Joaquim Miranda Sarmento e Luís Montenegro durante o debate do Programa do Governo.
Joaquim Miranda Sarmento e Luís Montenegro durante o debate do Programa do Governo.António Cotrim / Lusa

“Embuste”, “retoque fiscal” e “má-fé”: a grande descida de IRS que afinal não o é

No dia em que foi legitimado no Parlamento, o Governo conseguiu unir esquerda e direita contra si. Tudo graças o pacote fiscal do Executivo, que acusam de não ser de acordo com o prometido. Mas a medida pode nem vir a entrar em vigor, porque precisa de ser votada na AR.
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A polémica surgiu nem 24 horas depois de o Governo ter entrado em plenitude de funções. Na noite de sexta-feira, Joaquim Miranda Sarmento, ministro de Estado e das Finanças, dizia numa entrevista no telejornal da RTP que “os portugueses vão pagar substancialmente menos de IRS” este ano. Admitindo que o Executivo ainda está a “calibrar” a redução do imposto, Miranda Sarmento assumiu, no entanto, que, em vez de ser um alívio de 1,5 mil milhões de euros, será de apenas 173 milhões.

Afinal, a descida do valor anunciado pelo Governo de Luís Montenegro já incluía os 1327 milhões de redução em vigor com o Orçamento de António Costa. Ou seja: a redução diz respeito às tabelas de 2023 e não é cumulativa com as de 2024. Algo que o ministro justificou com o facto de o imposto ter um princípio de anuidade. No Parlamento, o primeiro-ministro já tinha dito, no entanto, que a redução era “face ao ano passado”, apesar de não ter elaborado.

Algumas horas após a entrevista de Miranda Sarmento, Pedro Nuno Santos reagia no X (antigo Twitter). A medida não é um “choque fiscal” (termo utilizado pelo PSD em relação à necessidade de reformar o sistema de impostos), mas sim um “choque de desfaçatez”, um “embuste”. E acusou o Governo de se tentar “apropriar dos valores de uma redução do IRS feita pelo PS, mais de seis vezes superior à baixa” anunciada pelos sociais-democratas.

Mas, segundo Miranda Sarmento, a proposta que tanta celeuma tem causado é da autoria dos sociais-democratas. Recuou também no passado e deu como exemplo, até, o facto de a maioria absoluta socialista da anterior Legislatura ter chumbado várias propostas do PSD nesta área. O ministro diz que o Governo está a “cumprir” algo que prometera “ainda antes de se saber que ia haver eleições”.

Não obstante toda a polémica, a proposta de mexida nos impostos - que Miranda Sarmento diz vir beneficiar sobretudo “famílias de classe média, quem ganhe acima de mil, mil e quinhentos, dois mil euros” - terá de ser discutida e votada no Parlamento (já depois de ser aprovada em Conselho de Ministros esta semana). Para já, o desfecho é incerto e a proposta pode nem sequer ser transformada em legislação. Afinal, o Governo não tem maioria absoluta, nem o apoio da oposição para fazer aprovar estas medidas.

Oposição critica e chama ministro ao Parlamento

Na manhã de sábado, o Governo tentou acalmar a polémica. Em comunicado, o Executivo referia estar a “cumprir rigorosamente” o seu programa. Recusando a ideia de estar a enganar o país, o Executivo disse, em comunicado, que “nenhum membro do Governo ou dos partidos da coligação que o apoia alguma vez sugeriu, indicou ou admitiu outras reduções de taxas, designadamente que tivessem a mesma dimensão, mas a acrescer ao constante na Lei do OE 2024”.

Praticamente uma hora depois, o líder parlamentar social-democrata, Hugo Soares, tentou complementar os esclarecimentos dados pelo Executivo. E foi na mesma linha de discurso: o primeiro-ministro “foi cristalino” nas suas palavras, a proposta “é clara” e consta no Programa do Governo. Para o líder parlamentar do PSD, “alguém se enganou” sobre as medidas e esse “alguém” não foi o Governo. A oposição “tem de se habituar” e é preciso “saber o que se diz, não vale a pena vir a reboque, tentar fazer política de má-fé”. E, no final, uma certeza: “A oposição não tem razão.”

Minutos depois, foi a vez de outra líder parlamentar (a do PS) vir a público deixar críticas ao Governo. Numa declaração feita na sede do partido, em Lisboa, Alexandra Leitão referiu que a proposta do Governo é “um embuste, uma desfaçatez” e uma prova de “falta de credibilidade”. O país foi “todo enganado” porque a “AD andou a propor aquilo que, afinal, estava no programa do PS”. Isto é “muito, muito grave. É mais uma vitimização e má-fé do Governo. Não se podem enganar todos, todos, todos”, disse numa alusão ao que Luís Montenegro afirmara no Parlamento, numa referência ao lema da Jornada Mundial da Juventude.

A deputada socialista anunciou ainda que o PS vai chamar o ministro para um debate de urgência no Parlamento, já na quarta-feira.

André Ventura, que reagiu depois, foi na mesma linha e anunciou que o Chega vai também chamar Miranda Sarmento à Assembleia, mas, neste caso, à Comissão de Finanças. “Terá de explicar o que ontem [sexta-feira] explicou de forma evasiva”, disse.

Já o líder da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, disse que, em vez de ser uma política de “choque fiscal” é, isso sim, “um retoque fiscal”. O “estado de graça” do Governo “acabou ao fim de 48 horas”. “Tivemos o PSD, o Governo, a tentar não ser claro relativamente a esta matéria”, criticou.

Mariana Mortágua, coordenadora do Bloco de Esquerda, também deixou palavras duras. Para a bloquista, “o Governo toma Portugal por parvo”. E apontou também ao primeiro-ministro, que “fabricou um artifício e ficou a assistir enquanto toda a gente se deixava enganar”.

O PCP, pela voz do líder Paulo Raimundo, disse que o Programa do Governo é “de fraude” e que é “tal e qual” como tinha previsto: “Grandes parangonas” e “grandes anúncios de redução do IRS mas, depois de tudo espremido, a montanha o que pariu foi a redução do IRC”.

Por seu lado, Rui Tavares, do Livre afirmou que “ouviu bem” Luís Montenegro “dizer que as alterações significariam um corte fiscal de 1500 milhões de euros”. Para o porta-voz do partido, o primeiro-ministro “ainda não saiu de campanha” e o Governo faz “promessas vazias”. “Parece-me de péssimo gosto que o Governo venha dizer que toda a gente se enganou, e que só o Governo é que estava certo”, concluiu.

O que propõe o Governo para o IRS?

A proposta social-democrata pretende mexer nos escalões do IRS até ao 8.º escalão (há nove, atualmente).

Com uma taxa atualmente em vigor de 13,25%, o 1.º escalão passaria a 13% com o PSD. O segundo ia dos atuais 18% para 19%.

O terceiro transitaria dos atuais 23% para 23,5%. Já o 4. escalão voltava a ter uma redução: de 26%, passaria para 25,5%.

Depois, o 5.º passaria de 32,75% para 32%.

O sexto é aquele que beneficiaria mais da proposta do Governo, passando dos 37% para os 34%.

Depois, o 7.º escalão passaria dos atuais 43,5% para 43% e o oitavo (e penúltimo) passaria a ter uma tributação de 44,75% ao invés dos atuais 45%.

O 9.º escalão manter-se-ia nos 48%.

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