É recorrente. Cada vez que se fala sobre a falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) há sempre quem venha defender que a solução seria obrigá-los a ficar no serviço público alguns anos após a especialização, muitas vezes com o argumento de que se formaram numa universidade pública e à custa do contributo do erário público. Este ano, antes das eleições, o PS desenterrou o tema e voltou a admitir aplicar “um período de permanência após a especialidade”, o que já tinha sido também equacionado por outros governos socialistas. A medida não passa da discussão, mas provoca sempre muita reação. Na altura, os sindicatos médicos manifestaram-se logo contra considerando a possibilidade “ilegal” e “discriminatória”..Este mês, um comentador de uma televisão veio falar do assunto e o ex-diretor-geral da Saúde Francisco George manifestou-se também a favor, sendo acompanhado por outros. Ao DN, Francisco George assume que para si é “incompreensível que um médico especialista depois de ter feito cinco anos de faculdade de medicina, um ano de internato geral e, em regra geral, mais cinco anos de internato da especialidade, seja autorizado a passar imediatamente a seguir para o setor privado”. A situação, argumenta, “só beneficia o setor privado, que fica com o trabalho destes especialistas formados pelo Estado sem ter gasto nada na sua formação, quando os custos desta são de grande monta”. O médico socorre-se também do exemplo que normalmente é referido, o da Força Aérea, onde os pilotos que ali se formam só podem abandonar o serviço ao Estado ao fim de alguns anos. “Para mim, esta solução pode aplicar-se aos médicos, penso que até será socialmente compreendida”..Mas há quem não concorde. O DN quis saber o que pensam quem esteve na organização de várias reformas do SNS e ouviu Constantino Sakellarides, também membro do Conselho Geral da Fundação do SNS e ex-diretor-geral da Saúde, bem como quem está ao lado dos estudantes, o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), Carlos Robalo Cordeiro. E para ambos esta solução “é adiar o que é inevitável” e “não se estaria a resolver o problema de fundo do SNS”, que “é criar condições de trabalho”. O que é também defendido por Francisco George, porque, ao mesmo tempo que defende que os médicos devem ser obrigados a ficar, até defende que devem poder sair e voltar. “É uma medida que se deve ser acompanhada por outras, para os incentivar a voltar”. .Reino Unido: Da proposta de obrigatoriedade ao abandono da profissão.Mas esta discussão só acontece em Portugal? Não. Outros países, como o Reino Unido, que tem um Sistema Nacional de Saúde (NHS) idêntico ao português, universal e maioritariamente gratuito, há muito que o faz e sem qualquer decisão. Na Europa, só a Albânia legislou a medida no ano passado, em julho, e com aplicação no novo ano letivo. Os recém licenciados passaram a ficar obrigados a cumprir mais cinco anos no sistema de saúde do país, para colmatar a fuga de recursos para outros países, mas a medida levou os estudantes à rua com protestos e ameaças de boicotar o novo ano letivo. Passou um ano, e o feedback que o DN conseguiu foi da parte de outros estudantes na Alemanha e no Reino Unido, que nos disseram que “há albaneses a sair do país para se estudarem naqueles países, por não quererem ficar agarrados àquela situação”.. No Reino Unido, a discussão sobre este tema dura há muito tempo, e o motivo também é a fuga de profissionais para países que têm os melhores sistemas de saúde do mundo, como Austrália e Nova Zelândia..Em 2017, o Departamento de Saúde do NHS formalizou mesmo uma proposta para ser apresentada no Parlamento que incluía até penalizações: “Os médicos recém-especialistas teriam que realizar serviço obrigatório no NHS durante um período após a formatura ou incorreriam numa penalização financeira significativa”. No caso de saírem do NHS e, depois, quererem voltar, teriam de pagar também uma quantia..O Royal College opôs-se de forma determinante com o argumento de que tal “não melhoraria o atendimento ao paciente e seria prejudicial à moral dos formandos”, propondo que, em vez de se apostar em punições por se deixar o NHS, se apostasse em recompensas financeiras e mais condições de trabalho para reter os médicos. Por exemplo, o pagamento de uma parte da dívida que muitos contraem para pagar propinas..Num dos textos publicados pela European Junior Doctors Association (EJDA) sobre o tema pode ler-se: “Poderíamos pagar 10% da dívida estudantil de um jovem médico, até cerca de dez mil libras por ano, cada ano concluído no NHS, desde que estes fossem assumidos nos primeiros 15 anos após a qualificação”. Esta proposta não foi para a frente, mas a ideia da obrigatoriedade de ficar no sistema também não..E a realidade, sete anos depois, é que o Reino Unido mantém o mesmo problema - médicos continuam a deixar o NHS, a protestar contra as condições de trabalho e a exigir melhores salários. Na primavera do ano passado os médicos internos paralisaram os serviços com uma greve de vários dias em luta por aumentos salariais da ordem dos 35%, face à desvalorização dos últimos 15 anos. Mas agora com uma agravante, já que uma das preocupações do Royal College é “o aumento do número de profissionais a abandonar a profissão”. .Associação Europeia pede mudanças motivacionais em vez de obrigatoriedades.A EJDA publicou em julho deste ano, um novo artigo sobre o assunto intitulado, “Mandato à Motivação - Estratégias de retenção na Europa dos Jovens Médicos”. Depois de analisar vários sistemas de saúde, a EJDA começa por dizer que “a Europa está a enfrentar as consequências da crise provocada pela força de trabalho no setor da saúde”. Recorde-se que a Organização Mundial da Saúde há anos que alerta para o facto de a Europa, independentemente da fuga de cérebros, ter outra “bomba relógio” nas mãos para gerir, falando da idade da população médica, que se encontra, de forma geral, envelhecida - mais de 50% com mais de 55 anos, refere num dos seus relatórios. .No seu artigo, a EJDA alerta para o facto de a possibilidade de reter jovens médicos nos sistemas nacionais através da obrigatoriedade envolve questões legais, éticas e estratégicas. Por isso, o grande desafio dos sistemas “é saber retê-los de forma motivacional”..O estudo, que analisa o impacto entre a aplicação de uma medida como a do serviço obrigatório versus a criação de incentivos e condições de trabalho, como estratégias emocionais, refere que “a obrigatoriedade entra, desde logo, em conflito com as diretivas da União Europeia, relativamente ao interesse na formação e progressão nas qualificações profissionais dos médicos, bem como com os direitos de cada cidadão”, por “obrigar os jovens médicos a trabalhar em locais específicos, o que prejudica a sua autonomia e limita a sua capacidade de tomar decisões sobre a sua trajetória profissional e vida pessoal”. O texto sublinha que “esta prática pode levar a sentimentos de ressentimento e insatisfação, com impacto negativo no desempenho e no atendimento ao paciente”..Em relação às questões estratégicas a EJDA dá como adquirido que a prática menos boa é a das “medidas obrigatórias”, “o médico ter de ficar uns anos no sistema de saúde ou ser deslocado para onde não quer”. “A boa prática é a que envolve incentivos, como melhores condições de trabalho e estágios clínicos supervisionados para atrair e reter talentos médicos voluntariamente”..Neste artigo, a EDJA recomenda ainda aos países que uma boa solução é ter como “prioridade o planeamento a longo prazo de uma política de recursos humanos” e “mais investimento na formação médica”, para “não comprometer a sua qualidade”. Como conclusão, defende a mudança baseada em “estratégias viradas para a motivação, respeito, autonomia e progressão na carreira”..Uma solução destas colocaria em causa o papel das universidades públicas .Isto mesmo é o que defendem o professor catedrático jubilado Constantino Sakellarides e o diretor da FMUC, Carlos Robalo Cordeiro. E o primeiro é peremptório ao afirmar que, de vez em quando, “há pessoas que encontram ‘soluções mágicas’”, baseadas “no chamado pensamento superficial”. Ou seja, “temos um problema vamos resolver obrigando as pessoas a fazer o que não querem”, quando “o pior seria termos no SNS pessoas que não querem lá estar”..Para o especialista na avaliação de sistemas de saúde, qualquer medida que obrigue os médicos a ficarem no SNS “será temporária”, “estaríamos a adiar a saída”, além de que seria “uma violência”. Porquê? Porque uma solução obrigatória está ferida no que são os direitos fundamentais de qualquer cidadão, mas não só..Em primeiro lugar, explica, uma solução destas colocaria em causa o papel das universidades públicas. “Quando uma universidade pública forma novos profissionais não é só para os serviços públicos é para o país. Se fosse só para os serviços públicos esta lógica teria de ser aplicada a todos os licenciados de outros cursos, que na esmagadora maioria vão trabalhar para o setor privado. Se assim é, porque é que este serviço público tem de ser aplicado só aos médicos?”, questiona, acrescentando: “A conceção de que uma universidade pública formaria licenciados só para os serviços públicos seria difícil de entender”. E vai mais longe. “Quando se fala desta questão dá-se o exemplo da Força Aérea, onde quem tira o curso de piloto tem de ficar uns anos até passar para a aviação comercial, mas estes sabem de antemão que é assim, o que não aconteceria com a Medicina se agora fosse tomada uma decisão destas”. Por outro lado, sublinha, “esta questão volta a surgir quando se está a pensar em melhorar as condições de trabalho, carreiras e remunerações para tornar o SNS mais atrativo. Ora, se queremos que as pessoas fiquem no SNS é porque gostam de lá estar e não porque são obrigadas”. .O professor diz mesmo que “esta solução num país do Norte da Europa, os ditos desenvolvidos, nem se coloca. Fala-se dela nos países do Sul, onde ainda há uma relação complexa com a liberdade. No Norte esta relação é mais forte e as coisas não são feitas desta forma”, argumentando que estas “soluções mágicas” fazem-nos estar a discutir o que é essencial, nomeadamente uma política de planeamento de recursos..“É preciso criar condições no SNS que permita aos médicos voltarem” .Carlos Robalo Cordeiro, diretor da FMUC, com uma atividade de mais de 40 anos, especialista em pneumologia, defende que as soluções têm de ser adaptadas às novas circunstâncias e às novas gerações. “As gerações de hoje são muito diferentes da minha, que não questionava o ter de fazer mais 24 horas de urgências ou o ter um dia folga a seguir a uma noite de trabalho. A geração de hoje é mais exigente em relação ao que quer, e valoriza mais o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal”. Portanto, “senão alterarmos as condições de trabalho e remuneratórias, se não forem criados mais incentivos na diferenciação e até na progressão da carreira, a questão da falta de médicos no SNS não se resolve”. .O professor reconhece que a medida, “teoricamente, até pode fazer sentido, mas, na minha perspetiva, isso significaria adiar por mais cinco anos, ou o tempo que for, o inevitável, porque os médicos acabavam os cinco anos e iam-se embora”..E reforça: “Não é com medidas obrigatórias que se consegue resolver o problema do SNS, mas com perspetivas de motivação e aliciantes, que podem ir desde a diferenciação tecnológica, aos horários e à valorização remuneratória”. .Sobre se seria fácil vender a ideia de ficar uns anos no SNS a um estudante de Medicina, Robalo Cordeiro considera que não, e destaca: “Os alunos de Medicina trazem com eles o espírito de missão, mas hoje há critérios que se sobrepõe na tomada das decisões sobre a formação. Quanto mais não seja o critério de ir fazer medicina noutros países para aprender, abre-lhes horizontes. O importante é que depois deveríamos ter condições para que regressassem ao país, mas a verdade é que experimentando as condições lá fora depois é difícil um paralelo aqui”..Da experiência que tem diz: “Não me recordo de haver um único país em que a obrigatoriedade tenha sido aplicada”. Portugal tem “um longo caminho a fazer”, mas para se chegar a soluções é preciso que o caminho seja “feito sem populismo e sem lutas político-partidárias que tornam a Saúde uma arma de arremesso. Isto não pode acontecer senão estamos a brincar com a vida das pessoas”. .Retrato em números da classe médica na UE .Em 2021, estatísticas divulgadas pelo Eurostat indicavam que a União Europeia tinha mais de 1,82 milhões de médicos – uma média que é significativamente melhor quando comparada com outras regiões do mundo, embora com grandes diferenças entre os 27 membros. Ou seja, no rácio por 100 mil habitantes há diferenças consideráveis entre países, mas o problema é que o número de médicos registados nem sempre corresponde ao número dos que estão no ativo no sistema de saúde de cada país..Esse é o problema de Itália, que tem o maior número de médicos por 100 mil habitantes: 726. É seguida pela Suécia, que tem 718,68, e pela Alemanha com 656,22, que não sofrem deste problema. O mesmo já não acontece coma Grécia que tem 629,22 médicos por 100 mil habitantes e falta de médicos no sistema de saúde. A Bélgica tem 671,1 médicos, a Hungria 614,17, Espanha 598,56 e Portugal 562,04. Todos com falta de médicos no sistema de saúde e à procura de soluções. Depois aparece a Áustria com 540 médicos, a Holanda com 420 médicos e sem escassez de recursos humanos..Os motivos para esta situação, segundo o relatório do Eurostat, vão do facto de a Europa ter “uma população médica envelhecida”, em que o maior número de profissionais está acima dos 55 anos, à “emigração” para outros locais do mundo com “melhores condições de trabalho e mais salário”. O país da UE com o rácio mais pequeno é a Roménia com 309,33 médicos por 100 mil habitantes.