a chegada do chefe de posto a Kiev, a CIA tornou-se no parceiro principal de Kondratiuk.

Kondratiuk sabia que precisava que a CIA fortalecesse a sua própria agência. A CIA considerava o general igualmente capaz de ajudar Langley. Tinha dificuldades em recrutar espiões dentro da Rússia, pois os agentes responsáveis eram altamente vigiados.

“Para um russo, permitir que se seja recrutado por um norte-americano é como cometer a mais absoluta e derradeira traição”, declarou Kondratiuk. “Mas se um russo for recrutado por um ucraniano, é apenas uma conversa de amigos entre cervejas.”

O novo chefe de posto começou a visitar regularmente Kondratiuk, cujo gabinete tinha como decoração um aquário onde peixes azuis e amarelos, as cores nacionais da Ucrânia, nadavam em volta de um modelo de um submarino russo afundado. Os dois tornaram-se próximos, incitando as relações entre as agências, e os ucranianos deram ao novo chefe de posto uma alcunha afetiva: Pai Natal.

Em janeiro de 2016, Kondratiuk voou até Washington para participar em reuniões em Scattergood, uma propriedade no complexo da CIA na Virgínia, onde a agência costuma saudar visitantes dignatários. A CIA aceitou auxiliar na modernização da HUR e melhorar a sua habilidade de intercetar comunicações militares russas. Em troca, Kondratiuk concordou em partilhar toda a informação original com os norte-americanos.

Agora, a parceria era real.

Operação Peixe-Dourado

Atualmente, a estrada estreita que conduz à base secreta está cercada por minas que foram espalhadas como uma linha de defesa nas semanas procedentes à invasão russa. Os mísseis russos que atingiram a base pareciam tê-la destruído, mas os ucranianos regressaram algumas semanas depois.

David Guttenfelder/The New York Times

Com dinheiro e equipamento fornecido pela CIA, equipas sob o comando de Dvoretskiy começaram a reconstruir-se clandestinamente. Para evitarem serem detetados, trabalhavam apenas à noite e quando não estivessem a ser sobrevoados pelos satélites de espionagem russos. Os funcionários estacionavam ainda os carros longe do local de obras.

No bunker, Dvoretskiy chamou a atenção para equipamentos de comunicação e grandes servidores informáticos, alguns dos quais financiados pela CIA. Revelou que as suas equipas utilizavam a base para invadir as redes de comunicação seguras do exército russo.

“Isto é o que acede a satélites e descodifica conversas secretas”, explicou Dvoretskiy a um jornalista do The New York Times durante uma visita, adicionando que também estariam a aceder a satélites de espionagem da China e da Bielorrússia.

Outro agente pousou dois mapas recentemente elaborados sobre uma mesa para comprovar que a Ucrânia está a seguir a atividade russa por todo o mundo.

O primeiro ilustrava as rotas aéreas de satélites de espionagem russos que atravessavam o centro da Ucrânia. O segundo demonstrava como os satélites de espionagem russos estão a passar por cima de instalações militares estratégicas, incluindo um estabelecimento de armas nucleares, no leste e no centro dos Estados Unidos.

A CIA começou a enviar equipamento em 2016, após ter tido lugar a reunião fulcral em Scattergood, afirmou Dvoretskiy, providenciando rádios encriptados e dispositivos para a interceção de comunicações secretas do inimigo.

Além da base, a CIA supervisionava ainda um programa de treino, levado a cabo em duas cidades europeias, para ensinar aos agentes de informações ucranianos como assumir personalidades falsas de modo convincente, e como roubar segredos na Rússia e noutros países hábeis na deteção de espiões. O programa adotou o nome Operação Peixe-Dourado, que surgiu de uma piada sobre um peixe-dourado que falava russo e que se ofereceu para realizar os desejos de dois estónios em troca da sua liberdade.

A piada era que um dos estónios esmagou a cabeça do peixe com uma pedra, justificando-se ao dizer que qualquer coisa que fale russo não é de confiança.

Os agentes da Operação Peixe-Dourado foram prontamente destacados para 12 bases de operações avançadas, recentemente construídas ao longo da fronteira russa. A partir de cada base, os ucranianos geriam redes de agentes que recolhiam informações dentro da Rússia, explicou Kondratiuk.

Os agentes da CIA instalaram equipamentos nas bases para auxiliar na recolha de informações e identificaram alguns dos formados ucranianos mais talentosos do programa da Operação Peixe-Dourado, trabalhando com eles para abordar potenciais fontes russas. Estes formados treinaram então agentes adormecidos em território ucraniano destinados a lançar operações de guerrilha em caso de ocupação.

Normalmente, são precisos anos até a CIA estabelecer confiança suficiente com serviços estrangeiros e começar a conduzir operações conjuntas. Com os ucranianos, foram precisos menos de seis meses. A nova parceria começara a produzir tanta informação original sobre a Rússia que esta precisava de ser enviada para Langley para que fosse processada.

Mas a CIA tinha os seus limites. Não ajudaria os ucranianos a levar a cabo operações ofensivas letais.

“Salientámos a distinção entre operações de recolha de informações e coisas que explodem”, declarou um antigo agente veterano dos Estados Unidos.

Este é o nosso país

Foi uma distinção que não agradou aos ucranianos.

Primeiro, a recusa dos norte-americanos em fornecer imagens de satélite do interior da Rússia aborreceu Kondratiuk. Pouco tempo depois, pediu a assistência da CIA no planeamento de uma missão clandestina que pretendia enviar comandos da HUR para a Rússia, com o objetivo de instalar dispositivos explosivos em depósitos ferroviários utilizados pelo exército russo. Se o exército russo pretendesse tomar mais territórios ucranianos, podiam detonar os explosivos para abrandar os avanços da Rússia.

Quando o chefe de posto informou os seus superiores, eles “perderam a cabeça”, como um antigo agente descreveu. Brennan, o diretor da CIA, ligou a Kondratiuk para garantir o cancelamento dessa missão e para se certificar de que a Ucrânia seguia os limites que proibiam as operações letais.

Kondratiuk cancelou a missão, mas reteve uma lição diferente. “A partir de agora, decidimos que não discutiremos estes assuntos com os vossos agentes”, declarou.

No final desse verão, espiões ucranianos descobriram que as forças russas estavam a movimentar helicópteros de ataque num aeródromo na Península da Crimeia, ocupada pela Rússia, possivelmente com a intenção de simular um ataque surpresa.

Kondratiuk decidiu enviar uma equipa para a Crimeia para instalar explosivos no aeródromo, para que pudessem ser detonados no caso de a Rússia atacar.

Desta vez, não pediu a permissão da CIA. Recorreu à Unidade 2245, a força de comando que recebera treino militar especializado do grupo de elite paramilitar da CIA, conhecido como o Ground Department. O objetivo do treino era ensinar técnicas defensivas, mas os agentes da CIA compreenderam que os ucranianos podiam utilizar as mesmas técnicas em operações ofensivas letais sem o seu conhecimento.

Na época, o futuro chefe dos serviços de informações militares da Ucrânia, Budanov, era uma estrela em ascensão na Unidade 2245. Era célebre por levar a cabo operações audaciosas por trás de linhas inimigas e estava profundamente ligado à CIA. A agência treinara-o e dera o extraordinário passo de o enviar para ser reabilitado no Centro Médico Militar Nacional Walter Reed, no Maryland, após ter sido baleado no braço direito durante um combate no Donbass.

Disfarçado com uniformes russos, o então tenente-coronel Budanov liderou os comandos através de um golfo estreito sobre lanchas insufláveis, desembarcando na Crimeia durante a noite.

No entanto, uma unidade de comando de elite russa esperava-os. Os ucranianos lutaram, matando vários combatentes russos, incluindo o filho de um general, antes de terem recuado até à costa, mergulhado no mar e nadado durante horas até alcançarem território sob o controlo da Ucrânia.

Foi um desastre. Num comunicado ao público, Putin acusou os ucranianos de planear um ataque terrorista e prometeu vingar as mortes dos combatentes russos.

“É certo que não deixaremos isto passar”, disse.

Em Washington, a administração da Casa Branca de Obama estava furiosa. Joe Biden, na altura vice-presidente e defensor da assistência à Ucrânia, ligou ao presidente ucraniano para expor as suas queixas. “Provocou um problema enorme”, declarou Biden na chamada, cuja gravação foi divulgada e partilhada na Internet. “Enquanto amigo, o que estou a dizer é que, agora, tenho mais dificuldade em argumentar.”

Alguns dos conselheiros de Obama queriam encerrar o programa da CIA, mas Brennan convenceu-os de que tal seria contraproducente, tendo em conta que a parceria começara a gerar informações sobre a Rússia numa altura em que a CIA estava a investigar a interferência russa nas eleições.
Brennan voltou a ligar a Kondratiuk para ressaltar os limites.

O general ficou incomodado. “Este é o nosso país”, respondeu, de acordo com um colega. “É a nossa guerra, temos de lutar.”

As críticas de Washington fizeram com que Kondratiuk perdesse o emprego. Mas a Ucrânia não cedeu.

No dia seguinte à exclusão de Kondratiuk, uma explosão misteriosa na cidade de Donetsk, localizada no leste da Ucrânia e ocupada pelos russos, destruiu um elevador que transportava um comandante veterano separatista russo chamado Arsen Pavlov, conhecido pelo seu pseudónimo, Motorola.

Pouco tempo depois, a CIA descobriu que os assassinos eram membros da Quinta Direção, o grupo de espionagem treinado pela própria agência. Os serviços de informações domésticos da Ucrânia tinham, inclusive, distribuído emblemas decorativos aos envolvidos, cada um gravado com a palavra “Lift”, o termo britânico que significa elevador.

Novamente, os conselheiros de Obama estavam furiosos, mas não apresentavam uma ameaça - faltavam apenas três semanas para a eleição presidencial que opunha Donald Trump a Hillary Clinton - e os assassínios continuaram.

Uma equipa de agentes ucranianos montou lança-foguetes portáteis e automáticos num edifício dentro de territórios ocupados. Ficava diretamente em frente do gabinete de um comandante rebelde chamado Mikhail Tolstykh, conhecido como Givi. De acordo com agentes ucranianos e norte-americanos, através de um gatilho remoto, dispararam o foguete assim que Givi entrou no gabinete, matando-o.

Decorria agora uma guerra entre as sombras. Os russos utilizaram uma viatura armadilhada para assassinar o chefe da Unidade 2245, a força de comando de elite ucraniana. O comandante, coronel Maksim Shapoval, encaminhava-se para se reunir com agentes da CIA em Kiev quando o seu carro explodiu.

No velório do coronel, a embaixadora dos Estados Unidos na Ucrânia, Marie Yovanovitch, fez o seu luto de pé ao lado do chefe de posto da CIA. Mais tarde, agentes da CIA e os seus homólogos ucranianos brindavam a Shapoval com shots de uísque.

“Foi um golpe que todos sofremos”, relatou Kondratiuk.

Pisar ovos perto de Trump

A eleição de Trump em novembro de 2016 inquietou os ucranianos e os seus parceiros da CIA.

Trump enaltecia Putin e desvalorizava o papel da Rússia na interferência eleitoral. Desconfiava da Ucrânia e tentou pressionar o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a investigar o seu rival democrático, Biden, resultando na primeira impugnação de Trump.

Contudo, apesar do que Trump dizia e fazia, a sua administração seguia o caminho oposto. Isto devia-se ao facto de Trump ter oferecido posições importantes a observadores russos, como, por exemplo, o cargo de diretor da CIA a Mike Pompeo e o cargo de conselheiro de segurança nacional a John Bolton. Visitaram Kiev para salientar o seu apoio face à parceria secreta, que se ampliou para incluir programas de formação mais especializados e a construção de bases secretas adicionais.

A base na floresta passou a incluir um novo centro de comando e casernas, verificando um crescimento de 80 para 800 agentes de informações ucranianos. Impedir a Rússia de interferir nas futuras eleições dos Estados Unidos era a principal prioridade da CIA durante este período, e agentes de informações ucranianos e norte-americanos uniram-se para investigar os sistemas informáticos dos serviços de informações russos, de modo a identificar operacionais que tentassem manipular os eleitores.

Numa operação conjunta, uma equipa da HUR ludibriou um agente dos serviços de informações do exército russo a fornecer informações que permitissem à CIA estabelecer uma ligação entre o governo russo e o conhecido grupo de pirataria informática Fancy Bear, que já fora implicado em tentativas de interferência eleitoral em diversos países.

Budanov, que foi indicado por Zelensky para liderar a HUR em 2020, disse o seguinte sobre a parceria: “Apenas se fortaleceu. Cresceu sistematicamente. A colaboração alargou-se a áreas adicionais e adotou uma maior dimensão.”

A parceria conquistou tanto êxito que a CIA pretendia replicá-la com outros serviços de informações europeus que partilhassem o objetivo de combater a Rússia.

O dirigente da Russia House, um departamento da CIA responsável por operações contra a Rússia, organizou um encontro confidencial em Haia. Aí, representantes da CIA, do MI6 da Grã-Bretanha, da HUR, dos serviços holandeses (um aliado de informações crucial) e de outras agências aceitaram começar a juntar mais informações que recolhiam sobre a Rússia.

Originou-se uma coligação secreta contra a Rússia, e os ucranianos eram membros essenciais.

Marchar para a guerra

Em março de 2021, o exército russo começou a agrupar tropas ao longo da fronteira com a Ucrânia. Com a passagem dos meses e com o aumento das tropas que cercavam o país, a questão seria se Putin estaria a realizar uma simulação ou a preparar-se para a guerra.

Em novembro, e nas semanas que se seguiram, a CIA e o MI6 enviaram uma mensagem unitária aos seus parceiros ucranianos: a Rússia estava a preparar-se para uma invasão total com o fim de decapitar o governo e instalar um fantoche em Kiev que obedecesse às vontades do Kremlin.

Segundo agentes norte-americanos, os serviços de informações dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha tinham interceções às quais os serviços de informações ucranianos não tinham acesso. As novas informações enumeravam os nomes de agentes ucranianos que os russos estariam a planear capturar ou matar, bem como os ucranianos que o Kremlin aspirava colocar no poder.

Em janeiro de 2022, Burns, o diretor da CIA, apressou-se a ir até Kiev para os informar, mas Zelensky e alguns dos seus conselheiros não ficaram convencidos.

Com a aproximação da invasão russa, agentes da CIA e do MI6 realizaram as últimas visitas a Kiev com os seus parceiros ucranianos. Um dos agentes do MI6 emocionou-se em frente aos ucranianos, com receio de que os russos os matassem.

A pedido de Burns, um pequeno grupo de agentes da CIA foi isento da evacuação geral dos Estados Unidos e relocado num complexo hoteleiro no oeste da Ucrânia. Não queriam abandonar os seus parceiros.

Sem fim à vista

A 24 de fevereiro de 2022, após Putin ter lançado a invasão, os agentes da CIA que estavam no hotel eram a única presença norte- americana no terreno. Encontravam-se diariamente no hotel com os seus contactos ucranianos para passar informação. As algemas antigas tinham sido retiradas, e a Casa Branca de Biden autorizou que os serviços de espionagem fornecessem informações de apoio para operações letais contra as forças russas em solo ucraniano.

Na sua maioria, as informações da CIA continham detalhes chocantemente específicos.

A 3 de março de 2022, o oitavo dia da guerra, a equipa da CIA partilhou um panorama preciso dos planos russos para as próximas duas semanas. Os russos abririam nesse dia um corredor humanitário que conduziria para fora da cidade sitiada de Mariupol, com o objetivo de abrir fogo sobre os ucranianos que o utilizassem.

Planeavam ainda cercar a estratégia cidade portuária de Odesa, de acordo com a CIA, mas uma tempestade atrasou o ataque e os russos nunca tomaram a cidade. De seguida, a 10 de março, a Rússia pretendia bombardear seis cidades ucranianas, e já teria inserido as coordenadas em mísseis de cruzeiro para esses ataques.

Os russos estavam ainda a tentar assassinar os principais agentes ucranianos, incluindo Zelensky. Segundo um agente veterano ucraniano, houve pelo menos uma ocasião em que a CIA partilhou informações com os serviços domésticos da Ucrânia que ajudaram a desmantelar um atentado contra o presidente.

Quando o ataque russo a Kiev foi interrompido, o chefe de posto da CIA regozijou-se e disse aos seus parceiros ucranianos que estavam “a dar uma tareia aos russos”, relatou um agente ucraniano que se encontrava na sala.

Dentro de semanas, a CIA tinha regressado a Kiev, e enviaram vários agentes para ajudar os ucranianos. Um agente veterano dos Estados Unidos comentou o seguinte acerca da presença considerável da CIA: “Estão a premir os gatilhos? Não. Estão a ajudar na definição dos alvos? Sem dúvida.”

Alguns agentes da CIA foram enviados para bases ucranianas. Analisaram listas de potenciais alvos russos que a Ucrânia se preparava para atingir, comparando os dados que os ucranianos tinham com as informações dos Estados Unidos, para assegurar a sua veracidade.

Antes da invasão, a CIA e o MI6 treinaram os seus parceiros ucranianos na recruta de fontes e na construção de redes clandestinas e partidárias. Na região sulista de Kherson, que fora ocupada pela Rússia nas primeiras semanas da guerra, essas redes partidárias entraram em ação, de acordo com Kondratiuk, assassinando colaboradores locais e auxiliando forças ucranianas a atingir posições russas.

Em julho de 2022, espiões ucranianos avistaram comboios russos a preparar-se para atravessar uma ponte estratégica através do rio Dniepre e avisaram o MI6. Os agentes dos serviços de informações britânicos e norte-americanos verificaram rapidamente as informações através de imagens de satélite transmitidas em tempo real. O MI6 comunicou a confirmação e o exército ucraniano disparou com foguetes, destruindo os comboios.

No bunker subterrâneo, Dvoretskiy revelou que um sistema antiaéreo alemão é a atual defesa contra os ataques russos. Um sistema de purificação do ar oferece proteção contra armas químicas e, se a rede elétrica for abaixo, está ainda disponível um sistema elétrico específico.

A dúvida que alguns agentes dos serviços de informações ucranianos expõem aos seus parceiros norte-americanos, à medida que os republicanos na Casa Branca ponderam suspender a oferta de milhares de milhões de dólares em auxílios, é se a CIA os abandonará. “Já aconteceu no Afeganistão, e vai acontecer agora na Ucrânia”, disse um agente veterano ucraniano.

Em relação à visita de Burns a Kiev na semana passada, um agente da CIA comentou: “Demonstrámos um compromisso claro para com a Ucrânia ao longo de vários anos, e esta visita foi outra indicação forte de que o compromisso norte-americano continuará.”

A CIA e a HUR construíram outras duas bases secretas para intercetar comunicações russas e, juntamente com as 12 bases de operações avançadas que Kondratiuk afirma estarem ainda operacionais, a HUR recolhe e produz mais informações atualmente do que em qualquer outro momento durante a guerra - partilhando a maioria com a CIA.

“Não se arranja informação como esta em lado nenhum, a não ser aqui e agora”, afirmou Dvoretskiy.

Reportagem com a contribuição de Natalia Yermak

c.2024 The New York Times Company

Este artigo foi originalmente publicado em The New York Times 

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