Não é um desconhecido na Ordem dos Enfermeiros. Entrou em 2016 como vice-presidente de Ana Rita Cavaco, a sua antecessora, e foi reeleito com ela, em janeiro de 2020. Mas, ao fim de oito anos, chegou a vez de Luís Filipe Barreira assumir a missão de bastonário, com o foco em “melhorar a profissão”. Dele próprio conta que terminou o curso em 1997, que fez na Escola de Enfermagem da Fundação Calouste Gulbenkian, em Braga, e que a aptidão para o associativismo também foi descoberta aqui, enquanto estudante como presidente da associação. Hoje, aos 49 anos, já Mestre em Enfermagem Comunitária, especialista em Saúde Pública e a fazer doutoramento, reconhece que o que o levou à profissão foi “a vontade interior de ajudar os outros. Era uma profissão associada às relações e ao humanismo e foi isso que me atraiu”. Depois, já a exercer a profissão desempenhou funções na direção de um sindicato da classe, e sempre “por entender que se pode fazer muito mais pela profissão”. E, neste âmbito, acredita que algumas das funções que hoje os colegas já exercem no dia-a-dia serão reguladas e assumidas como competências da classe. “Acredito que a prescrição farmacológica e a das ajudas técnicas um dia vai acontecer em Portugal como já acontece noutros países”, afirma. Nesta entrevista, diz ainda acreditar que o regime jurídico do internato para a enfermagem também vai ser regulado e que a profissão será considerada de risco, podendo a reforma chegar aos 60 anos. Foi eleito com 71% dos votos mas a abstenção foi mais de 80%, dos 85 mil enfermeiros inscritos na Ordem só 17 236 é que votaram. O que dizem estes números da classe, falta de interesse pelo papel da Ordem ou é um espelho do que se passa no país? Penso que a abstenção é um problema do país e dos portugueses e não só das eleições das ordens profissionais. A verdade é que há pouca participação cívica. De qualquer forma, estamos muito confortáveis com os resultados porque se os compararmos com a eleição de 2015 - em que houve mais listas candidatadas, nesta caso era lista única - a participação foi mais elevada. Em 2015, votaram cerca de 15 mil profissionais, agora tivemos mais de 17 mil. Obviamente que gostaríamos que houvesse maior participação e envolvência dos enfermeiros nos destinos da Ordem, mas não me parece que a questão da abstenção seja um problema só nosso, é um problema do país. Não significa pouca envolvência de uma classe reconhecidamente reivindicativa e lutadora? Os enfermeiros são uma classe lutadora, mas precisavam de ser mais reivindicativos, porque muitas das questões com que se deparam e de que se queixam dizem respeito à intervenção pessoal. No dia-a-dia é preciso saber dizer sim e não em relação ao que nos oferecem. E quando entendemos que devemos dizer não, temos de ser firmes nesse não. Portanto, na reivindicação há uma responsabilidade coletiva, em que se inserem o papel da Ordem e dos sindicatos, mas depois há uma responsabilidade individual, aquela que cabe a cada um na defesa daquilo que entende ser o mais correto. E os enfermeiros não estão a desempenhar esse papel? Penso que os enfermeiros têm obtido algumas conquistas, mas têm de conseguir ter um papel mais ativo no dia-a-dia. Têm de fazer uma defesa mais intransigente do que consideram que está correto, não permitindo que sejam apresentadas medidas com as quais não concordam ou que até violem os seus princípios e direitos como profissionais, os quais não podem ser postos em causa nem por direções, instituições ou outros profissionais. Os enfermeiros têm de assumir verdadeiramente o papel de responsabilidade e participação individual.Foi por isto que disse que as eleições de 18 dezembro foram “apenas um ponto de partida para um mandato com muito trabalho pela frente”? Que trabalho é esse? Do ponto de vista do desenvolvimento da profissão há obviamente muito trabalho pela frente, porque há questões importantes de regulamentação que estão por resolver, como a do internato da especialidade, que já tem um grupo de trabalho criado no âmbito da Administração Central dos Serviços de Saúde (ACSS) para desenvolver o regime jurídico. E do ponto de vista político, já estamos a trabalhar para que nos possamos encontrar com os presidentes dos partidos e candidatos a primeiros-ministros às eleições de 10 março, para sabermos da possibilidade de se chegar a um pacto de regime para a saúde. Os últimos anos já demonstraram até à exaustão que a saúde precisa de reformas urgentes, que são precisas encetar. E a Ordem está disponível para ajudar a chegar a alguns consensos e, sobretudo, para ajudar a assegurar um melhor acesso aos serviços de saúde, que é um dos problemas graves. Um pacto de regime para a Saúde é uma das prioridades? É uma das prioridades, mas há outras como a dos recursos humanos e o nível de desmotivação na classe, que é muito elevado. E esta desmotivação passa naturalmente pelas condições de trabalho que hoje enfrentamos no SNS, pelos salários e pela própria carreira. É importante criar-se uma política de recursos humanos que permita valorizar a carreira dos enfermeiros, que classifique a profissão, de uma vez por todas, como de alto risco, e que seja possível antecipar a idade da reforma para os 60 anos. São todas estas questões que têm levado ao cansaço, à desmotivação e até ao número de enfermeiros que têm estado a abandonar a profissão. É preocupante? É. Se olharmos para os relatórios internacionais, nomeadamente para os da OCDE, Portugal não atinge a média do número de enfermeiros por mil habitantes, está abaixo dessa média. Portanto, um dos nossos objetivos é conseguir junto do Ministério da Saúde e do próximo Governo que se aumente a contratação de enfermeiros para tentarmos, pelo menos, igualar a média dos países da OCDE (que é de 9.2 enfermeiros por mil habitantes, quando em Portugal é de 7.4). Em relação à remuneração, acontece o mesmo. Portugal está na 19.ª posição, numa lista de 21 países, no mesmo relatório da OCDE, o que quer dizer que somos dos países que mais mal paga aos enfermeiros na Europa. É preciso melhorar estas condições se quisermos parar a sangria de enfermeiros para outros países e se os quisermos fixar no SNS. Segundo a Ordem cerca de 1700 enfermeiros pediram em 2023 certidões para poderem exercer no estrangeiro. Tendo em conta que há 85 mil inscritos na Ordem há falta de profissionais no país ou só no SNS? Temos já 85 mil enfermeiros porque em Portugal estamos a formar o número de profissionais necessários, mas a verdade é que não os estamos a conseguir reter no país nem a fixá-los no SNS. Os dados sobre a emigração relativos a 2023 mostram um aumento quando comparados com os de 2022, e se não conseguirmos melhorar as condições de trabalho, apesar dos sucessivos alertas que têm sido emitidos pela própria classe e até por várias entidades internacionais, como Organização Mundial da Saúde e OCDE nos relatórios que divulgam sistematicamente e onde se apela aos países que melhorem as políticas de emprego, os enfermeiros vão continuar a sair. Há muito que perceberam que há países mais ricos na Europa (como Suíça, Espanha, Bélgica, França e Reino Unido) ou fora da Europa (Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita) que lhes oferecem melhores condições de trabalho e contratos também. Em Portugal, continuamos a oferecer contratos de trabalho de seis meses a enfermeiros, não é desta forma que vamos conseguir parar o êxodo para os outros países. Na profissão de enfermagem, a percentagem de quem tem a intenção de emigrar é de cerca de 40%, já é mais elevada do que a percentagem de licenciados que emigraram, que é de 30%. No discurso de posse referiu também que a classe de enfermagem pode assumir mais responsabilidades, refere-se a mais funções do que as que desempenha agora? Sim. Temos enfermeiros altamente diferenciados no país que podem assumir novas competências. Aliás, esta questão deve estar associada à reformulação do modelo assistencial no nosso país. Hoje, temos um modelo centrado nos hospitais, quando é preciso criar um modelo assistencial de proximidade assente nos cuidados de saúde primários. É para isto que apontam todos os relatórios internacionais e é esta a prática que alguns países europeus já estão a desenvolver. Ora, se Portugal é dos países do mundo com uma população mais envelhecida, sendo que as estimativas apontam para que em 2050, um em cada três portugueses terá de mais de 75 anos, e um em cada oito terá mais de 80 anos, se pensarmos que com o envelhecimento aumentam as doenças crónicas, que trazem naturalmente um maior grau de dependência, há que investir e com prioridade nos cuidados de proximidade, onde os enfermeiros podem assumir plenamente a gestão da doença crónica. O que quer dizer concretamente? Quero dizer que temos de pensar que se os idosos com dependências crónicas preferem ser cuidados em casa, estar no seu ambiente, e isto também está demonstrado em alguns relatórios. Há que apostar seriamente na possibilidade de terem cuidados profissionais no domicílio. Isto levaria até a uma redução das idas aos serviços de urgência, porque hoje estes são quase um depósito para as pessoas com idades avançadas e com descompensações crónicas, o que prejudica naturalmente os cuidados aos doentes urgentes. Portanto, é mesmo necessário reforçar os cuidados no domicilio, dotando de meios os cuidados de saúde primários e as próprias estruturas residenciais para pessoas idosas. Há países, como a Suécia, por exemplo, que fecharam camas de internamento nos cuidados de longa duração e que começaram a apostar nos cuidados ao domicílio com enfermeiros, por vezes, e dependendo das necessidades dos doentes, com cinco visitas por dia à casa dos doentes. No nosso país, temos algumas equipas que se fizerem duas vezes por semana já é muito..Fala em mais funções e responsabilidades, por exemplo nos cuidados primários e domiciliários, mas o que podem fazer mais os enfermeiros? Falo de competências que os enfermeiros já desempenham hoje na sua prática diária, mas que precisam de ser regulamentadas. Por exemplo, falo da possibilidade da prescrição crónica por parte de enfermeiros, que continua a ser um tema tabu no nosso país, mas que em outros países europeus já avançou. Falo também da prescrição em relação às ajudas técnicas. E isto porque hoje em dia temos doentes a ser tratados no domicílio que precisam da sua medicação crónica e até de ajudas técnicas, como andarilhos, camas articuladas, uma bala de oxigénio, que são acompanhados por enfermeiros de família, especialistas, e não faz sentido nenhum que depois estes não tenham a possibilidade de prescrever o que os doentes necessitam, tendo de haver uma consulta com um médico. Espanha avançou há pouco tempo para a prescrição por parte da enfermagem e tem tido bons resultados. É um caminho incontornável na Saúde e é uma das apostas desta ordem. Porque é que este modelo não avança em Portugal? Não há vontade política ou é visto como se a enfermagem estivesse a retirar funções aos médicos? São as duas coisas, a vontade política e, eventualmente, o entenderem que são competências que podem estar a ser retiradas a outros profissionais, mas não é isso que se pretende. O que queremos é que os enfermeiros, e tendo em conta as suas intervenções no dia a dia, possam assumir tais competências, sem serem necessários outros recursos, como marcar nova consulta com um médico e ocupar mais tempo de consulta para se passar uma receita. No fundo, trata-se de garantir ao doente o acesso a cuidados adequados e em tempo útil. E acredito mesmo que um dia, quando avançarmos para a prescrição pela enfermagem, vamos ter todos a noção do tempo que se ganha no acesso aos cuidados e vamos questionar-nos porque demorámos tanto tempo a implementar uma medida que é óbvia e sensata. É por estas competências não serem reconhecidas que defende que a enfermagem não é uma profissão reconhecida nem valorizada em Portugal? Os portugueses valorizam os enfermeiros e as suas funções, mas as questões que envolvem as condições de trabalho, a valorização salarial e a progressão na carreira são mais políticas. E nos últimos anos o poder político não tem olhado para os enfermeiros de forma a refletir a sua diferenciação. Costumo dizer que a remuneração e as condições de trabalho trazem dignidade às profissões e no enfermeiros faz falta esta dignidade. Esta semana falou-se da emigração dos enfermeiros, na semana passada das escusas de responsabilidade, o facto de estas estarem a aumentar. Quer dizer que a qualidade dos cuidados está em risco? É preocupante e é exatamente isso. Quando os enfermeiros dão conhecimento aos conselhos de administração e à sua ordem profissional uma escusa de responsabilidade estão claramente a dizer a estas entidades e ao País que não têm as condições adequadas para prestar cuidados de qualidade e em segurança. E tenho a dizer que, neste momento, o nosso foco está nos serviços de urgência, mas a questão não se passa só nestes serviços, isto está a acontecer também nos serviços de internamento que estão sobrelotados, e muitos deles com macas em corredores. Ou seja, os enfermeiros estão num esforço sobre-humano para conseguir acompanhar os doentes, quer nos serviços de urgência quer nos internamentos. Há uma carência muito grande de profissionais no SNS, o problema está identificado há muito, mas continua por resolver. O que espera então para depois das eleições de 10 março? Espero que o próximo ministro ou ministra mantenha uma relação de abertura e de diálogo com a classe de enfermagem e que seja consequente nas medidas em relação aos enfermeiros no sentido de se criarem melhores condições para o exercício da profissão. Devo dizer que o atual titular da pasta foi um interlocutor muito importante para a enfermagem, manteve a abertura necessária. E da nossa parte, e relativamente às matérias que digam respeito à profissão, estaremos sempre cá para ajudar e conseguir fazer mais e melhor.