Paulo Rangel: "Não tenho uma visão apocalíptica do pós-eleições americanas, qualquer que seja o resultado"
Neste momento, preocupa-o mais que o Orçamento do Estado seja chumbado ou a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos?
Sinceramente, devo dizer que nós, na vida, podemos ter várias preocupações ao mesmo tempo. Nunca temos só uma. Claro que umas, às vezes, nos preocupam mais que outras. Temos uma hierarquia, mas algumas são de natureza tão diferente que nem as comparamos. O que eu queria dizer é o seguinte: no que diz respeito à política interna de qualquer Estado e em particular de um Estado amigo, como são os Estados Unidos (EUA), o governo português não tem posição e, portanto, será sempre uma relação Estado a Estado, qualquer que seja a administração americana. Confiamos que esta relação é de tal maneira fundamental e está tão bem alicerçada e tão solidificada, tem corrido tão bem que, qualquer que seja o resultado das eleições americanas, não antecipo problemas de maior na relação bilateral entre Portugal e os Estados Unidos. Teremos sempre boas relações.
Aliás, durante do mandato de 2016 / 2020 de Donald Trump não houve propriamente grandes alterações na relação bilateral com Portugal. Mas e impacto nas relações transatlânticas?
Mesmo aí, se olharmos bem para os dois fios condutores da política norte americana, que tem impacto sobre nós - a Europa a Ocidente em geral - desde o início do século XXI, desde a administração George Bush filho, Obama, Trump, Biden, o que vemos são dois pontos fundamentais: um é uma insistência enorme numa repartição equitativa da despesa militar, com a ideia de que os aliados dos EUA têm de tomar em mãos aquilo que é a proteção da sua segurança e da sua defesa, contribuindo financeiramente e aliviando o esforço dos EUA. E isto não mudou com nenhum destes presidentes. Pode mudar o estilo, pode mudar a linguagem, mas de facto, nestes 24 anos que leva o século XXI, a política norte-americana teve esta constante, aliás, a acentuar se sempre de presidente para presidente a ideia de que os Estados europeus deviam ter outro tipo de contribuição no quadro da NATO e no quadro das despesas de segurança e defesa. É uma evidência e é uma constante.
Quando diz acentuou, quer dizer que a pressão vai aumentando?
Não, estou a dizer que Biden não foi menos exigente. Tanto não foi que tem 23 Estados já acima de 2%. Alguns nos quatro...
Portugal é que ainda não cumpre…
Portugal ainda não cumpre. Antecipou para 2029 a data que o Governo anterior tinha assumido para 2030 e adiantou um plano credível na última cimeira da NATO, em de Washington. Obviamente foi conversado e negociado antes, conduzido pelo Ministério da Defesa e o ministério dos Negócios Estrangeiros, em estreita conexão com o primeiro-ministro e o ministro das Finanças.
Mas queria dizer que há uma segunda constante, que é a viragem para o indo-pacífico, isto é, a ideia de que há hoje uma polaridade nova no indo- pacífico e isto, em parte, explica porque é que os EUA que, no fundo, lideram a NATO e o Bloco ocidental, também tem estas exigências em termos de partilha dos custos de segurança e defesa e porque existe aqui uma nova polaridade. Está mais orientado para a relação no indo-pacífico também. E isto é uma constante com todos os presidentes. Não há nenhum, sinceramente, que não tivesse dado mais atenção a esse vetor...
No mínimo, desde Barack Obama…
Penso que vem de George Bush. Mas Barack Obama foi o grande teorizador, o que não é estranho, porque ele vinha do Hawai e olhava para os EUA a partir do Pacífico. Estas coisas têm a sua influência na forma como se olha.
Penso que ele compreendeu a importância da relação transatlântica. Um pouco mais tarde, se posso fazer aqui alguma análise do passado, quando quis fazer o acordo da Parceria para o Investimento e Comércio Transatlântico, percebeu-se aí que Biden, nesse aspeto, relativamente a todos os outros, teve realmente uma vantagem.
É que era um presidente da Guerra Fria e como era um presidente que foi político ativo durante a Guerra Fria, quando se deu a invasão da Ucrânia, compreendeu muito bem que estava perante um repto, que era um repto diferente desse repto da unipolaridade ou da futura polaridade única no mundo pacífico.
O que eu queria dizer com isto é que vale a pena olhar para aquilo que é realmente institucional, estrutural e para aquilo que é constante na política norte americana, e não para aquilo que são os ciclos políticos e os programas políticos.
Nós temos uma relação excelente a todos os níveis, agora até a níveis insuspeitos, como os económicos. As empresas portuguesas estão presentes nos EUA como nunca estiveram. A questão do turismo, que é verdadeiramente surpreendente como de repente temos 2 milhões de americanos a visitar em Portugal.
Até a querem viver em Portugal…
E a quererem viver em Portugal. De repente há aqui, de facto, qualquer coisa que até é nova. A verdade é que as duas constantes estão lá e portanto não tem a ver. Por isso é que digo que encaro com naturalidade e sempre respeitando, como é evidente, a decisão do eleitorado norte-americano, sobre aquela que venha a ser a nova administração.
Com a desistência do presidente Biden da sua candidatura, haverá seguramente um novo presidente. Portanto, qualquer que ele seja, Portugal terá um relacionamento absolutamente institucional e que eu creio que correrá bem. Sinceramente, é a minha convicção profunda.
A análise que faço destes 24 anos do século XXI, em que estas constantes que às vezes nos são agitadas como problemáticas, já estão em desenvolvimento e estão a ser, aliás, claramente assumidas pelos norte-americanos há muito tempo.
Em relação à Rússia, antevê que possa haver aalgum tipo de alteração na política externa dos EUA e com impacto, obviamente, também para tudo o que tem sido a política da União Europeia (UE)?
Não creio que que vá haver alterações de monta.
As boas relações de Trump com Putin não pode ajudar a resolver a guerra na Ucrânia?
Não queria estar agora aqui a entrar em cenários que possam ter a ver com a política interna norte-americana. Mas é evidente que, tendo a Rússia violado a Carta das Nações Unidas em relação à integridade territorial da Ucrânia, isto vai estruturalmente contra os eixos fundamentais da política norte-americana.
Há uma coisa que os EUA sempre respeitaram e que faz parte da sua idiossincrasia em termos de atuação internacional, que a ideia de que não pode haver uma violação da integridade territorial, com base na simples lei da força.
O grande problema, que nem sempre é entendido fora do perímetro europeu e americano, é que aceitar o precedente de que um Estado, neste caso a Federação Russa de Putin - não são os russos nem é a Rússia enquanto tal - pode mudar as fronteiras internacionais com base na lei do mais forte ou numa guerra de agressão, como está a ocorrer, levaria ao caos noutras partes do mundo. Não quero pensar o que seria se nós aceitarmos esse precedente em África, por exemplo.
Uma das coisas que Portugal tem é este soft power, uma relação muito fácil, leal e de igual para igual, não apenas com os seus parceiros que falam português, mas com outros parceiros internacionais do que se chama agora o Sul Global. Se nós, por acaso, formos complacentes, cedermos à ideia de que pela força se podem mudar fronteiras, isto em alguns continentes, a começar pelo africano, terá um efeito extremamente extremamente negativo.
Aliás, onde a Rússia já está...
Onde a Rússia já está muito activa, nomeadamente no Sahel, mas não só. Onde, para além disso, há conflitos. O caso do Sudão do Sul, o caso da República Democrática do Congo, por exemplo. No caso do Sudão do Sul, com consequências humanitárias catastróficas que, evidentemente nos põem em alerta.
A relação que os EUA tenham com a Federação Russa será sempre uma relação que nunca, julgo eu, vai passar esta linha vermelha que é a do respeito pela integridade territorial da Ucrânia.
Portanto, não tenho uma visão apocalíptica ou catastrofista do pós-eleições americanas, qualquer que seja o seu resultado.
Por falar em influência russa em África, São Tomé e Príncipe assinou recentemente um acordo técnico-militar com a Rússia. O senhor ministro esteve lá na semana passada e suponho que foi tentar perceber que “vazio” é que tinha sido deixado por Portugal e perceber o que é que ainda podia ser feito...
Do ponto de vista da nossa cooperação na área da Segurança e Defesa, nós somos os maiores cooperantes de São Tomé. Aliás, somos os maiores cooperantes em tudo, mas em particular na Segurança e Defesa. Portanto, não existe nenhum problema entre os dois Estados sobre isso.
Mas é importante dizer que há, realmente, uma necessidade de nós, neste caso Portugal, mas não só, também a UE, darmos atenção a estes Estados, que são Estados que têm necessidades muito grandes, não apenas na área da Segurança e Defesa, mas em muitas outras áreas e onde às vezes um esforço e uma atenção maior da comunidade internacional pode suprir algumas vulnerabilidades.
Mas percebeu porque São Tomé sentiu esta necessidade de fazer o acordo com a Federação Russa?
Todos estes países - e no caso São Tomé isso é evidente - têm imenso material de fabrico ainda soviético, muito dele obsoleto, outro que ainda está, apesar de tudo, utilizável. Isso explica porque é que por vezes se vai ao encontro do apoio da Federação Russa, onde ainda há o material para permitir a operacionalidade doo que está disponível ou, para algumas atualizações que permitem reutilizar equipamentos.
Obviamente que a Federação Russa se mostra disponível para isso…
Também há aqui uma tentativa de marcar o terreno por parte da Federação Russa no plano.
É um país estratégico, situado numa zona muito importante...
Tem um valor geopolítico enorme. De algum modo estava pressuposto na pergunta que fez. E se é esse o pressuposto, eu verdadeiramente o subscrevo enfaticamente que Portugal, os Estados da UE e os EUA têm de fazer mais na sua cooperação.
O facto de alguns Estados, quaisquer que sejam, estarem a cooperar com a Federação Russa, com a China ou com outras potências, não deve fazer com que nós desistamos. É uma pedagogia que eu tenho feito muito, especialmente na UE, em que às vezes exponho algumas condicionalidades para os apoios à cooperação. Se têm outros parceiros, não é por isso que nós não devemos estar a cooperar.
Pelo contrário, devemos reforçar a nossa cooperação e, portanto, isso é um ponto que, na minha óptica, é fundamental. Com São Tomé as relações são as melhores possíveis. Há uma coisa muito importante que valia a pena ter presente.
São Tomé esteve na Conferência de Paz de Zurique, votou ao lado de Portugal na condenação da agressão russa da Ucrânia. Ainda recentemente delegou em Portugal um voto importante sobre esta matéria na Assembleia Geral.
Foi Portugal que votou em nome de São Tomé. Portanto, sobre esse ponto de vista, há um alinhamento que eu acho que não causa nenhum incómodo.
Agora, nós temos é que aumentar a nossa cooperação. E isto não vale apenas para Portugal, vale também para a UE. Podemos ser mediadores importantes, fazer ver os nossos parceiros da UE que, às vezes, com o investimento que para a UE significa pouco, tem um efeito reprodutor e multiplicador em Estados mais pequenos.
No caso de São Tomé, estados mais vulneráveis e com orçamentos limitados, com muitas dificuldades económicas e financeiras e onde a nossa cooperação pode ter efeitos de facto muito benéficos.
Uma coisa que é extraordinária, deixe me dizer aqui porque não consigo deixar de dizer depois de ter estado estes dias na CPLP, é a nossa cooperação na área da Saúde.
Vale a pena ver como os índices de saúde pública têm mudado graças à cooperação que temos e grande parte dela já é feita com meios tecnológicos de telemedicina, que eu vi a funcionar na prática.São
É realmente impressionante como se pode, de facto, fazer a diferença. Também a Escola portuguesa em São Tomé é exemplar a vários títulos.
De facto, sinceramente, é um país amigo, um país irmão e que teve aqui um desafio muito grande, que foi a presidência da CPLP, que cumpriu com uma eficiência e uma capacidade de resposta que pede meças a muitos Estados com meios mais sofisticados.
Está previsto algum reforço do orçamento para a cooperação com estes países?
Sim, como se verá em breve. Sobre isso não posso adiantar muito. O nosso apoio orçamental a São Tomé será efetivo, tem sido sempre. Há ali algumas lacunas estruturais.
Há um exemplo muito bom da cooperação portuguesa que já está a ser efetivado com Cabo Verde e está acordado com São Tomé, que é a transformação da dívida em investimento verde.
Um perdão da dívida?
Um perdão da dívida que depois é investido em combate às alterações climáticas. Este programa inovador foi desenvolvido por Portugal com Cabo Verde e depois logo replicado para São Tomé.
Tem sido considerado exemplar em todo o lado, a começar pelas Nações Unidas. Um modo exemplar de cooperação com os Estados em desenvolvimento e que, no caso de São Tomé, queria chamar a atenção, tem de estar ligado muito às energias renováveis.
Porque o problema principal de São Tomé, até do ponto de vista financeiro, segundo nos dizem as autoridades, e que depois é constatado quando estamos no terreno, é o problema de um deficit energético crónico, mas com a capacidade de produção de energias renováveis. É possível mudar estruturalmente este défice.
Não é não num ano, não em dois, não em três, mas no médio prazo. E isso mudará claramente as condições de vida em São Tomé. Portanto, apostar nesta ideia da conversão da dívida em investimentos que de uma forma ambientalmente sã deem fontes energéticas próprias, autonomia energética a São Tomé é um programa de cooperação exemplar, como está a funcionar com Cabo Verde.
Esta esta solução, que é uma solução portuguesa, neste momento está a ser estudada e replicada por muitos outros Estados como uma solução exemplar.
A América Latina, além do Brasil, é uma prioridade para este governo?
Claramente. A América Latina teve sempre uma prioridade para Portugal. Tive já encontro com vários ministros da América Latina. Curiosamente, aqui em Lisboa, vários vieram visitar me para reunir em reuniões bilaterais. Temos hoje com os vários países relações muito fortes.
Chamaria a atenção para uma potência relevante para além do Brasil, que é o México, com o qual as relações são as melhores possíveis. Estamos a desenvolver um programa interessante na Costa Rica.
A Argentina já mostrou grande interesse em que aproximássemos os nossos laços económicos. Sabemos também que tem problemas de crises financeiras e económicas várias, mas já deu esse sinal. Estamos a trabalhar também ativamente no quadro da nossa organização ibero-americana. Talvez venhamos a ter novidades nesse plano.
O que espera das eleições na Venezuela este domingo? A UE e o senhor que tanto trabalho fez como eurodeputado pela mudança política na Venezuela, deixaram cair Juan? Parece me que já deixaram cair completamente Juan Guaidó?
Nós temos sempre duas vidas, não é? Os gatos têm sete e os políticos têm duas. Uma quando estão na sua função partidária e outra quando estão numa função de representação do Estado português.
Evidentemente que nessa função, aquilo que lhe compete dizer e desejar que o processo eleitoral corra com toda a transparência e com toda a correção do ponto de vista das regras eleitorais de justiça e equidade.
Os padrões internacionais estão mais do que definidos e depois trabalharmos com aquele que seja o governo legítimo da Venezuela.
Acredita que as eleições possam ser livres, transparentes e justas?
Não vou comentar assuntos internos, até porque, como sabe, no caso português, temos uma comunidade portuguesa muito relevante na Venezuela e portanto temos obviamente que manter as relações Estado a Estado.
Tal como eu já referi a outros propósitos, neste caso se aplica ainda mais do que em qualquer outro. Mas o que nós vemos é uma campanha muito dinâmica e muito viva, não é? A campanha tem decorrido com diversidade e pluralidade e, sob esse ponto de vista, é um sinal animador. Lá estaremos para ver.
Portugal continuará naturalmente, com as suas relações Estado a Estado, tendo como principal preocupação nas relações com a Venezuela, em primeiro lugar, a comunidade portuguesa e a comunidade de lusodescendentes.
No recentemente anunciado Plano de Acção para as Migrações. O Governo assegurou que ia ser feito um reforço nos postos consulares com cerca de 50 especialistas. Passaso cerca de um mês desse anúncio,pode dizer-nos em que ponto é que está esse reforço? Que postos vão ser reforçados? Quando vai estar a funcionar em pleno e qual a previsão dos fluxos migratórios com essa origem?
Antes do mais, deixe me dizer que já está a decorrer – e não nada a ver com o Plano para as Migrações - um concurso para 128 funcionários do ministério dos Negócios Estrangeiros, grande parte deles já seria para poder virem a trabalhar em postos consulares ou na actividade consular, mesmo que fossem em Lisboa. Para além do mais, estamos a distribuir 2000 equipamentos de computadores por toda a rede consular. Isto são coisas independentes desses 50 especialistas sobre os quais eu vou já falar.
Mais, estamos a mudar alguns equipamentos biométricos. Vou dar aqui um exemplo concreto, a Guiné-Bissau, onde se passou a usar o reconhecimento facial para o agendamento.
E isso não só se mostrou uma medida que elimina a fraude de que há muitas vezes ecos, como permitiu uma grande eficácia. É uma experiência a replicar noutras e estamos a trabalhar nessas frentes.
Agora, em relação à contratação de 50 novos especialistas. Neste momento, tudo está pronto para que o concurso seja aberto no final de agosto. Até agora não paramos um minuto.
Estamos a cumprir as regras legais para abrir um concurso e julgo que no final de Setembro as candidaturas estarão concluídas e que em Outubro, estaremos em condições de ter estes 50 novos especialistas e que poderão ser deslocados para postos consulares, com alguma flexibilidade. Isto é, quando há um grande afluxo ou quando há a necessidade de substituir alguém.
Estamos a falar nos países da CPLP?
Estamos a falar de toda a rede consular.
Mas a prioridade não vai ser para a CPLP, Brasil, Angola, por exemplo?
Isso é outra questão. Evidentemente que estamos a falar daqueles postos onde há mais procura e entre eles contam-se alguns desses. Mas também temos, por exemplo, a Índia, nomeadamente em Nova Déli, onde há fluxos migratórios mais sazonais.
É preciso resolver essas questões e é com essa flexibilidade de resposta que esta equipa estará pronta justamente no primeiro momento possível. Não houve aqui nenhuma inércia.
Estamos a dar toda a velocidade e todos os passos para que tudo possa correr de forma a que no final de agosto o concurso seja aberto e as pessoas possam aceder à plataforma, candidatar-se e depois possam ser providas nos seus postos depois de encerrado o concurso no final de Setembro.
Mas é preciso perceber o problema das migrações não depende apenas dos postos consulares. A emissão de vistos depende imensas vezes de pareceres. Desde logo da AIMA ou da Unidade de Coordenação de Fronteiras Estrangeiros (UCFE).
Muitas vezes o posto consular está preparadíssimo para emitir os vistos ou para os recusar e ainda está a aguardar alguns pareceres. Outra questão, a grande questão das migrações, em Portugal neste momento – e atenção que eu não estou a desvalorizar o papel que os postos consulares têm e que os vistos têm - são as 400.000 pessoas ou cerca de 400.000 que estão às portas da AIMA, dito de uma forma figurada.
E a falta de capacidade desses desses órgãos…
Esta é que é a questão. A forma como foi extinto o SEF é altamente censurável. Foi de facto uma irresponsabilidade que teve como consequência esta situação em que nos encontramos.
Temos de olhar para isto do ponto de vista administrativo, como algo muito difícil para a administração pública, mas, ao mesmo tempo, pensar na vida destas pessoas, centenas de milhares de pessoas. Isto também é muito preocupante. Foi uma responsabilidade sob duplo ponto de vista.
Estamos a falar de António Costa e José Luís Carneiro?
A responsabilidade é do governo anterior. Claro que tinha titulares, mas eu não ando à procura de uma culpa pessoal. Há, sem dúvida uma responsabilidade do anterior governo pela situação que herdamos.
Basta ver o tempo que demorou entre a extinção do SEF e o lançamento do novo modelo. Basta ver isso para perceber que as coisas estavam todas muito mal, não é? Não só o modelo demorou – e foi pena não se ter aproveitado as sinergias que se tinha antes - como para além disso ficou paralisado porque havia uma incerteza institucional e os próprios funcionários, os dirigentes estavam à espera de perceber qual era o novo quadro. Tudo isto agravou um problema que já de si tinha contornos sérios.
Tem informação sobre o procedimento de infração que a Comissão Europeia instaurou contra Portugal por causa dos vistos de mobilidade CPLP? O anterior Governo contestou esse processo. Em que ponto é que está?
Portugal fez essa contestação e estamos a aguardar uma decisão da Comissão Europeia. É uma matéria realmente delicada, porque efectivamente, os cidadãos que vêm da CPLP, num certo sentido, estão confinados ao território nacional, o que pode não ser compatível com o espaço Schengen.
Do meu ponto de vista, isto tem que ser negociado e acertado com as instituições europeias. Esse processo de diálogo ainda não está fechado.
O novo estatuto dos dos Diplomatas está finalmente pronto a permitir que embaixadores possam ter colocações no estrangeiro até aos 70 anos, em vez dos atuais 66. Isto não vai adiar um rejuvenescimento dos quadros do MNE, que presumo que seja necessário?
Penso que não, porque esta questão foi muito discutida e a solução que se encontrou é do contento de todos. Porque vale para todos, para quem tem 66 ou 67 anos, como para aqueles que têm 60 e para aqueles que têm 30.
Olhando para a demografia hoje, é evidente que a grande maioria dos embaixadores que chegam aos 65, 66 anos estão em perfeitas condições e capacidade de continuarem em posto lá fora.
Antes deixavam de poder estar em posto externo. Um ponto muito importante é a integração da lógica do Serviço Europeu de Ação Externa, também no contexto diplomático português. Há um conjunto de diferenças e de mudanças que que criaram a ocasião para o legislar dessa maneira.
Não queremos um estatuto de carreira diplomática para valer para os próximos três anos. Queremos que possa valer para 20 anos. E para isso, temos de ter um horizonte que tenha em conta essas questões.
Tem defendido a necessidade do cessar fogo na guerra em Gaza. Presumo que também defende a libertação de todos os reféns israelitas. Após isso, o governo vai reconhecer o Estado palestiniano?
Essa é uma questão que está em permanente avaliação. Qual é o racional da posição portuguesa? Primeiro, condenação total dos ataques do Hamas de 7 de outubro e defesa intransigente da libertação dos reféns. Isto é claro. Depois, a aceitação de que Israel tem direito à legítima defesa.
Agora, não há dúvida de que aqui um excesso e uma verdadeira desproporção da legítima defesa. Isso é condenável. A situação humanitária em Gaza é inaceitável.
Como é que se traduz politicamente o facto de considerarem isso inaceitável, se não mexem sequer no acordo de cooperação UE/Israel?
Calma, já lá vamos. Eu agora estava a falar de Portugal. Temos defendido sistematicamente um cessar fogo imediato e independente de condições para permitir que haja, desde logo, um apoio humanitário urgente. Porque aquele que chega, para além de ser escasso, não é suficiente.
Quando chega, não tem condições para ser eficaz. Quer dizer, ainda é menor do que aquilo que efetivamente é, porque depois, no terreno, não existem as condições para distribuir a ajuda humanitária de forma o mais eficiente possível.
Dito isto, não tenho dúvidas nenhumas de que temos de trabalhar numa solução que leve Israel a conter e a parar esta esta operação para permitir isso. É o que Portugal tem feito. Portugal tem vindo a defender sistematicamente, por exemplo, um apoio enorme à Autoridade Palestiniana.
Portugal foi, juntamente com a Grécia e Dinamarca, mas fomos nós propusemos no contexto do Conselho da UE e do Conselho Negócios Estrangeiros, que haja um reforço enorme do apoio financeiro institucional ao atual governo da Autoridade Palestiniana e, em particular, aos esforços do primeiro-ministro Mohammed Mustafá.
Temos sido nós a liderar esse esforço. Portugal, numa iniciativa inédita em toda a história diplomática portuguesa, votou a favor da admissão da Palestina como membro de pleno direito das Nações Unidas. Já tinha sido um governo da AD com o ministro Paulo Portas a fazer o estatuto de observador e agora foi outro a fazer isto. Todos falam muito, mas a verdade é que não o fizeram antes. Não tiveram ações deste teor.
Este é um aspeto que para nós é muito importante e que nos criou uma possibilidade de sermos mediadores dentro da UE. É verdade que no Conselho da UE - e isto vai entroncar na pergunta que acabou de pôr - há divergências sérias e grandes e Portugal tem sido uma voz muito ativa na promoção de um entendimento maior e do apoio à Autoridade Palestiniana, do apoio às iniciativas dos países árabes.
A Arábia Saudita, o Qatar, Omã, no Bahrein, a Jordânia, os Emirados Árabes Unidos, o Egito têm sido altamente construtivos.
É uma pena que Israel não aproveite este momento em que tem, do lado dos interlocutores árabes, uma proposta altamente construtiva, praticamente idêntica àquela que fez o presidente Biden. É absolutamente extraordinário como não se aproveita este momento para justamente dar esse passo.
Só com um novo governo em Israel?
Provavelmente será assim. Eu também não me quero imiscuir agora nos assuntos internos de Israel.
Mas está mais preocupado com do que estava com com a possibilidade de escalada do conflito?
Estou mais preocupado, especialmente depois do fim de semana anterior. Já estava sempre preocupado porque acho que esse risco é um risco iminente, porque até qualquer acidente ou algo não intencional ou um efeito colateral pode ter imediatamente consequências desproporcionais.
Mas neste momento, com o que vemos do Hezbollah, com o que vemos no Iêmen, as perspetivas não são nada animadoras. Pelo contrário, são de molde a suscitar a maior preocupação no quadro disto tudo. Com os nossos parceiros europeus, acompanhamos a questão de uma eventual reconhecimento.
Não é nada que nos crie nenhuma objeção de raiz. Achamos que, neste momento, com o papel que Portugal tem tido de charneira, como lhe digo até mais recentemente, juntando-se a nós a Grécia e a Dinamarca, a situação em que estamos é aquela que é recomendável para o Estado português. Mas estivemos sempre em conversações com a Espanha, com a Noruega, com a Irlanda, com a Eslovénia, com a Bélgica e com a França.
Também um permanente diálogo com a Grécia e com a Dinamarca, que têm tido exatamente a mesma posição que Portugal nos diferentes conselhos da UE, inicialmente não concertada, ou seja, espontaneamente dos três, e por isso é que criámos uma espécie de task force, totalmente informal, mas que levou de facto a esse gesto.
Agora a questão da tal reunião do Conselho de Associação (para rever o acordo com Israel), que eu acho que era muito importante mas não pode ser business as usual, tem de ser, de facto, para para pressionar de forma clara Israel, porque consideramos que neste momento a situação em Gaza e até na Cisjordânia, por causa da expansão dos colonatos, que Portugal tem vindo a condenar sistematicamente, merece uma censura e a UE devia atuar em conformidade.
Por isso, não tenho nada contra que haja uma reunião deste Conselho da Associação. O Alto Representante (da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança) já tem envidado esforços nesse sentido, desde que a agenda se pronuncie justamente sobre estas questões e não apenas sobre aquelas que seriam as normais ou mais regulares. Um Acordo de Associação normalmente tem uma índole mais económica, não é?
Deixe-me perguntar sobre um tema que o anterior governo sempre manteve silêncio que tem a ver com os familiares dos antigos jihadistas portugueses que combateram pelo Estado Islâmico. Há mulheres e crianças em campos de detenção e outros países europeus estão a começar a trazer essas pessoas e a iniciar processos de desradicalização, quando é esse o caso. Qual é a posição do governo português quanto a isso?
Sobre esse assunto não vou dizer rigorosamente nada porque acho que não devo dizer, porque é um assunto extremamente sensível que merece a atenção do governo portugues e que é avaliado de acordo com os critérios próprios, em diálogo com os nossos parceiros internacionais. É um assunto de tal maneira sensível que é mesmo minha obrigação não falar sobre ele.
Mas tem pensamento sobre isso?
Tenho informação sobre ele.
Mas concorda com os serviços de informações, por exemplo, que chamaram a atenção de essas pessoas poderem vir para Portugal?
Não é uma informação, diria eu, atualizada ou pelo menos rigorosa. Porque é uma informação que, por um lado, é dinâmica e, por outro lado, é altamente confidencial. O direito à vida é um direito fundamental e nós temos de o preservar. E, por vezes, o silêncio é a melhor forma de proteger as vidas.
Referi a posição dos serviços de informações porque foi pública, escrevi sobre isso....
Estou a dizer que às tantas não é rigorosa...
Posso não estar atualizada...
E não só. Porque isso nunca são situações de preto e branco, em que há um sim ou não. Não é nada disso. São avaliações muito complexas. Portanto, vamos manter-nos nesse nível. Aliás, seguindo a recomendação que nos foi feita pelo governo anterior e que estamos a seguir por inteiro, ao qual não há nenhum reparo a fazer.
Quando esta entrevista for para o ar, deverá estar no Rio de Janeiro para a reunião do G20, como convidado pelo Brasil, onde vai ser lançada a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. O senhor é o número dois do governo de um país com mais de 12% da população em insegurança alimentar moderada ou severa, acima da média de 8,5% da Europa do Sul. O que tem Portugal para dizer ao G20 nesta matéria?
Em primeiro lugar, deixe me dizer que nós temos de estar muito reconhecidos ao Brasil e ao presidente do Brasil por ter convidado Portugal e, já agora, também Angola, durante a presidência do G20. Isto é uma oportunidade única que os nossos governantes, os membros do governo, têm usado de uma forma extraordinária. É um palco único para Portugal e isso é uma coisa que resultou de um gesto, eu diria, estratégico, do Brasil.
Agora, na cimeira ministerial da CPLP, na reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros, tive oportunidade de elogiar. Porque para a CPLP, para Angola e para Portugal, em particular, mas também para todo o espaço de língua portuguesa, aquilo que o Brasil fez foi, obviamente, uma enorme projeção.
Agora, vamos apoiar completamente a iniciativa que o presidente Lula lança de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que pode ter efeitos práticos visíveis até ao final da década, o que é espantoso se realmente houver vontade política dos atores internacionais para o fazer.
Portugal vai estar na linha da frente daqueles que estão a apoiar o Brasil e a sua agenda no G20 para podermos erradicar a fome e, no caso português, muito em linha com o México num atuação conjunta, olhar muito para o que nós chamamos a pobreza intergeracional, a pobreza e a fome infantil e juvenil, e para aqueles fatores que a perpetuam e que, no fundo, são uma herança. É como se a herança que se pudesse deixar aos filhos e aos netos fosse a herança da pobreza e da fome, que obviamente não é o que nenhum avô pai deseja. E, portanto, a comunidade internacional tem de se mexer.
É uma grande oportunidade. Esta é uma agenda que tem enorme valor moral no plano mundial e por isso, sinceramente, mais uma vez digo, estamos gratos ao Brasil e vamos aproveitar a 100% a oportunidade que o Brasil nos deu para projetarmos os valores que Portugal defende.
Deixe me voltar à Europa. As próximas reuniões dos ministros dos Estrangeiros e da Defesa dos 27 já não vão realizar se em Budapeste, como estava previsto. Depois das críticas que foram feitas a Viktor Orban, o Alto representante da UE, Josep Borrel, diz que Bruxelas quer mostrar a Hungria que há consequências para os seus atos, nomeadamente o facto de Viktor Orbán ter ido a Moscovo conversar com Vladimir Putin. Portugal alinha nesta espécie de retaliação?
Portugal definiu unilateralmente que estaria sempre representado a nível político nas reuniões informais convocadas pela Presidência da UE, a presidência húngara, mas a nível de secretários de Estado. Isto foi debatido em Conselho de Ministros e fiz essa apresentação. Será sempre avaliado caso a caso. Ou porque os Estados, entretanto, mudam de posição, ou porque pode acontecer que haja um ponto da agenda que exige que seja uma pessoa em concreto que vá e que abramos uma exceção.
A discussão que se pôs na segunda-feira é diferente, porque o Conselho de Negócios Estrangeiros não é convocado pela presidência húngara e pelo Alto Representante Borrell. Portanto, ele é que escolhe o sítio, mesmo o informal.
Aliás, o ministro húngaro teve oportunidade de dizer que estaria totalmente confortável com que isso se realizasse ou em Budapeste ou em Bruxelas, porque não era da presidência húngara a convocação e, portanto, sendo convocado, estaria presente porque tinha a presidência e isto tinha sempre alguma influência. Era sempre um lugar de destaque nas reuniões.
Tendo ele feito isto, o Alto Representante decidiu convocar para Bruxelas e nesse caso podemos estar a nível ministerial, porque não é a presidência húngara que está a convocar. É tudo uma questão também de agenda. Vai cair num momento em que porventura teremos outra agenda internacional também importante. Mas Portugal estará sempre representado a nível político. Até agora fui a todos os Conselhos no estrangeiro, portanto espero também ir a esse.
Vai dizer-nos quem são os nomes indicados pelo Governo português à senhora Ursula von der Leyen para serem candidatos a comissários europeus?
Não vou dizer porque isso é uma reserva do primeiro-ministro que, a seu tempo, não deixará de divulgar.
O primeiro-ministro está disponível para encarar a inclusão de independentes ou serão só elementos do PSD?
Sinceramente, eu não vou adiantar rigorosamente nada sobre esse assunto. Isso é uma competência exclusiva do ministro. Com certeza que ele a partilhará, a dada altura com o MNE, o que é normal e natural, ou até com outros ministros. Também não digo o contrário, mas esse é um processo que ele conduz pessoalmente junto da presidente da Comissão. Temos de ser muito ciosos das competências e essa é uma prerrogativa política e pessoal do Primeiro-Ministro.
O ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel é agora o número dois do Governo para um dia voltar a tentar ser número um do PSD ou para si é um assunto arrumado?
É um assunto arrumado. Sinceramente, não vislumbro isso no meu horizonte.