Aguiar-Branco propõe criação da figura do voto de repúdio contra discursos de ódio
O presidente da Assembleia da República propôs esta quarta-feira que, na sequência de uma revisão do Regimento, seja criado um voto de repúdio perante um insulto ou uma injúria que será votado quase de imediato.
Esta posição de José Pedro Aguiar-Branco foi transmitida pelo secretário da mesa da conferência de líderes, o deputado do PSD Jorge Paulo Oliveira, que adiantou que a discussão da questão da liberdade de expressão dos deputados e sua compatibilização com "linhas vermelhas" em relação a discursos considerados xenófobos ou injuriosos foi debatida ao longo de mais de hora e meia.
Uma questão que foi levada a conferência de líderes na sequência de um incidente na sexta-feira, de manhã, em plenário, em que o presidente do Chega, André Ventura, se referiu à capacidade de trabalho dos turcos.
Na sequência deste caso, o presidente da Assembleia da República apresentou na conferência de líderes um "dossier" com preceitos constitucionais e do Regimento relacionados com os poderes de intervenção do presidente do parlamento.
"Houve mais pontos de consenso do que divergência", referiu o porta-voz da conferência de líderes.
Uma das propostas de José Pedro Aguiar-Branco passou pela criação de um voto de repúdio em relação a discursos considerados de ódio, ideia que será ainda analisada pelos diferentes grupos parlamentares e que requer uma revisão do Regimento da Assembleia da República.
De acordo com o porta-voz da conferência de líderes, o voto de rejeição "não foi objeto de apreciação na reunião de e muito menos de votação".
"A criação deste voto de rejeição foi uma sugestão que o presidente da Assembleia da República deixou aos diferentes grupos parlamentares em relação a uma futura do Regimento do parlamento. Pode ser apresentado por uma força política e votado de forma imediata após o incidente que lhe deu origem", referiu Jorge Paulo Oliveira.
Na conferência de líderes, José Pedro Aguiar-Branco também manifestou "repúdio" em relação a recentes relatos de casos de insultos racistas, ou de misoginia, que a dirigente socialista Isabel Moreira atribuiu a elementos do Chega.
"O presidente da Assembleia da República teve a oportunidade de repudiar denúncias em torno de atitudes racistas ou de misoginia. Solicitou aos grupos parlamentares que situações como as que têm vindo a ser tornadas públicas sejam comunicadas ao presidente da Assembleia da República para que possa adotar procedimentos que o Regimento e o estatuto dos deputados permite", assinalou o porta-voz da conferência de líderes.
"Ficou uma nota de repúdio pelas denúncias, mas também o pedido para que esse tipo de situações sejam comunicadas para o presidente da Assembleia da República possa atuar em conformidade com as normas que norteiam o parlamento", acrescentou.
Aguiar-Branco frisa que não lhe cabe ser o guardião do aceitável
O presidente da Assembleia da República insistiu que não lhe cabe fazer a avaliação da bondade dos discursos dos deputados, ainda que sejam eticamente desvaliosos, assumindo-se como "guardião" do aceitável.
Esta posição de José Pedro Aguiar-Branco consta de um documento intitulado "A liberdade de expressão, uma super liberdade de expressão máxima e de restrição mínima". Uma questão que surgiu depois de as bancadas da esquerda parlamentar o terem criticado por não ter admoestado o presidente do Chega, André Ventura, quando, na sexta-feira, em plenário, se referiu às capacidades de trabalho do povo turco.
Para o PS, PCP, BE e Livre, o presidente do parlamento, perante esse discurso de André Ventura, que classificaram como racista e xenófobo em relação ao povo turco, deveria ter atuado ao abrigo do artigo 89.º número 3 do Regimento, podendo até retirar a palavra ao líder do Chega.
Mas, para José Pedro Aguiar-Branco, não é essa a interpretação correta. E esse artigo não significa que o presidente da Assembleia da República esteja "investido de poderes de censura ou de julgamento de eventuais infrações".
"Tal disposição normativa, de natureza organizatória do debate e com efeitos inter partes, apenas confere poderes ao presidente da Assembleia da República de criar um espaço de discurso político isento de constrangimentos, aberto ao confronto de ideias, que garanta que o exercício do mandato (...) seja exercido sem receio de represálias. A ratio desta norma não é, de modo algum, o condicionamento do debate, mas sim evitar que este possa ser condicionado por injúrias, ofensas, chantagens ou ameaças entre os intervenientes", sustenta.
Na perspetiva do antigo ministro social-democrata, não cabe ao presidente da Assembleia da República "a avaliação da bondade do discurso político, ainda que eticamente desvalioso".
"Nem lhe compete, em nome dos poderes regimentais que lhe são conferidos, instituir uma cultura de cancelamento linguístico, freando opiniões e assumindo-se como guardião do aceitável e do politicamente correto. Não pode, em momento algum, o presidente da Assembleia da República substituir-se ao tribunal na operação do critério da concordância prática (ou freios e contrapesos) entre liberdade de expressão e outros princípios constitucionalmente garantidos", salienta-se no documento.
José Pedro Aguiar-Branco deixa também uma pista sobre uma eventual reforma em termos de funcionamento do parlamento, citando, para o efeito, o professor José Melo Alexandrino.
Sugere-se, então, que se poderá meditar numa reforma do parlamento, "a começar pelo Código de Conduta dos Deputados e respetivas estruturas de supervisão, pela reforma do Estatuto dos Deputados ou do próprio Regimento".
Um processo que, na sua perspetiva, deverá reforçar mecanismos já existentes "que permitem aos deputados reagirem -- designadamente face a expressões que propaguem, incitem, promovam ou justifiquem o ódio racial, a xenofobia ou outras formas de ódio baseadas na intolerância -- como a figura do protesto, contida no artigo 85º, numero 1, do Regimento".
"Ou, ainda, equacionar-se a criação regimental de um voto de rejeição, correspondente a uma declaração formal de repúdio, desaprovação ou condenação de determinada ação ou declaração, que pode ser imediatamente submetida a votação do plenário, de modo a dar voz ao parlamento quanto à condenação oficial e coletiva de determinado discurso", defende-se no documento.
Uma proposta que José Pedro Aguiar-Branco apresentou hoje em conferência de líderes e em relação à qual os diferentes grupos parlamentares irão agora analisar, embora as bancadas da esquerda tenham para já afastado uma nova revisão do Regimento da Assembleia da República.
Na parte das conclusões, o presidente da Assembleia da República destaca um princípio basilar inerente à sua conceção de democracia representativa.
"Numa sociedade democrática e plural, a avaliação e a derrota do discurso político faz-se com recurso a argumentos e com a confrontação objetiva da verdade dos factos, nunca por via da imposição de silêncio ou de censura, sem que isto signifique condescendência, concordância ou validação de opiniões e ideologias que (...) apenas ao povo cabe apreciar e julgar através da arma que dispõe: O voto", acrescenta.
PSD rejeita mudar Regimento
O PSD recusou entretanto quaisquer alterações ao Regimento sobre eventuais limites à liberdade de expressão e considerou que o presidente da Assembleia da República "tem razão" ao recusar "ser censor" dos deputados.
Hugo Soares falava no parlamento para acusar o PS de ser "uma força de bloqueio" à descida do IRS e saudar o acordo alcançado entre Governo e a maioria dos sindicatos de professores, quando foi questionado sobre a discussão de hoje, na conferência de líderes, sobre como compatibilizar a liberdade de expressão dos deputados com "linhas vermelhas" em relação a discursos considerados xenófobos ou injuriosos.
"O PSD optou por não fazer comentários desde sexta-feira até à conferência de líderes: creio que os portugueses que trabalham, que estudam, olham para esse debate e devem achar sinceramente que nós não temos mais nada para fazer", começou por dizer o líder parlamentar do PSD.
Hugo Soares disse preferir "ver o país a discutir os salários dos professores, dos médicos, a baixa dos impostos": "Alguém acha aqui que a democracia está em crise ou para acabar? Não, o que há é um constante desprestigiar das instituições", afirmou.
Em concreto sobre o incidente de sexta-feira que desencadeou este debate -- quando o líder do Chega afirmou que o povo turco "não era o mais trabalhador do mundo" -, o social-democrata relativizou, dizendo que "foi um episódio como tantas vezes aconteceu" e defendeu que os debates parlamentares "são hoje bem mais elevados do que havia antigamente".
"É verdade que o presidente da Assembleia da República tem razão, ele não é censor para comprimir a liberdade de expressão, quem deve fazer esse julgamento são os portugueses", disse, considerando que este assunto "não é um tema".
Questionado se o PSD vai propor alguma alteração ao Regimento, depois de Aguiar-Branco ter sugerido a possibilidade de ser criado um voto de repúdio ou rejeição perante um insulto ou uma injúria, respondeu negativamente.
"Nós não temos nenhuma alteração regimental a fazer (...) Eu acho que os portugueses se ririam do parlamento se nos entretivéssemos nos próximos tempos a fazer alterações regimentais a coisas que não dizem nada à vida concreta dos portugueses", disse.
Hugo Soares disse ainda que não lhe chegou nenhum relato de qualquer deputado injuriado ou ameaçado e, caso aconteça, aconselhará a que o crime seja participado para que "a justiça possa funcionar".
O líder parlamentar do PSD retomou as críticas feitas hoje de manhã pelo deputado Hugo Carneiro na comissão de Orçamento e Finanças, depois de o PS ter adiado a votação do texto de substituição do PSD e do CDS-PP da proposta do Governo de redução do IRS.
"Porque é o que o PS está a adiar a sua posição, de que é que tem medo o PS? Com truques e expedientes dilatórios, o PS transformou-se numa força de bloqueio, não ao Governo, não ao parlamento, mas aos portugueses", acusou Hugo Soares, lamentando que não seja possível "baixar impostos já para a classe média".
O líder parlamentar do PSD quis ainda saudar o que classificou de "acordo histórico" alcançado na terça-feira entre o Governo e a maioria dos sindicatos de professores sobre a reposição do tempo de serviço congelado.
"A escola pública não se defende com palavras e proclamações, defende-se com atos", disse.