O punho desafiador de Trump e a defesa da democracia na América
O gesto desafiador do punho fechado de Donald Trump logo a seguir a ser alvejado e ainda com sangue no rosto após ser ferido a tiro numa orelha terá um impacto tremendo na campanha eleitoral, mesmo que tenhamos de esperar ainda pelas sondagens para apurar quanto. Certo é que as hipóteses de o ex-presidente derrotar Joe Biden nas eleições de 5 de novembro parecem cada vez maiores, por mobilização óbvia do seu campo e por natural simpatia de eleitores até agora indecisos.
Mas, mais importante do que definir o rumo das presidenciais, a tentativa de assassínio do candidato republicano recorda como a violência está presente na política, e certamente na política americana, mas também como historicamente a democracia nos Estados Unidos sempre se mostrou mais forte do que aqueles que a tentam abalar. Mesmo quando o candidato (ou até o presidente) foi morto num atentado, a vida das pessoas continuou, as eleições aconteceram na data prevista, a governação decorreu as usual. Como em 1901, em 1963 e em 1968, só para citar algumas datas do século XX em que houve atentados a políticos e nesses três casos bem-sucedidos. Como continuará agora.
Claro que se tem de debater a questão da segurança das personalidades, o que falhou a esse nível no sábado durante o comício de Trump na Pensilvânia, em que morreu um dos apoiantes do candidato e outros ficaram feridos. Também a questão da facilidade com que se compram armas na América regressará às conversas de café e às páginas de opinião dos jornais, pois o atacante foi um homem de 20 anos sem experiência militar e motivação ainda por esclarecer. Mas a condenação imediata vinda de todos os setores, o telefonema de solidariedade de Biden ao rival, as palavras de apoio dos antigos presidentes democratas Bill Clinton e Barack Obama, igualmente da antiga speaker da Câmara dos Representantes Nancy Pelosi, que chegou a tentar o impeachment de Trump, têm um simbolismo enorme e mostram um esforço de unidade que é importante para os Estados Unidos, que há dias celebraram o 4 de Julho e estão a dois anos de festejar os 250 anos da Declaração de Independência.
Algumas vozes republicanas a apontar o dedo a um discurso divisionista dos democratas surgem, para já, como a exceção, mesmo que mereçam atenção. A diabolização do rival, a sua transformação em inimigo, não é natural em democracia, e os dois campos políticos na América têm responsabilidades nesse assunto.
Os atentados aos políticos, reforço, não são fenómeno exclusivo da América. Ainda há meses houve o ataque ao primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico. Também o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro foi esfaqueado na campanha que lhe deu a vitória. E só para relembrar uma tragédia célebre na Europa, a mui pacífica Suécia nunca esqueceu o assassínio do primeiro-ministro Olof Palme quando caminhava pelas ruas de Estocolmo com a mulher, depois de uma ida ao cinema.
Porém, os Estados Unidos destacam-se entre as democracias em termos de magnicídios, como os do presidente William McKinley em 1901 ou do presidente John Kennedy em 1963, com este a originar uma das primeiras páginas mais impactantes dos 160 anos de história do DN. E no conturbado ano eleitoral de 1968 outro Kennedy, o irmão Robert, candidato à nomeação democrata, foi também assassinado, escassos meses depois de Martin Luther King, o líder da luta dos afro-americanos pelos direitos civis. Em 1981 o presidente Ronald Reagan sobreviveu a disparos que o deixaram gravemente ferido.
Voltando à força da democracia americana, de certeza que a campanha vai continuar, e, conhecendo-se a personalidade de Trump, este deverá insistir em falar na Convenção Republicana. E fazer mais comícios, tal como Biden, que também no sábado, no Michigan, voltava a garantir estar bem e que nada de sério se passa com a sua saúde, apesar dos 81 anos (o rival tem 78). Têm data marcada daqui a três meses para um segundo duelo presidencial, depois de Biden ter ganhado em 2020 com a maior votação de sempre de um candidato (e Trump, embora perdendo, teve a segunda maior de sempre).
Trump, que reforça o seu carisma com a sobrevivência a este atentado, falou, e bem, de uma América unida. Biden, que como presidente tem o dever de assegurar que os americanos podem confiar nas instituições para defender a democracia, também esteve bem ao falar da necessidade de união do país. E ao prometer uma investigação independente aos acontecimentos na Pensilvânia está também a tentar combater as teorias da conspiração, em vários sentidos, que logo surgiram em redor do atentado falhado.
Nestes quase 250 anos como país, a contar desde aquele 4 de julho de 1776 de rebelião contra a coroa britânica, a democracia americana tem mostrado sempre uma admirável resiliência. E não há melhor prova disso do que a normal sucessão do vice-presidente quando algo acontece ao presidente por doença ou atentado (Abraham Lincoln, em 1865, e James Garfield, em 1881, além de McKinley e Kennedy), ou, sublinhe-se, a realização sagrada de eleições na data prevista mesmo quando o país está mergulhado numa guerra civil (presidenciais de 1864) ou envolvido numa guerra mundial (presidenciais de 1944).