É uma espécie de tesouro bem guardado. De tal forma que se torna difícil encontrar quem nos saiba indicar a sua localização, enquanto percorremos os corredores do Hospital de Santo António (Centro Hospitalar do Porto). "Será onde fazem as autópsias?" É exatamente ali, no piso zero, inserido na unidade de neuropatologia, que está o Banco Português de Cérebros (BPC). Não é uma estrutura isolada, mas funciona em várias salas, sob a coordenação de Manuel Melo Pires e Ricardo Taipa, ambos neurologistas e neuropatologistas. Aberto oficialmente desde 2014, após dois anos a funcionar como projeto-piloto, é o repositório de cerca de 50 cérebros de pessoas que morreram com doenças neurológicas. Material "extremamente valioso", diz Ricardo Taipa..Melo Pires atribui a criação do BPC a Taipa, que acumulou experiência em duas estruturas idênticas em Inglaterra. Ali, explica o neurologista, guardam-se cérebros de "pessoas com doenças neurológicas bem documentadas", seguidos durante longos períodos. Como a demência vascular, a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson, as formas mais atípicas de parkinsonismo e as doenças do sistema nervoso periférico, como a paramiloidose (conhecida como doença dos pezinhos).."Ao analisarmos esse tipo de tecido, podemos estabelecer um diagnóstico definitivo, porque o diagnóstico clínico é muitas vezes de presunção", diz Ricardo Taipa. Por vezes, e sobretudo nas patologias menos frequentes, os médicos e a família pensam que o doente morreu com uma determinada doença, mas o exame ao cérebro revela outra. Além disso, prossegue, é também possível colecionar material cerebral, que depois é usado para investigação, em Portugal e no estrangeiro, e que permite estudar, por exemplo, proteínas, genética, mecanismos de doença. Não podemos visitar a sala de autópsias, onde se encontram os cérebros congelados a -80ºC, porque há um exame a decorrer. Mas percorremos os diferentes espaços por onde os cérebros passam. Ricardo Taipa explica que, quando o cérebro é doado, é dividido em duas partes: uma vai para congelação, enquanto a outra é colocada em formol - para ficar mais dura e fácil de manusear. Ao fim de três a quatro semanas, está pronta para ser cortada em pequenas fatias. "E retiramos as áreas de interesse, que são cerca de 40", refere o neurologista, que obteve o grau de doutoramento em Medicina em 2018 pela Universidade do Minho..Com um bisturi, o especialista separa de um pedaço de cérebro o hipocampo, estrutura relacionada com a memória, bastante estudada nos casos de Alzheimer. De seguida, explica, será guardada em parafina para posterior análise ao microscópio. Dois meses após a colheita das várias áreas, a família recebe o diagnóstico definitivo. E não existe um limite de tempo para os cérebros ficarem armazenados. Mesmo que não haja interesse em estudar uma determinada parcela neste momento, "todas as áreas podem ser de interesse para investigação futura"..Quando começou, o BPC recebia, em média, dois a cinco cérebros por ano, e está neste momento a recolher 12. Apesar do crescimento, o número ainda é insuficiente. "Temos capacidade para 15 a 20 cérebros por ano. Era um bom número de consolidação", refere Ricardo Taipa, destacando que a estrutura vive "do altruísmo das pessoas", tanto dos doentes como dos familiares, que, nos casos das doenças hereditárias, também podem beneficiar de um diagnóstico definitivo. "Há uma excelente aceitação por parte das famílias", contudo os "neurologistas têm algum pudor em falar sobre essa possibilidade". Porque "é sempre complicado falar da morte", sobretudo quando estão em causa decisões após o óbito..Até agora, a investigação feita no BPC já permitiu "publicar estudos na área da doença de Alzheimer e da demência frontotemporal, essencialmente ligados ao papel da neuroinflamação nas doenças neurodegenerativas", bem como na doença de Parkinson. Ali, contam os neurologistas, foi descoberta uma forma rara de Parkinson - descrita pela primeira vez a nível mundial -, que tem uma patologia muito similar à forma esporádica da doença, pelo que o seu estudo permite um melhor conhecimento da mesma..Por agora, apenas é possível receber os órgãos de dadores que se encontram entre Caminha e Coimbra, uma vez que uma parte do cérebro é dissecada fresca. Após a morte, o corpo é encaminhado para o CHP para que o cérebro seja retirado, sendo depois devolvido à família para as exéquias fúnebres. "Não existe qualquer custo associado", frisa Melo Pires. O BPC é financiado através das parcerias com as universidades do Minho, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) e o Hospital de Santo António (Centro Hospitalar do Porto). Para crescer, tanto em capacidade técnica como de recursos humanos, "serão necessárias outras parcerias, que podem até estender-se à comunidade, nomeadamente através de associações de doentes"..Nos planos está, ainda, a colheita de cérebros de indivíduos saudáveis para que possa existir um termo de comparação. Além de um conhecimento mais aprofundado das doenças neurológicas, os tecidos cerebrais também permitem, por exemplo, testar novos fármacos. Neste momento, há cerca de 80 inscritos para doação.