Um refém no Palácio do Eliseu?

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Algumas projeções indicam que as próximas eleições francesas podem levar ao desaparecimento do macronismo como força parlamentar, já que na segunda volta 536 dos 577 lugares em disputa poderão ter como finalistas a extrema-direita e a nova Frente Popular de esquerda. Macron irrompeu na política francesa, depois dos cinco anos nulos de Hollande, como um cometa, desarrumando os tabuleiros partidários. Com pompa monárquica, exibindo o vigor dos seus 39 anos no solitário passeio da tomada de posse, Macron prometia tudo a todos: um pouco mais de visão estratégica, para aqueles que atendiam ao seu currículo como estudioso da filosofia, uma revitalização da economia, tendo em conta a sua experiência de sucesso como banqueiro. Desiludiu em quase tudo, em particular na tentativa de renovar o eixo franco-alemão, atraindo a chanceler Merkel para sucessivas cimeiras, que pretendiam corrigir os excessos de austeridade e rigor orçamental da hegemonia alemã sobre as regras do euro. Chá e simpatia, mas tudo ficou na mesma. Em 5 de maio de 2020, já com a pandemia a ceifar vidas pela Europa fora, o Tribunal Constitucional alemão publicou um acórdão a zurzir nas medidas do BCE, sob a direção a Mario Draghi, que tinham salvo o euro de implosão. O bloqueio germânico continua a ser a única constituição económica da UE.

A espontânea insensibilidade social de Macron criou-lhe a revolta dos “coletes amarelos”, mas o mais ameaçador gesto do presidente – para a França e a segurança global – foi a sua tese da “ambiguidade estratégica” perante a Rússia, desde fevereiro último. Macron, que no início da guerra apelava à não humilhação de Moscovo, aparece agora como o campeão do envio de tropas ocidentais para um confronto direto com a Rússia. Nem Washington lhe pediria tanto servilismo. Macron rompeu com a geopolítica francesa, nascida do desastre de Napoleão na retirada de Moscovo em 1812 e da derrota de 1870 perante a Prússia. Em dois séculos, a França nunca ignorou que a Europa vai do Atlântico aos Urais. De Gaulle sabia que fazer da Rússia um inimigo seria um erro mortal para um estadista francês.

Aqueles que julgam ser só uma luta entre esquerda e direita o que se joga nas próximas eleições francesas esquecem que a clivagem existencial mais urgente para os europeus é entre a guerra e a paz. Embora exista ambiguidade nos dois campos em relação à guerra, será a perceção dos eleitores sobre as pequenas diferenças que ditará o grau da vitória do partido de Marine Le Pen e as condições para uma sua eventual coabitação com o presidente. Nesse caso, Macron tornar-se-ia cada vez mais refém da sua derrota, numa França em ebulição e entropia crescentes.

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