Quando Armando, um pombo-correio belga, foi comprado em 2019 por mais de um milhão de euros por um chinês a columbofilia de repente tornou-se notícia. Mais uma mania dos chineses, agora mais ricos do que nunca, pensaram muitos. Mas a mim, filho de um columbófilo de Setúbal, há muito que me fascinam estes animais e a capacidade de percorrerem centenas de quilómetros até casa. E na realidade já os antigos egípcios os usavam..Nos concursos ditos de velocidade, ou seja até 300 quilómetros, podem fazer médias a rondar os 130 km/h, mais do que o limite de velocidade nas autoestradas. E mesmo largados de mais longe, como os 700 e tais quilómetros desde Saragoça, continuam a exibir uma velocidade extraordinária. "Cheguei a receber pombos às três ou quatro da tarde que tinham sido soltos às seis da manhã de Saragoça ou de Valência", diz-me o meu pai, que vai em meio século de columbofilia, pois tem 70 anos e "antes de ir para o Ultramar já andava nisto"..Tenho de confessar que deixei a columbofilia quando fui para a universidade. Soltar os pombos para treinar todos os dias não se conjugava muito bem com um curso em Lisboa, mas a verdade é que os milhares de columbófilos que há em Portugal, mesmo trabalhando, lá arranjam tempo para a sua paixão. Sim, paixão, até porque columbofilia, que mistura uma palavra latina com outra grega, quer dizer aqueles que gostam de pombos. E sim, o meu pai sempre gostou de pombos, muito mais do que eu, que às vezes ficava irritado por ter de desistir do futebol de rua com os amigos para ir limpar o pombal e dar-lhes comida e água..Claro que também tenho memória da excitação de ver no céu um vulto e perceber que era um dos nossos pombos, um dos campeões, a chegar tão cedo e tão rápido. E não esqueço os jogos de não-te-irrites e as garrafas de fruto real acompanhadas por amendoins no bar da coletividade, do eterno Sr. Ricardo, nos dias de encestamento..O meu pai chama-se Leonídio Ferreira, como eu. Temos na família há três gerações este nome próprio raro, de origem grega. Para escrever este artigo tive de lhe telefonar, para ter a certeza de que algumas recordações estavam certas, por exemplo, que o nosso primeiro campeão foi o 175296, um pedrado de 1981. Que ganhou o nosso primeiro lugar num concurso de Vila Nova de Foz Coa, considerado de meio-fundo. Também falámos do 007, um pombo tão cheio de pinta como sugere o nome (a terminação da anilha). E também da Branquinha, da Brava e do Ngugi, que os columbófilos têm a mania de dar nomes aos pombos, às vezes por causa de uma característica física, outras por causa de uma analogia qualquer (John Ngugi era um campeão olímpico queniano)..Já nos tempos do meu afastamento, o meu pai teve outro pombo excecional, um macho azul, que ganhou a anilha de ouro, ou seja foi naquela época/temporada o mais pontuado da Sociedade Columbófila de Setúbal. Passou a ser o Anilha de Ouro, claro..Em Portugal a solta mais distante costuma ser feita de Barcelona, uns mil quilómetros. Sei que há concursos no estrangeiro mais longos e que não faltam relatos de pombos que voam 1500 quilómetros ou mais, mas sei que esse grande fundo a partir da capital catalã é só para pombos de resistência excecional, pois implica atravessar toda a Espanha, sobreviver a aves de rapina e a caçadores e por vezes até ter de passar a noite ao relento..Esta velocidade associada à resistência dos pombos-correios já foi usada em guerras várias, das Napoleónicas à Segunda Guerra Mundial, e também no jornalismo. Um livrinho que li em miúdo contava como o fundador da Reuters ainda no século XIX usava pombos para dar notícias das cotações bolsistas antes de todos..Encontrei no DN, quando aqui comecei em 1992, um veterano que também tinha a paixão dos pombos. Chamava-se Fernando Pires, mas para todos era o Chefe Pires pois era chefe de redação há décadas. E lembro-me como nos rimos de outro jornal em que aparecia a foto de um pombo vulgar a ilustrar um artigo em que se dizia absurdamente que um pombo-correio ia dali para ali e de ali para acolá. Não é assim tão bem mandado. Herdado do seu antepassado pombo-da-rocha, que volta sempre ao ninho, o instinto do pombo-correio é voltar ao pombal de origem..Suspeita-se de que o segredo da orientação tem que ver com ondas eletromagnéticas. Na Segunda Guerra Mundial, as caixas com pombos eram largadas de paraquedas sobre França por aviões britânicos e depois no solo os resistentes prendiam na pata a informação sobre os nazis que os pombos levavam no regresso para lá do canal da Mancha..Vítor Higgs (Ilustração) / Nuno Santos (Animação) / DN.Em tempo de paz, a columbofilia é um desporto, que tem milhares de seguidores em Portugal. Hoje, diz-me o Leonídio mais velho, já não se ouve a hora da solta na Antena 1, antes recebe-se um SMS da associação distrital. Também já não se usa o relógio em que se colocava um dedal com anilha de borracha que ia na pata livre do pombo (a outra tem a anilha de nascimento, colocada nos borrachos, e que é um verdadeiro BI). Agora é tudo eletrónico, com um chip a acusar a entrada no pombal..Falei do milhão de euros que custou o Armando, mas devo alertar que não é só gente rica que gosta deste desporto. Aliás, até se diz que é um desporto para ricos praticado sobretudo por pobres. Para ser competitivo um pombal tem de ter mais de cem pombos. E a saca de ração (milho, favarola, ervilhaca) custa caro, tal como os medicamentos. Por isso há muitas sociedades, ou seja dois columbófilos a partilhar um pombal: o sócio do meu pai hoje é o João Biscaia, em tempos foi o Domingos Rocha Batista, que tinha pombal no Viso..Para mim, o pombal do meu pai será sempre o do quintal da minha avó Stela. Foi ali que vi triunfar o 175296, o 296, foi ali que passei horas a calcular a média por minuto dos voos. Tudo isto, mais o cálculo das coordenadas de cada pombal, permite uma classificação científica. Agora há em Setúbal uma aldeia columbófila que dá muito jeito a quem não tem quintal e tem o vício disto dos pombos (até conheci um columbófilo que tinha um quarto no apartamento dedicado aos pombos!). É lá, à tal aldeia, que o Leonídio Ferreira sénior tem de ir todos os dias, dê por onde der, tratar dos pombos. A sua paixão.