Muitos séculos antes de acrescentarem poesia instantânea à Revolução de Abril já os cravos tinham entrado na história de Portugal. Isabel, filha do Venturoso Dom Manuel I, transformada pelo casamento em rainha de Espanha e imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico, foi surpreendida pelo marido, Carlos V, durante a lua-de-mel em Granada, com a oferta de uma flor sem aroma, de tom vermelho, que os pesquisadores de maravilhas tinham trazido da distante Pérsia. A alegria de Isabel foi tanta que o enamorado soberano não hesitou em mandar plantar um autêntico "mar" de cravos - pois é deles que se trata - nos jardins do Alhambra. Para a história, Isabel de Portugal, que morreu realmente na flor da idade, ficaria conhecida pelo epíteto de Imperatriz dos Cravos..A linguagem simbólica das flores, usada na literatura e fora dela desde o tempo em que Moisés andava pelo mundo, associa-se mais frequentemente a histórias de amor sagrado e profano, mas também não deixa de aparecer em manifestações de poder - seja de uma linhagem, de um rei ou de um cardeal. David Fernandes, especialista em heráldica, destaca, entre as flores representadas em brasões, a importância da flor-de-lis, historicamente associada ao rei de França: "Os brasões ocidentais nascem na Idade Média e têm como origem a necessidade de identificar rapidamente os guerreiros envolvidos numa batalha, já que as armaduras só por si não permitiam qualquer tipo de reconhecimento", esclarece.No caso dos exércitos sob o estandarte francês, a flor-de-lis indicava aos seus oponentes que o rei, seu senhor, fora o primeiro dos soberanos ungidos por Deus. "A flor-de-lis corresponde a um lírio estilizado, a flor oferecida pelo anjo de Deus, juntamente com o óleo de batismo, a Clóvis, o rei merovíngio de quem os monarcas franceses diziam descender. Esta oferta simbolizava, aliás, a vassalagem destes apenas a Deus, já que, durante o feudalismo, o suserano entregava ao vassalo um lírio em sinal de proteção e fidelidade. ".Na Europa, a importância histórica da flor-de-lis é comparável somente à britânica rosa dos Tudor. Branca e vermelha, parece mais apropriada para lacrar um recado galante do que para ornamentar o escudo de cavaleiros em armas. E, no entanto, tornara-se o símbolo da dinastia a que pertenceram, entre outros, Henrique VIII e as suas filhas, Maria e Isabel, após um longo e sangrento conflito entre as casas de Lancaster e York, conhecido por Guerra das Rosas já que os brasões de ambas continham uma rosa, respetivamente vermelha e branca. Filho de Margarida Beaufort, da casa de Lancaster, o vencedor da batalha de Bosworth Field (em que foi morto o rei Ricardo III) Henrique VII casou-se com Isabel de York, para consolidar a paz entre as famílias desavindas. Aos olhos dos súbditos e das cortes estrangeiras, a rosa bicolor que tomou para o seu estandarte significava também a boa vontade do vencedor para com os derrotados, afinal, seus familiares..David Fernandes salienta, porém, que, apesar destes e de outros casos, "é na heráldica eclesiástica que os temas florais estão mais representados" e refere, como exemplos atuais, "os brasões do Papa Francisco (em que figura o nardo, muito importante no Evangelho segundo São João, por exemplo) e do cardeal José Tolentino de Mendonça, em que a flor do lírio se coaduna com o lema Considerate lilia agri (Contemplai os lírios do campo)". Escolhas que não são meramente estéticas. "A heráldica religiosa está muito ligada à Bíblia e à simbologia dos santos. A açucena, por exemplo, representa a pureza e a castidade. Vemo-la, por isso, frequentemente associada às representações da Virgem Maria, mas também de São José, Santo António ou Santa Inês. O mesmo acontece com a rosa (nomeadamente a rosa do deserto) que encontramos em esculturas medievais da Virgem, simbolizando a combinação da beleza com a força.".A heráldica de inspiração floral não se esgota, todavia, nas "linhagens" políticas e religiosas do ocidente. "No Japão, onde os brasões (mons) não aparecem envoltos num escudo, as flores e as plantas são muito representadas. Lá como cá, a simplicidade prevalece sobre o realismo." Isto porque "o objetivo da heráldica é permitir uma identificação rápida e inconfundível. Como um logótipo.".Da lenda à história.Isabel de Aragão veio menina e moça para Portugal para se casar com o rei Dom Dinis. Estávamos no final do século XIII e este, entre os assuntos de Estado, a poesia e as muitas raparigas por quem se encantou, pouca atenção prestava às obras de devoção e caridade da rainha. Até ao dia em que, como se escreve na Crónica dos Frades Menores (na versão do século XVI, compilada por Frei Marcos de Lisboa, é considerado o primeiro registo escrito do milagre das rosas) "levava a rainha moedas no regaço para levar os pobres", a surpreendeu o marido. Perguntando-lhe ele o que levava assim, com a saia semierguida de modo a transportar algo, ela, tremendo de se saber descoberta, respondeu rosas. E, conclui o frade escriba, "rosas viu El-Rei não sendo tempo delas". Menos de um século depois, o pintor espanhol Francisco Zurbarán representaria a rainha de Portugal assim mesmo, de rosas no regaço, num quadro que pode ser visto no Museu do Prado, em Madrid..Mais remota, mas igualmente de origem nacional, é a lenda que se propõe justificar a origem das amendoeiras em flor. Tudo teria começado no Algarve sob a dominação muçulmana, onde um príncipe se teria casado com uma bela nórdica. Apaixonado, pôs aos pés da amada o melhor de si, mas rapidamente constatou que nada poderia acalmar nela as saudades das paisagens brancas de neve onde crescera. Nesses tempos em que as pessoas faziam testamento antes de iniciar qualquer viagem, deixá-la regressar não era opção. O que fazer? Consultou livros, ouviu os sábios, até que alguém lhe falou de uma árvore que se cobria de branco, quando floria, no final do inverno..Vieram as amendoeiras, a melancolia da princesa cedeu ante o espetáculo da paisagem florida e os dois foram, enfim, felizes para sempre. Se non è vero, è ben trovato. Bem menos lendários são os muitos amores de Dom João V, já que deles há documentação abundante. Entre freiras de Odivelas e damas da corte, destaca-se a figura de Luísa Clara de Portugal. Aia da rainha, casada com um titular (Dom Jorge de Menezes), tomou-se de amores pelo soberano e dele teve uma filha, Maria Rita, mais tarde noviça no Convento de Santos..A Luísa chamou Dom João "Flor da Murta". Conhecedor da linguagem das flores, o real amante homenageava-a evocando uma planta sagrada para gregos e romanos que a plantavam junto aos templos consagrados a Vénus, simbolizando paz, amor e constância. Neste caso, a desejada constância dela já que a fidelidade às mulheres da sua vida nunca foi virtude que agraciasse o rei de Portugal..A associação icónica das flores a determinados acontecimentos e personagens históricas não pertence exclusivamente a tempos de cavaleiros em armaduras sonhando com camas de dossel. Os cravos vermelhos que as mulheres de Lisboa depositaram espontaneamente nas espingardas dos soldados, em 25 de abril de 1974, tornaram-se, em Portugal e no mundo, um símbolo imediatamente reconhecível: o da luta pela liberdade de um povo contra uma ditadura (e uma guerra colonial) que se arrastava há décadas..Mas a beleza das flores nem sempre as associa a momentos felizes. Em 1914, nas cerimónias que assinalaram o princípio da I Grande Guerra, o artista plástico Paul Cummins fez rodear a Torre de Londres com 888 246 papoilas de cerâmica. O objetivo era recordar cada um dos soldados britânicos mortos em combate nesse conflito, evocando os campos empapados de sangue da Flandres..Na época romântica, as flores entraram na vida quotidiana, literal e simbolicamente. Falavam quando a cobardia ou a falta de jeito silenciavam declarações ou o seu contrário. Distinguiam o pecado do recato, a boémia da modéstia: rosas vermelhas no cabelo da pecadora Carmen, discretos buquês nos cabelos das jovens casadoiras. Adornavam os chapéus cada vez mais exuberantes das mulheres e as lapelas dos homens. Marcel Proust distribuía-as pelas personagens de Em Busca do Tempo Perdido, mas, ele próprio um dandy, não abdicava de as usar (sobretudo camélias brancas e frescas). O mesmo faziam Oscar Wilde, o rei Eduardo VII de Inglaterra e um dos seus melhores amigos, o marquês de Soveral, embaixador de Portugal em Londres, popularmente conhecido por Macaco Azul..Fascinada pela elegância de homens como estes, Coco Chanel tornou as camélias brancas uma das imagens de marca mais identificáveis da sua casa e levou-as, sem mais, para o guarda-roupa feminino. Embora o logótipo sejam os dois C entrelaçados do nome da sua fundadora, a flor branca, símbolo da longevidade e da fidelidade no Extremo Oriente, nomeadamente na Coreia, seduziu tanto Mademoiselle que esta não hesitou em distribuí-lo por acessórios, joias, botões e por um sem-número de pormenores das suas peças. A perfeição simétrica da flor encantava-a. Mas, por outro lado, sob a carapaça de ditadora da tesoura, Chanel era uma mulher mística, que acreditava piamente nas mensagens secretas dos símbolos..Os seus perfumes nº 5 e nº 19 foram intitulados desta forma aparentemente fria e assética após numerosas consultas de numerologia. A representação do seu signo astrológico, Leão, está omnipresente nas dezenas de coleções que desenhou e também no apartamento parisiense onde viveu durante longos anos. Citava frequentemente o Eclesiastes. Por isso, ao tomar conhecimento (alegadamente através de um dos amantes da sua juventude, Boy Capel) do poder simbólico da camélia, não mais deixou de a usar em si mesma ou nas suas coleções. Associava-a a valores que lhe eram caros: uma paixão que não abdica do rigor, um requinte que não prescinde da fantasia.